Por João Paulo Orsini Martinelli – 25/11/2016
O recente lançamento do Netflix, o documentário “13th” – título que faz referência à décima-terceira emenda à Constituição dos EUA – é um verdadeiro choque de realidade do sistema penitenciário norte-americano e que, em grande parte, serve de reflexão para o cotidiano forense penal brasileiro. O presente texto não é uma crítica especializada da obra – pois sequer tenho formação para isso – mas sim as impressões de um penalista sobre tudo que foi retratado pela diretora Ava DuVernay e a necessidade de pensar o sistema penal de forma crítica, sem ficar preso ao puro legalismo. Engolir a lei penal sem buscar conhecer seus fundamentos, históricos ou atuais, é uma atitude perversa de quem vive na comodidade dispensada a poucos.
A décima-terceira emenda entrou em vigor em 1865 com o fim de abolir a escravidão e a servidão voluntária. A partir da emenda, toda pessoa tem o direito de permanecer livre e qualquer tipo de privação de liberdade está proibida, exceto como punição pela prática de crime. Assim, o regime escravocrata realmente foi encerrado, no entanto, havia muitos negros livres que, anteriormente fontes de riqueza de seus donos, eram vistos como inconvenientes à elite branca, pois a convivência entre todos tornou-se inevitável. Portanto, quase no mesmo instante, os seres considerados inferiores tornaram-se improdutivos e passaram a dividir os mesmos espaços públicos.
Com a necessidade de afastar os negros dos mesmos espaços e torna-los novamente lucrativos, diversas condutas inofensivas foram criminalizadas, de modo a aprisionar o maior número possível de pessoas que pudessem trabalhar nos estabelecimentos penitenciários. O sistema penal foi o instrumento da elite branca para matar dois coelhos com uma só cajadada. Obviamente, as condutas criminalizadas incidiam sobre os mais vulneráveis, como, por exemplo, a vadiagem, a mendicância e os pequenos furtos (inclusive o furto famélico). A população carcerária, a partir de então, começou a crescer e tomar um formato que persiste até hoje: apesar de os negros serem minoria na população norte-americana, formavam (e formam) a maioria dos apenados. Atualmente, a imensa população carcerária dos EUA, algo em torno de 2,5 milhões de pessoas, é formada em maior percentual por negros e latinos.
Em síntese, a história recente dos EUA é marcada por um movimento de expansão do sistema penal, cujos intuitos são aumentar a população carcerária, incrementar os lucros das empresas privadas responsáveis pela administração dos presídios, fornecer mão de obra barata dos presos a quem tiver interesse, estimular a indústria de segurança privada (especialmente de armas de fogo) e coibir o fluxo migratório. Fica claro que quanto mais pessoas presas, melhor para o sistema de produção agrícola e industrial. Há quem diga que preso tem obrigação de trabalhar e que nada há de errado nessa cadeia produtiva. Acontece que o sistema penal estadunidense permite ao Estado “comprar” a culpa de alguém com a oferta de uma pena menor ao invés de iniciar um processo draconiano cujo desfecho, certamente, seria uma pena absurdamente maior. Qualquer indivíduo, por mais inocente que seja, está sujeito a cair nos tentáculos do acusador, uma vez que a mera suspeição, em diversos estados, autoriza a prisão e a detenção, independentemente de flagrante.
No Brasil, a situação não é muito diferente. Após a abolição da escravidão formal, em 1888, o sistema penal foi bastante cruel com os negros. A criminalização de condutas inofensivas, sem qualquer lesividade relevante, foi tática para afastar os recém-libertados da convivência pública. Infrações penais como vadiagem e a prática da capoeira tinham como destinatários os anteriormente escravos, pois eram eles os desempregados, que perambulavam pelas ruas, e os praticantes da capoeira. No retrato atual da população carcerária, segundo dados do INFOPEN, os três crimes que mais aprisionam os homens são o tráfico de drogas, o roubo e o furto. Em relação ao tráfico, não há, nas estatísticas, distinção entre grandes e pequenos traficantes, porém, pela imensa quantidade de réus assistidos pela Defensoria Pública, ou seja, pela ausência de advogados privados, pode-se concluir que a maioria são pequenos traficantes. No crime de roubo, não há qualquer separação entre os roubos com ou sem arma de fogo e o valor subtraído, bem como no grupo dos furtos. Por outro lado, os crimes contra a Administração Pública, normalmente praticados por pessoas de alto poder aquisitivo, sequer aparecem nos números.
Em síntese, pode-se dizer que o Estado, por meio das polícias, do Ministério Público, do Poder Judiciário e de demais órgãos da Administração Pública, é implacável com as pessoas de menor poder aquisitivo e muito conivente com os mais ricos. Basta verificar que 61,67% da população carcerária é composta por negros e pardos, enquanto os mesmos representam 53,63% da população brasileira. Outra informação que afirma a desigualdade repressiva é que 75% dos presos possuem até o ensino fundamental completo, ou seja, são pessoas pouco instruídas, pobres e sem acesso ou estímulo à educação. Esse panorama deve ser enxergado com outros dados: a população carcerária brasileira é a quarta maior do mundo, ficando atrás apenas de EUA, China e Rússia. Não obstante, esses três países estão em ritmo de diminuição, enquanto o Brasil apresenta crescimento constante. A tendência, portanto, é de chegarmos em breve ao terceiro lugar.
Em grande parte, o documentário norte-americano pode ser utilizado para retratar a realidade brasileira. Um sistema penal seletivo, injusto e cruel. O Estado é conivente com a situação, punindo pessoas mais vulneráveis por crimes não tão graves. O pequeno traficante não é o responsável pelo tráfico, assim como nem todo roubo é praticado com uso de violência ou ameaça com arma. Para o furto, então, sequer deveria se pensar em qualquer tipo de privação de liberdade. Enquanto isso, grandes volumes de recursos públicos são desviados e não utilizados para a instalação e ampliação de políticas públicas, que poderiam reduzir drasticamente a criminalidade. Para os crimes do “colarinho branco” sempre a mesma desculpa, o excesso de recursos, como se o Estado fosse refém dos advogados e não houvesse um aparato que, quando quer, funciona bem.
Há quem interessa manter o sistema prisional dessa maneira? Por que manter tantos encarcerados? Privar alguém de sua liberdade somente se justifica quando o crime praticado for realmente grave e não houver outra solução menos desgastante. Não adianta apenas o discurso teórico do direito penal mínimo se a prática é completamente diferente. O Brasil possui 40% de seus presos ainda sem julgamento, presumivelmente inocentes. Colocar um sujeito atrás das grades porque é “mula” do tráfico e deixar o líder do grupo solto nada adianta, pois outra “mula” aparece. Prender alguém que tenta furtar uma barra de chocolate ou qualquer coisa do gênero é desumano, além de ineficaz. Precisamos de uma nova Lei Áurea para o sistema penal ou o direito penal perderá sua razão de existir.
. João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro. .
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