DECISÃO DE PRONÚNCIA E O PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO SOCIETATE”

13/08/2020

Em artigo anterior publicado nesta coluna, tivemos a oportunidade de analisar uma decisão do Supremo Tribunal Federal em que se afastou a aplicação do princípio “in dubio pro societate” na primeira fase do procedimento especial do Tribunal do Júri, sendo acolhido o voto do relator, Ministro Gilmar Mendes.

Na oportunidade, ressaltamos que o Supremo Tribunal Federal, ao acolher o voto do ilustre relator Ministro Gilmar Mendes (Recurso Extraordinário com Agravo 1.067.392), em nenhum momento negou a existência do princípio “in dubio pro societate”, embora o tivesse criticado severamente, expondo e reafirmando que, naquele caso concreto, não deveria o Tribunal de Justiça do Ceará tê-lo aplicado, mas, antes, deveria ter prestigiado a decisão do juiz de primeiro grau, que havia decidido pela impronúncia dos acusados. O Ministro Gilmar Mendes deixou claro em seu voto que, “embora existam precedentes deste Supremo Tribunal Federal no sentido de uma aplicação sem maiores cautelas de tal princípio, inclusive de minha relatoria, creio que esta é situação que carece de atenta análise.”

Agora voltamos ao assunto, que tanta celeuma instala na doutrina e na jurisprudência, por conta de recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, proferida nos autos do REsp 1.840.262/RS, tendo como relator o Ministro Rogério Schietti Cruz, que reafirmou a plena aplicabilidade do princípio “in dúbio pro societate” na primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, em que o magistrado deve se restringir à existência de materialidade e de indícios suficientes de autoria, abstendo-se de análise da prova e de ilações que desbordem da competência e do momento processual, ficando adstrito aos fins e limites da pronúncia, peça que encerra mero juízo de admissibilidade da inicial acusatória.

Nunca é demais lembrar que, no Brasil, a instituição do Tribunal do Júri foi implantada em 1822, para julgar os crimes de imprensa. Em 1824, na Constituição do Império, o Tribunal do Júri passou a compor o Poder Judiciário, cuja competência foi ampliada para julgar as infrações civis e criminais.

A instituição foi mantida na Constituição de 1891 e nas demais Cartas e Emendas Constitucionais brasileiras que a sucederam, à exceção da Constituição de 1937.

Atualmente, na Carta de 1988, dispõe o art. 5º, XXXVIII:

“Art. 5º (...) XXXVIII -  é reconhecida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;  

c) a soberania dos veredictos;  

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”

Portanto, é pacífico que, além dos princípios constitucionais assegurados a todos os julgamentos (devido processo legal, ampla defesa, contraditório etc), o art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, enumera quatro princípios fundamentais pertinentes ao Tribunal do Júri: a) plenitude de defesa, b) sigilo das votações; c) soberania dos veredictos e d) competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

É cediço também, e já afirmamos em artigo anterior sobre o mesmo tema polêmico, que, na doutrina pátria, sempre foi dominante a concepção de que, ao término da primeira fase do procedimento do Júri, prevaleceria o princípio “in dubio pro societate”, de modo que o juiz singular, em caso de dúvida, deveria encaminhar o réu ao plenário do Júri, onde ele enfrentaria o julgamento democrático, legítimo e constitucional pelos seus pares.

Essa concepção de há muito vem enfrentando oposição por parcela da doutrina que sustenta a aplicação, em ambas as fases do procedimento especial do Júri, do princípio “in dubio pro reo”, de modo que, havendo dúvida acerca da existência de indícios de autoria e prova da materialidade, deveria o julgador singular impronunciar o réu.

O Superior Tribunal de Justiça, nesse aspecto, prestigiou a primazia do “in dubio pro societate” na primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, tendo o voto vencedor do Ministro Relator, no recurso especial acima mencionado, ressaltado expressamente que “a decisão de pronúncia consubstancia um mero juízo de admissibilidade da acusação, razão pela qual basta que o juiz esteja convencido da materialidade do delito e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação para que o acusado seja pronunciado, consoante o disposto no art. 413 do Código de Processo Penal.”

Reconheceu, ainda, o ilustre Relator que, “vis-à-vis a jurisprudência dos Tribunais Superiores, a questão tem-se resolvido a favor da aplicação do mencionado brocardo latino.”

Assim sendo, reafirmamos que o princípio “in dubio pro societate” deriva naturalmente do princípio da soberania dos veredictos, expressamente consagrado, no Tribunal do Júri, no inciso XXXVIII, alínea “c”, do art. 5º da Constituição Federal, corolário da mais pura expressão popular democraticamente erigida à categoria de preceito constitucional pétreo, cuidando-se de princípio constitucional implícito que deve nortear o juiz singular na primeira fase do procedimento do Júri.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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