DIREITO, ESTADO E ECONOMIA: FATORES HISTÓRICOS QUE ANTECEDERAM O SURGIMENTO DO DIREITO NEGOCIAL  

01/09/2020

Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Herbert Mustafá

Ao longo da história, verifica-se que o grau de autonomia empresarial privada em celebrar negócios jurídicos possui vinculação direta com a forma com que Estado, Direito e economia se relacionam. Nesse sentido, com a premissa de disseminar os estudos sobre o Direito Negocial, é necessário discorrer inicialmente sobre alguns fatores históricos que antecederam o surgimento desse fenômeno.

Na concepção de João Bosco Leopoldino da Fonseca, “a cada momento histórico, direito e economia se relacionam de forma peculiar, como resultado do fenômeno cultural de que são expressão”[1]. Ademais, a regulação econômica somente existe em um Estado constitucionalmente organizado:

Em sentido amplo, pode-se falar em regulação desde quando o Estado obteve o monopólio da força em plena Idade Média. Porém, é com o surgimento da economia de mercado, assim como o Estado de Direito, é que podemos afirmar o surgimento da regulação econômica[2].

Assim, destacam-se dois fatores: o primeiro refere-se à existência de um Estado de Direito, instituído por uma constituição e sob a égide de um ordenamento jurídico; o segundo diz respeito ao surgimento da economia de mercado, constituída pelo sistema capitalista.

Considerando esses aspectos, podemos considerar o advento do Estado moderno como marco inicial da relação entre Estado e economia. Sobre o assunto, aduz Eros Roberto Grau, que “o Estado moderno nasce sob a vocação de atuar no campo econômico”[3]. Complementa o autor que no decorrer da história vislumbra-se que esta forma de Estado passa por alterações apenas em relação ao modo de atuação, sendo num primeiro momento destinado à constituição e à preservação do sistema capitalista e, posteriormente, à substituição e à compensação das falhas do mercado.

Porém, antes de analisar as características do Estado moderno, cumpre observar o ensinamento de Paulo Bonavides, ao aduzir que para a melhor compreensão da nova representação de poder estabelecida no Estado moderno, faz-se necessária uma remissão a elementos históricos que ilustram a evolução da natureza governativa das sociedades ocidentais na Antiguidade e na Idade Média[4]. Nesse sentido, esclarece Vicente Kleber de Melo Oliveira que “a intervenção do Estado na economia passa necessariamente pela análise do modelo de Estado adotado em cada época histórica”[5].

Em suma, o período Teocrático ou do Estado Antigo representa as formas mais remotas da sociedade, começando pelas antigas civilizações do Oriente propriamente dito ou do Mediterrâneo[6]. Tem-se nesse período a figura da Cidade, onde concentram-se todos os poderes.

Conforme leciona Paulo Bonavides, “da cidade se irradiam as dominações, as formas expansivas de força”[7], desencadeando o surgimento dos Impérios, das hegemonias e dos grandes reinos. A concentração personificada de poder e a forma de autoridade secular e divina expressam a vontade de um único titular, representado pelo faraó, pelo rei ou pelo imperador. Não há distinção entre o pensamento político e o pensamento religioso[8].

Assim, na concepção de Dalmo de Abreu Dallari, o Estado Antigo constitui-se:

Numa extremidade, a força bruta das tiranias imperiais típicas do Oriente; noutra a onipotência consuetudinária do Direito ao fazer suprema, em certa maneira, a vontade do corpo social, qualitativamente cifrado na ética teológica da pólis grega ou no zelo sagrados da coisa pública, a res pública da civitas romana[9].

Após o colapso do Império Romano, inicia-se a Idade Média, organizada em feudos e caracterizada pela divisão das classes sociais. Ilustra Paulo Bonavides que nessa época começa a aparecer a figura do Estado “no sentido de instituição materialmente concentradora de coerção, apta a estampar a unidade de um sistema de plenitude normativa e eficácia absoluta”[10].

No que tange às questões econômicas, expõe Pierre Villar que o desenvolvimento dessas atividades ocorria quase que exclusivamente de forma artesanal e corporativa, “não há separação entre os meios de produção e o produtor, não há redução das relações sociais a simples laços de dinheiro, portanto, não há capitalismo”[11].

A transição da Idade Média para o Estado moderno ocorre de forma gradual. Um dos eventos que contribuiu para a mudança da forma de Estado foi a Revolução Burguesa. Citando Norbert Elias, Eros Roberto Grau descreve que “podemos afirmar que o Estado moderno surge, como Estado burguês, quando o poder real monopolizadamente consolidado, nele se transforma”[12].

O Estado moderno caracteriza-se por quatro atributos essenciais, correspondendo à soberania, ao território, ao povo e à finalidade. Quanto à soberania, o Estado moderno constitui-se por uma concentração do poder de coordenar e conduzir a sociedade, representado por uma autoridade com esse poder[13], constituindo a unidade política soberana do Estado. Nas lições de Luigi Ferrajoli, a ideia de soberania corresponde ao poder supremo que não reconhece outro acima de si[14].

No início, a sociedade moderna nasce absolutista, teorizada e concretizada “na qualidade superlativa de autoridade central, unitária, monopolizadora de coerção”[15]. Tal fato acontece em decorrência da transferência do monopólio das armas e do poder militar de todo o estado nobre para as mãos de um único representante do Estado, o rei ou o príncipe, que, em razão da cobrança de tributos, possuía condições financeiras de manter o maior exército[16].

