Deixa o mercado resolver! A Pandemia e a irracionalidade econômica  

25/05/2020

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

Ah! Essa história de dor
Buscar o amor sem vitória
Voltar feliz, sem memória,
Ao paraíso terreal.
(Belchior, Amor e crime)

Em um tempo em que muitos anunciam o fim das grandes narrativas teóricas, o mercado se apresenta como uma narrativa operacional apta a justificar e decidir sobre os rumos da vida humana, pondo-se por trás da razão instrumental, ele se impõe como instância que dita os rumos da vida das pessoas e das nações. Mais que um critério deliberativo, ele é o locus decisório global.

A soberania do mercado o coloca com força superior às instâncias políticas, a democracia se firma como um valor acessório ao mercado, autorizada a funcionar moldada pelos seus interesses, quando incapaz de dar conta deles, deve dar lugar ao autoritarismo. Desse modo, a ideia de soberania do mercado dita como a política funciona e se funciona, estabelecendo uma forma de tutela dos sujeitos cada vez mais dispostos a abrir mão da sua liberdade em nome da liberdade do mercado.

Diante das dúvidas da razão e da angústia do pensar, em um mundo que valoriza a objetividade e a praticidade, se dá a mitificação do mercado, assumindo a forma de uma divindade mundana com uma razão perscrutável: a relação de oferta e de procura. Nela a ideia de força e adaptação são tidas como fontes de ganho para todos, menos para os fracos, ou seja, a maioria. Assumindo assim um contorno religioso, naquilo que Assmann chama de idolatria do mercado;

O paradigma do mercado irrestrito inclui, na sua pretensão de caminho inclusivo e universal, o reclamo de uma adesão incondicional. Exige-se uma fé irrestrita e uma confiança ilimitada no caráter benéfico da lógica econômica do paradigma. Tendo presentes muitas ressonâncias bíblicas da linguagem dos profetas acerca do que os ídolos prometem , mas não podem dar, diríamos em resumo: trata-se de um paradigma que pretende explicar por onde a vida adquire sentido, como se viverá livre e feliz, qual é a base da segurança individual e social, que caminho seguir para o bem comum, em que consiste o progresso material e espiritual dos povos. Nas suas formas mais exacerbadas, mas que não são outra coisa que o desdobramento consequente da lógica do paradigma, aparece a exclusão explícita de uma busca, coletivamente participada, de metas sociais prioritárias e uma anulação prática dos temas sociais mais candentes, mediante dogma de que nos é impossível adquirir certeza e consciência acerca de objetivos desse tipo devendo ser confiada a sua melhor efetivação à própria lógica dos mecanismo do mercado. Em síntese, o reclamo de adesão incondicional se reveste com todas as características da fé religiosa mais dogmática e inconcussa.[1]

A exemplo de outras divindades, o mercado também estabelece o sacrifício humano como forma de purgação, visto como destino “natural” dos incapazes desprovidos de força e adaptabilidade, os quais não são dignos de compaixão, mas de imputação por sua fraqueza, por sua descartabilidade, mas principalmente pela pouca lucratividade. A performance produtiva individual é o fiel da balança que determina a incidência do binômio mérito e culpa; àqueles que não trazem resultados, cabe a punição. Sacrifício também passa a ser usado como sinônimo do esforço necessário para “vencer”, ou seja, aplicar todas as força vitais na produção até esgotar-se, com a possibilidade de redenção ou recompensa dada pelo consumo.

Neste quadro, os explorados passam a ser vistos com medo, desprezo e ódio, por outro lado, os exploradores se firmam no imaginário social como vencedores, detentores das habilidades a serem copiadas. A luta política dá lugar à luta individual, contra o outro, não contra o sistema político ou o modo de produção, a ascensão social passa a ser buscada por meio do investimento em si próprio ou pelo descenso daqueles que se situam na mesma posição social.

O comportamento daí decorrente é a indiferença às causas sociais dos problemas que afetam as pessoas, elas passam a ser ocultadas pela culpabilização dos setores mais fragilizados. Imbuídas da ideologia neoliberal, os indivíduos não vislumbram as causas das mazelas da sociedade, e imputam culpas. Por conta disso, não são percebidas as vítimas dos processos políticos, econômicos e sociais, ao invés disso são reconhecidas como culpadas pelo próprio demérito.

O discurso que enfatiza o mercado como uma arena de méritos se sustenta pela força da reiteração ideológica, pois ele não seleciona  os melhores, mas sim os mais baratos, sejam produtos, sejam pessoas, as quais necessitam abrir mão da sua dignidade, estas são mercadorizadas devendo encaixar-se também aos cálculos  de custo-benefício.

Do “comunismo chinês” ao neoliberalismo ocidental, é comum a ideia de que a democracia faz mal ao mercado, entre uma e outro a opção é pelo mercado. A razão dessa incompatibilidade decorre de que a democracia, em suas formas autênticas, implica o esforço para a satisfação das necessidades de todos na multiplicidade de suas dimensões, enquanto que o mercado trata da defesa do interesse de poucos. Desse modo, a incompatibilidade se “resolve” quando a democracia reflete de forma inconteste os interesses de quem impera no mercado, nesta hipótese a convivência é pacífica. Contudo, a pandemia causada pelo Coronavírus vem explicitar a lógica mercadológica, na qual as vidas podem ser descartadas para a manutenção do lucro.

A salvação de vidas depende da luta por reabilitar a escolha popular ante os ditames da acumulação que orientam o mercado. Para isso, o livre-arbítrio não pode limitar-se a ser uma escolha de consumo, necessita converter-se na capacidade das vítimas estabelecerem a sua saciedade como razão de ser da produção econômica. Logo, o mercado precisa ser visto como a fronteira da luta libertária e emancipatória da atualidade.

Assim sendo, a superação dessa e de outras tragédias humanitárias possuem uma condição incontornável: a capacidade de a luta política dos oprimidos estabelecer as razões do povo para além dos interesses de mercado, bem como, as necessidades humanas para além do acúmulo. Estes são os sinais do sino, que neste tempo soando repete: “ se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou  teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”.[2]

 

 

Notas e Referências

[1] ASSMANN, Hugo;  A idolatria do mercado. In:_______________ HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado: ensaios sobre economia e mercado. Vozes: São Paulo, 1989, p.251.

[2] DONE, John. Meditações. Landmark: São Paulo, 2007, p. 251.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justice // Foto de:Becky Mayhew // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/picture_imperfect/2921579484

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura