Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá
Dando prosseguimento ao tema Direito, Estado e Economia abordado na última semana[1], partimos de uma definição de Estado moderno como sendo o núcleo soberano de competências, contendo, essencialmente, o monopólio normativo e o dever-função-poder de deliberar politicamente sobre as diretrizes de determinada sociedade.
A dimensão da autonomia empresarial privada para celebrar negócios jurídicos vincula-se diretamente ao modelo econômico adotado pelo país, sendo possível observar, desde o surgimento do Estado moderno, três concepções distintas: a liberal; a social ou de bem-estar social e; a neoliberal.
O Estado liberal surge no século XIX em decorrência da luta da sociedade, liderada pela burguesia, contra a monarquia absolutista que vigorou no início do Estado moderno. No entanto, já no século XVIII, na Europa ocidental, influenciada principalmente pelos ideais iluministas, pela Revolução Francesa e pelos pensamentos desenvolvidos pelo liberalismos econômico dos fisiocratas e de Adam Smith[2], “o poder público era visto como inimigo da liberdade individual, e qualquer restrição ao individual em favor do coletivo era tida como ilegítima[3]”.
Proclamava-se a proteção de direitos individuais contra os abusos do soberano, pautando a organização da sociedade sob o preceito de liberdade. Constata-se nas constituições liberais, a preocupação em declarar direitos de liberdade e defesa do indivíduo, além de instituir meios que garantam a limitação do poder do Estado[4].
Como resultado, na seara econômica, houve uma separação entre a atividade econômica privada e a atividade política, impondo restrições à intervenção estatal, estabelecendo a autonomia da vontade do indivíduo e a liberdade negocial (laissez faire) como diretrizes econômicas. Na concepção de Dalmo de Abreu Dallari:
O Estado liberal, resultante da ascensão política da burguesia, organizou-se de maneira a ser o mais fraco possível, caracterizando-se como o Estado mínimo ou Estado-polícia, com funções restritas quase que a mera vigilância da ordem social à proteção contra ameaças externas[5].
Desse modo, “quando o principal controlador da atividade econômica é o próprio mercado, o grau de liberdade dos agentes econômicos é maior[6]”. Nessa visão:
(...) deixa-se a cada qual, enquanto não violar as leis da justiça, perfeita liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e faça com que tanto seu trabalho como seu capital concorram com os de qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas[7].
Assim, o Estado não deve se ocupar com as atividades das pessoas privadas, mas com deveres de grande relevância e interesse da sociedade. Logo, é concedido ao indivíduo uma ampla autonomia para celebrar negócios jurídicos empresariais.
Ressalta-se também que o Estado de Direito nasce de um conceito tipicamente liberal. Conforme leciona José Afonso da Silva, “constituía uma das garantias das constituições burguesas (...) tinha como objetivo fundamental assegurar o princípio da legalidade, segundo o qual toda atividade estatal havia de submeter-se à lei”[8].
Contudo, a noção liberal de que o mercado seria regido por uma “mão invisível” não se perpetuou no mundo fenomênico, desencadeando ao final do século XIX até as primeiras décadas do século XX, problemas sociais, como o desemprego e a fome, e falhas de mercado, como o monopólio e a acumulação de capital. A valorização do indivíduo cria um individualismo desacerbado, por meio de comportamento egoístas e da perda da consciência de natureza associativa, resultando na vantagem dos mais hábeis, mais audaciosos ou daqueles com menos escrúpulos[9].
O poder econômico se sobressai à ideia de liberdade, igualdade e fraternidade[10]. As leis naturais do mercado não são capazes de promover uma distribuição de riquezas de forma equânime, inviabilizando que todos tenham uma vida minimamente digna. Por essa razão, Dalmo de Abreu Dallari considera que “concedendo-se a todos o direito de ser livre, não se assegurava a ninguém o poder de ser livre”[11].
Por conseguinte, por volta da segunda década do século XX, observou-se a necessidade de se efetivar uma justiça social, por meio da substituição do modelo econômico liberal por um novo modelo de Estado intervencionista. Nessa nova disposição entre Estado, Direito e Economia, o Estado passou a atuar diretamente nas atividades consideradas de interesse coletivo, além de atribuir uma finalidade de justiça social para o mercado, “visando a assegurar a todos condições dignas de vida, de bem-estar comum e desenvolvimento”[12].
A gênese do Estado Social de Direito possui fundamentação nos pensamentos socialistas, em que há uma ampliação das tarefas estatais no campo social, ganhando força a partir das revoluções sociais na Europa - como a soviética de 1917, a italiana de 1923 e a alemã de 1933 -, da Segunda Revolução Industrial, além das duas Guerras Mundiais e da Grande Depressão de 1929[13]. Quanto ao marco histórico, tem-se a Constituição do México de 1917 e a Constituição Alemã de 1919 (República de Weimar).
