Por Tiago Gagliano Pinto Alberto e Marina Osowski - 09/09/2015
Olá a todos!!!
Nesta semana, escrevo em parceria com a talentosa Marina Osowski, pós-graduada na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e assessora em Segundo Grau de Jurisdição no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Vamos aos temas!
Mauro Benedetti, em seu compilado de pequenos relatos intitulado A borra do café, nos contempla com um episódio em que o Claudio – fusão de um fictício jovem uruguaio com as memórias do escritor –, proseando com seu avó Vicenzo, questiona como o ancião salvou-se de um famoso naufrágio. A resposta foi franca: “Muito simples”, disse ele, “perdi o barco em Gênova. Cheguei ao porto meia hora depois de sua partida asquerosamente pontual. Tentei conseguir uma lancha que me levasse até o vapor (ainda estava à vista). Para minha sorte, fracassei na tentativa. Quando, dez dias depois, fiquei sabendo que o navio tinha afundado em pleno Altântico, não me ocorreu nada menos egoísta do que comemorar o fato com um garrafão de Chianti. Sei que fiz mal, que devia ter pensado nos outros; hoje, não repetiria isso, mas naquela época eu era muito jovem e ainda não tinha aprendido a ser hipócrita”.[1]
O breve e sagaz acontecimento narrado pelo escritor uruguaio, a despeito da descontração alastrada na conversa entre avó e neto (da estória, relata Claudio, seguiu-se uma “gargalhada florentina” que ressoou no pátio “como um carrilhão”), revela-nos que as razões para uma ação[2] podem ser particulares (a perspicácia do conto reside, justamente, na quebra de expectativa na fala de Vicenzo acerca de seu comportamento após o transcurso do tempo). Da mesma forma, é inevitável que o juiz, ao se deparar com o caso a ser julgado, a ele transmita suas impressões particulares.
Na oportunidade em que julgou o alcance da norma coletiva que regulou os critérios de concessão do auxílio-creche, o TST decidiu que referida norma não feria a isonomia por não contemplar, como beneficiários, os pais casados ou os solteiros ou separados sem a guarda dos filhos. O Tribunal restringiu o alcance da norma às mães, de forma geral, e aos pais viúvos, solteiros ou separados que tivessem a guarda dos filhos. Como fundamento para decidir, lançou considerações sobre a teoria filosófica de Edith Stein, santa da igreja católica nascida no séc. XIX. Assim consignou o Min. Relator:
“Para Edith Stein (...) cada um dos sexos teria sua vocação primária e secundária, em que, nesta segunda, seria colaborador do outro: a vocação primária do homem seria o domínio sobre a terra e a da mulher a geração e a educação dos filhos (...) Por isso, a mulher deve encontrar, na sociedade, a profissão adequada que não a impeça de cumprir sua vocação primária, de ser ‘o coração da família e a alma da casa’, O papel da mulher é próprio e insubstituível, não podendo limitar-se à imitação do modo de ser masculino.
Neste diapasão, levando-se em consideração a máxima albergada pelo princípio da isonomia, de tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades, ao ônus da dupla missão, familiar e profissional, que desempenha a mulher trabalhadora, corresponde o ônus da jubilação antecipada e da concessão de vantagens específicas, em função de suas circunstancias próprias, como é o caso do auxílio-creche.
