DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA A CRIANÇA OU ADOLESCENTE – NOVO CRIME PREVISTO NO ART. 25 DA LEI 14.344/22 – LEI HENRY BOREL  

23/06/2022

A Lei n. 14.344/22, batizada de Lei Henry Borel, foi sancionada pelo Presidente da República no dia 24 de maio de 2022, criando mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra criança e adolescente, além de alterar o Código Penal, a Lei de Execução Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Crimes Hediondos, dente outros diplomas.

Em seu art. 2º, a nova lei estabeleceu que configura violência doméstica e familiar contra criança e adolescente qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial, no âmbito do domicílio ou da residência da criança e do adolescente, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que compõem a família natural, ampliada ou substituta, por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; e em qualquer relação doméstica e familiar na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação.

Inclusive, no art. 15, a lei determina ao juiz que, recebido o expediente com o pedido em favor de criança e de adolescente em situação de violência doméstica e familiar, adote diversas providências no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, dentre elas conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; determinar o encaminhamento do responsável pela criança ou pelo adolescente ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso; comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis; e determinar a apreensão imediata de arma de fogo sob a posse do agressor.

Vale destacar que as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, da autoridade policial, do Conselho Tutelar ou a pedido da pessoa que atue em favor da criança e do adolescente. O juiz não pode conceder de ofício as medidas protetivas de urgência. Inclusive, estabelece a lei que as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, o qual deverá ser prontamente comunicado, podendo, ainda, ser aplicadas isolada ou cumulativamente e ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos na lei forem ameaçados ou violados.

A questão que se coloca no presente artigo diz respeito justamente às consequências do descumprimento das medidas protetivas de urgência concedidas em favor de criança ou adolescente em situação de violência doméstica e familiar.

Para tanto, assim como já havia acontecido no bojo da Lei n. 11.340/06 – Lei Maria da Penha (vide art. 24-A), a Lei Henry Borel estabeleceu uma nova figura típica em seu art. 25, do seguinte teor:

“Art. 25. Descumprir decisão judicial que defere medida protetiva de urgência prevista nesta Lei:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

§1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu a medida.

§2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.

§3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.”

Inicialmente, é preciso saber se a nova infração penal, em razão do montante da pena cominada, pode ser considerada de menor potencial ofensivo, aplicando-se as disposições da Lei n. 9.099/95.

Cremos que não. Não se trata de infração penal de menor potencial ofensivo, não apenas em razão do disposto no §1º do art. 226 do Estatuto da Criança e do Adolescente, acrescentado pela própria Lei Henry Borel, que veda a aplicação da Lei n. 9.099/95 aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, como também em virtude do que dispõe o §2º do novel art. 25, estabelecendo que, na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. No caso dessa última regra, a inafiançabilidade do crime em sede policial evidencia a gravidade da conduta, retirando a infração penal do âmbito daquelas de menor potencial ofensivo.

O crime em comento tem como objetividade jurídica a Administração da Justiça, garantindo o caráter cogente das determinações judiciais. A tutela recai, também, sobre a proteção integral a crianças e adolescentes, estampada no art. 227 da Constituição Federal, assegurando-lhes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa. Trata-se de crime comum. Sujeito passivo é o Estado, já que se cuida de uma modalidade de desobediência. Secundariamente, também figuram como sujeitos passivos o magistrado que deferiu a medida protetiva de urgência e a criança ou adolescente em situação de violência doméstica e familiar, atingidos pelo descumprimento da decisão.

A conduta típica vem caracterizada pelo verbo “descumprir”, que significa desobedecer, transgredir, infringir. O objeto material é a “decisão judicial que defere medida protetiva de urgência prevista nesta Lei”. Portanto, a conduta deve recair sobre a “decisão judicial” que defere a medida protetiva de urgência. Caso se trate de descumprimento de decisão de afastamento do agressor do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima, em caso de ação ou omissão que implique a ameaça ou a prática de violência doméstica e familiar, com a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da criança e do adolescente, ou de seus familiares, determinado pelo delegado de polícia ou por policial, nas hipóteses previstas nos incisos II e III do art. 14 da lei, estará tipificado o crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal.

Impende destacar que o art. 20 da Lei Henry Borel estabelece que, constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente nos termos desta Lei, o juiz poderá determinar ao agressor, de imediato, em conjunto ou separadamente, a aplicação das seguintes medidas protetivas de urgência, dentre outras: a suspensão da posse ou a restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826/03; o afastamento do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima; a proibição de aproximação da vítima, de seus familiares, das testemunhas e de noticiantes ou denunciantes, com a fixação do limite mínimo de distância entre estes e o agressor; a vedação de contato com a vítima, com seus familiares, com testemunhas e com noticiantes ou denunciantes, por qualquer meio de comunicação; a proibição de frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da criança ou do adolescente, respeitadas as disposições da Lei nº 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente; a restrição ou a suspensão de visitas à criança ou ao adolescente; a prestação de alimentos provisionais ou provisórios; o comparecimento a programas de recuperação e reeducação; e o acompanhamento psicossocial, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

Além disso, o art. 21 estabelece medidas protetivas de urgência à vítima, podendo o juiz, quando necessário, determinar a proibição do contato, por qualquer meio, entre a criança ou o adolescente vítima ou testemunha de violência e o agressor; o afastamento do agressor da residência ou do local de convivência ou de coabitação; a prisão preventiva do agressor, quando houver suficientes indícios de ameaça à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência; a inclusão da vítima e de sua família natural, ampliada ou substituta nos atendimentos a que têm direito nos órgãos de assistência social; a inclusão da criança ou do adolescente, de familiar ou de noticiante ou denunciante em programa de proteção a vítimas ou a testemunhas; no caso da impossibilidade de afastamento do lar do agressor ou de prisão, a remessa do caso para o juízo competente, a fim de avaliar a necessidade de acolhimento familiar, institucional ou colação em família substituta; e a realização da matrícula da criança ou do adolescente em instituição de educação mais próxima de seu domicílio ou do local de trabalho de seu responsável legal, ou sua transferência para instituição congênere, independentemente da existência de vaga.

É importante ressaltar, outrossim, que, de acordo com o disposto no §2º do tipo penal em comento, a configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu a medida. Portanto, a lei deixa claro que tanto o juiz criminal quanto o juiz cível ou da infância e juventude podem deferir medidas protetivas de urgência em caso de criança ou de adolescente em situação de violência doméstica e familiar.

Trata-se de crime doloso, que se consuma com o efetivo descumprimento da decisão judicial, que pode se dar por ação (quando a decisão implicar em uma abstenção por parte do agente) ou por omissão (quando a decisão implicar em uma atuação positiva por parte do agente). A tentativa é admissível apenas na forma comissiva, já que, em caso de omissão, o “iter criminis” não admite fracionamento.

Por fim, a ação penal é pública incondicionada e o procedimento será o comum sumário, uma vez incabível o procedimento sumaríssimo previsto na Lei n. 9.099/95 em sua integralidade e não apenas seus institutos despenalizadores. O processo poderá se desenvolver perante os juizados ou varas especializadas, criadas nos termos do disposto no art. 23 da Lei n. 13.431/17.

 

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