Dessa forma, o Estado assume a responsabilidade de oferecer à sociedade um mínimo de condições para uma vida digna[14], tonando-se instrumento social para o combate às injustiças sociais, de modo a conter o poder abusivo do capital e prestar serviços públicos[15].
Leciona Paulo Bonavides que o Estado social possui a pretensão de resguardar e aperfeiçoar “uma ordem econômica e social mais justa e mais humana, indissociavelmente atada a dois princípios (...) a liberdade e a igualdade”[16]. Desse modo, o Estado passa a buscar a proteção e a promoção de direitos individuais e sociais, por meio da prestação positiva de atividades estatais na economia e de um papel intervencionista na vida social. Segundo Dalmo de Abreu Dallari:
(...) desaparecem os limites entre o público e o privado, e o Estado antigo mal necessário, passou à condição de financiador, sócio e consumidor altamente apreciado, tendo cada vez mais estimulada sua atitude intervencionista, justamente pelos grupos que mais se opunham a ela[17].
Por consequência, o Estado não mais se abstém de atuar na economia, desenvolvendo diretamente atividades econômicas, buscando a promoção do bem-estar concreto dos cidadãos, a superação da pobreza e das desigualdades e a promoção da dignidade, “reconhecendo a função intervencionista estatal orientada a promover o desenvolvimento econômico e social”[18].
Diante disso, diminui-se quantitativamente a área de autonomia empresarial privada, sendo destinado aos agentes particulares um menor campo de atuação, em contrapartida, qualitativamente, o agente privado continua possuindo uma ampla autonomia, em razão de que o Estado ao desempenhar diretamente as atividades que considera de interesse social, permite que os particulares desenvolvam aquelas atividades que não possuem finalidade imediata de promoção de valores fundamentais, concedendo, assim, maior liberdade em seu exercício.
Com o avanço dos benefícios e vantagens de um Estado de Bem-estar social, a perspectiva de vida aumentou, em consequência disso o número populacional se multiplicou e os custos dos serviços estatais se expandiram, por sua vez, os mecanismos de financiamento estatal não acompanharam tal evolução, acarretando em uma crise fiscal[19]. Soma-se a isso, o fato de que o Estado era apontado como ineficiente em razão do que se considerava, à época, como desperdício de recursos, além da morosidade, a burocracia e a corrupção[20].
No final da década de 1980, com o desaparecimento da União Soviética e da superação da divisão mundial entre países capitalistas e socialistas, o modelo de Estado de Bem-estar Social perde força no cenário global, sendo substituído por uma nova agenda econômica mundial, com ideologias denominadas de neoliberais, com principais propostas de abertura econômica entre as nações, a desestatização e privatização das empresas estatais, a desregulação da economia e a flexibilização das relações de trabalho.
Verifica-se que o Estado neoliberal retoma princípios da teoria liberal clássica, atribuindo o exercício das atividades econômicos aos particulares, reduzindo a esfera de atuação e intervenção estatal. Contudo, apesar desse processo de redução do Estado na economia, verifica-se uma ampliação da atuação estatal sobre a economia, por meio da indução e da direção das atividades econômicas.
Surge, assim, o Estado regulador, em que a autonomia empresarial privada é quantitativamente maior, com redução qualitativa do seu exercício, dado que o Estado passa a orientar o desenvolvimento dessas atividades para que se realizem os fins sociais e a promoção da dignidade humana.
O tema sobre Estado regulador será tratado no artigo da próxima semana, concluindo o tópico de Direito, Estado e Economia.
Notas e Referências
[1] MUSTAFÁ, Rennan Herbert; BENFATTI, Fábio Fernandes Neves. Direito, Estado e Economia: fatores históricos que antecederam o surgimento do Direito Negocial. Empório do Direito, 2020. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/direito-estado-e-economia-fatores-historicos-que-antecederam-o-surgimento-do-direito-negocial
[2] NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
[3] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 278.
[4] PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito descomplicado. 16. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2017.
[5] DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit. p. 280.
[6] MASSO, Fabiano Del. Direito Econômico esquematizado. 14. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2015, p. 33.
[7] SMITH, Adam. A riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Volume II. Tradução: Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 169.
[8] SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 115.
[9] DALLARI, Dalo de Abreu. Op. Cit.
[10] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[11] DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit. p. 280.
[12] CUELLAR, Leila. Abuso de posição dominante no Direito de Concorrência Brasileiro in: CUELLAR, Leila; MOREIRA, Egon Bockmann. Estudos de Direito Econômico. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 32.
[13] TOSHIO MUKAI apud DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Econômico. 7. Triagem. Curitiba: Juruá, 2006.
[14] DANTAS, Ivo. Op. Cit.
[15] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
[16] BONAVIDES, Paulo. Constituinte e constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 51.
[17] DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit. p. 285.
[18] JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 17.
[19] Ibidem.
[20] BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit.
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