Assim, ‘in casu’, o objetivo da norma coletiva da Reclamada não foi criar uma vantagem salarial para os empregados que possuíssem filhos em idade de frequentar creche, para fazer frente às despesas respectivas, mas sim de facilitar a prestação dos serviços dos empregados que estivessem diretamente envolvidos com o cuidado dos filhos pequenos (...)”.[3]
No campo da argumentação prática, o modelo de razão para ação proposto pelo particularismo defende, de modo geral, que “as razões que podem ser apresentadas para justificar uma decisão são razões enraizadas no caso particular”[4]. É dizer, uma determinada propriedade, a depender das circunstâncias que a envolve, pode prestar-se como uma razão a favor ou contra a realização de uma determinação ação – ou pode ser absolutamente relevante para tal. Por este raciocínio, não há possibilidade de correlatar certa circunstância de fato, da qual resultou específica consequência deôntica, com uma razão universal.[5]
De outro lado, as teses universalistas partem do pressuposto de que a constatação de que, de específica propriedade, decorre específica consequência deôntica, possibilita que a razão que embasou a relação seja consagrada como norma e, portanto, tenha alcance universal. Neste passo, a relevância da razão extrapola o caso particular do qual se originou, alcançando e permeando outras situações que envolvam a mesma circunstância e o mesmo resultado. O resultado deste encadeamento é a universalização de razões que, coincidentes no âmbito fático ou normativo, justificarão o desenvolvimento de ulteriores condutas e decisões, em um sistema que se retroalimenta.
Transportando as ideias para o campo da argumentação jurídica (espécie de argumentação prática), importante frisar, à partida, que em um Estado de Direito obrigatoriamente haverá normas que, em primeira visada, serão fundadas em razões universais. De sua vez, como já dito, é imanente ao ser humano que as razões pelas quais ele age de determinada forma são pautadas, necessariamente, pelas particularidades envolvidas. Como conciliar, então, as duas concepções?
Na última coluna publicada, foram lançadas breves considerações sobre as teorias de interpretação – de viés mais subjetivos, em vista da abertura à valoração – e acerca das teorias da norma jurídica – de natureza mais objetiva, porque focadas na norma jurídica.
A terceira possiblidade mencionada – simbiose de ambas as teorias – consiste na apropriação das ideias particularistas e universalistas acima mencionadas. Para que haja uma relação justificadora entre razão e decisão, é preciso que, em primeiro lugar, as razões para a ação sejam identificadas, o que renderá ao decisor a possibilidade de tão somente enunciá-las, em movimento meramente declaratório e dotado de legitimidade, porque fulcrado na aceitação já previamente existente[6]. Em seguida, proferida a decisão, deverá haver preocupação em universalizar as razões assumidas, o que conferirá coerência ao sistema, ao tempo em que concatenará a interpretação à aplicação, afastando a utilização de argumentos defeituosos.
Ao que se pode perceber, assim como a apriorística concepção da Justiça se revela inviável – como analisado em outra semana nesta coluna –, também a escolha particularista ou universalista isolada não atende à tomada de decisão.
O que atenderá, então? Na próxima semana descobriremos.
Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!
Notas e Referências:
[1] BENEDETTI, Mario. A borra do café. Tradução Joana Angélica d’Avila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 19.
[2] O termo “razões” foi empregado, aqui, em sentido amplo (em verdade, fala-se, dos motivos que levaram Vicenzo a agir da forma relatada). O tema será retomado adiante.
[3] TST, RR 5200-40.2003.5.22.0003, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho. Tomou-se conhecimento de referido julgado por meio da obra de José Rodrigo Rodriguez (Como decidem as Cortes?), na qual o autor, ao citar o precedente, faz uma análise acerca da racionalidade por detrás dos argumentos delineados pelo Relator.
[4] MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito – Uma teoria da argumentação jurídica. Tradução de Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 110.
[5] REDONDO, María Cristina. Razones y normas. Íntegra disponível em http://www.cervantesvirtual.com/obra/cristina-redondo-sobre-razones-y-normas-0/. Acesso em 07 setembro 2015.
[6] Indicando a legitimidade como aceitação: ARNIO. Aaulis. Lo racional como razonable. Um tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.”
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Marina Osowski, pós-graduada na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e assessora em Segundo Grau de Jurisdição no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
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imagem Ilustrativa do Post: Inch Beach sunset, County Kerry, Ireland // Foto de: Mr Seb // Sem alterações
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