Esse período é considerado como o marco inicial dos estudos da relação entre Estado e economia, pois, segundo os ensinamentos de João Bosco Leopoldino da Fonseca, nesse momento “começam a delinear-se as diversas formas de atuação do Estado no que respeita à condução de políticas econômicas”[17], em razão do desenvolvimento das atividades mercantilistas e do uso de metais preciosos como instrumento de troca, fazendo despertar na sociedade, o espírito capitalista[18].

Isso só foi possível a partir da delimitação das esferas do público e do privado, processo que se altera com o desenvolvimento do capitalismo, ao vincular mais a dicotomia público-privado aos interesses da sociedade. De acordo com Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, a esfera pública refere-se ao espaço em que se decide o conteúdo das determinações de governo, enquanto que a esfera privada se trata do local onde residem os interesses e onde estão os agentes que, a um só tempo, são destinatários e beneficiários da governação[19].

O capitalismo representa um sistema econômico fundado na propriedade privada dos meios de produção, sob o prisma do livre mercado. Eros Roberto Grau, citando José Afonso da Silva, descreve:

(...) a essência do capitalismo não se encontra contida na consagração da propriedade privada dos bens de produção, porém na posição ocupada pelo indivíduo diante da produção social, mercê da qual o acesso a ela se dá através do intercâmbio (...)[20]

A sociedade moderna constitui-se, portanto, em um regime Monárquico Absolutista de Direito Divino, caracterizado pelo respeito e fidelidade do monarca às hierarquias eclesiásticas, formando uma aliança entre o monarca e a divindade, o que, consequentemente, representava um sistema de freio ao poder soberano[21].

Posteriormente, separam-se os laços teológicos e metafísicos, utilizando-se de bases filosóficas e consensuais, em período caracterizado pela transferência de poder, visto que a fundamentação do poder já não emana mais da divindade, mas do homem[22].

A transformação do Estado absolutista para Estado constitucional advém da insatisfação da classe burguesa. A ascensão política, até se tornar a classe dominante, realizou-se por meio de conflitos e da luta pelo fim dos privilégios fornecidos à monarquia, culminando nos ideais revolucionários da segunda metade do século XVIII[23]. Além disso, o desdobramento dos ideais de liberdade dos pensadores iluministas, proclamados durante a revolução, resultou no fim de diversos Estados absolutistas[24].

A queda da Bastilha concedeu ao Estado moderno uma nova identidade institucional, “representando a redenção das classes sócias em termos de emancipação política e civil”[25]. A Revolução Francesa promoveu a transparência do monopólio da força física e da tributação, do poder pessoal do monarca para monopólios públicos, controlados institucionalmente[26]. Paulo Bonavides considera que nesse período, abre-se “para as instituições de governo o pórtico ao ingresso iminente na civilização política das Leis Fundamentais (...) A mudança havida dá começo à ideia do Constitucionalismo, o poder já não é de pessoas, mas de leis”[27].

Dessa evolução chega-se ao Estado contemporâneo, podendo ser definido como o núcleo de competência política, desenvolvendo o poder decisório de efetivação de fins coletivos estabelecidos em determinada sociedade, por meio do monopólio do processo de elaboração normativa e, ao mesmo tempo, submetido aos imperativos do Direito.

Atualmente, grande parte dos países adota uma nova forma de modelo econômico, denominada de Estado regulador, trazendo implicações diretas na autonomia empresarial privada, tema que será discutido na próxima semana.   

 

Notas e Referências

[1] LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Direito Econômico. 5. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 250.

[2] BARROS FILHO, Fernando do Rego. O impacto da regulação ambiental na atividade agropecuária brasileira: efetividade e proporcionalidade das normas vigentes In: MOREIRA, Egon Bockmann; MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Direito Concorrencial e regulação econômica. Coordenadores: Egon Bockmann Moreira; Paulo Todescan Lessa Mattos. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 418.

[3] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 17.

[4] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

[5] OLIVEIRA, Vicente Kleber de Melo. A intervenção do Estado na economia In: POMPEU, Gina Marcílio. Estado, Constituição e Economia. Gina Marcílio Pompeu (org.). Fortaleza: Fundação Edson Queiroz, 2008, p. 62.

[6] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

[7] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 32.

[8] GETTEL apud DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit.

[9] DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit. p. 32.

[10] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 32.

[11] VILLAR, Pierre. A transição do feudalismo ao capitalismo In: SANTIAGO, Theo. Do feudalismo ao capitalismo: uma discussão histórica. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2012, p. 38.

[12] ELIAS apud GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. p. 14.

[13] MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2002.

[14] FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Trad. Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho. Revisão da tradução: Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[15] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 33.

[16] ELIAS apud GRAU, Eros Roberto. Op. Cit.

[17] LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Op. Cit. p. 252-253.

[18] Ibidem.

[19] MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 30.

[20] SILVA apud GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. p. 175.

[21] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] PIRES, Antonio Fernando. Direito constitucional. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.

[25] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit, p. 40.

[26] GRAU, Eros Roberto. Op. Cit.

[27] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 40.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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