Da felicidade ao êxtase pelo chicote: submissão aos meios, glória aos fins

22/04/2017

Por Maurício Fontana Filho – 22/04/2017

Quanto dentro de um organismo, as partes seguem os impulsos derivados do império da vontade intuitivo. Quando a mente comanda, o braço se flexiona, a mão enrijece, os punhos se cerram. Não é um dedo que comanda a mente, mas pelo contrário, a mente ordena, enquanto que o dedo obedece. Um membro que não segue a ordem subjetiva da mente é um membro doente que deve ser curado ou descartado. Nas cidades da felicidade a seguir o contexto de comunidade e coletividade, de meios viciosos e fins virtuosos é proposto de maneira à sugerir a indagação: o quão abrangentes meios impuros devem ser aceitos para satisfazer fins necessários?

Em A cidade do sol de Tommaso Campanella (2014) os cidadãos que não pertencem à casta dominante têm suas vidas preordenadas em seus mínimos detalhes de maneira a produzirem frutos mais efetivos para o Estado. Toda ação individual é seguida de um supervisor cuja função é garantir o resguardo do interesse do todo quanto a possíveis lesões perpetradas pelas partes. O supervisor aponta o caminho a ser seguido, persuadindo através do chicote possíveis dissidências.

Ao homem não é facultada uma vida privada, afinal, não se mostra como sendo lógico um pé ou uma orelha vivendo longe do organismo que o originou, o que significa dizer que o homem é uma extensão do Estado, o qual preza pela felicidade de seus súditos, sendo o meio utilizado para orquestrar este fim o império de violência. Por mais que se pregue ser todo cidadão um representante do Estado, esta ideia de mostra um tanto incompatível com a realidade da sociedade, isso porque é a casta dominante, os sacerdotes, aqueles que detêm o poder e a liberdade de fazer juízo de valor acerca do que é considerado necessário e interessante a toda a sociedade (CAMPANELLA, 2014).

Os encontros sexuais, a literatura e os ofícios de labor representam a invasão da casta dominante. Os sacerdotes representam a cabeça do todo, enquanto que o restante dos homens representam membros descartáveis. Se os sacerdotes governam, o restante dos povos se deixa governar passivamente (CAMPANELLA, 2014).

Para Roger Scruton (2015) a ordem social se fundamenta na abolição do eu, que é vicioso, e do culto ao nós, que é uma bênção, isso porque toda a felicidade não deriva da liberdade ou do prazer individual, mas do sacrifício das partes em face do todo.

Diferente da proposta de Campanella (2014) que se fundamenta em uma cidade da felicidade definida, no conto The ones who walk away from Omelas de Ursula K. Le Guin (2004) se funda em uma indefinida; nesta cidade cada cidadão estipula o que para si é a felicidade.

A cidade de Omelas deve ser imaginada como a cidade das cidades, uma cidade relativamente perfeita. Não é a cidade perfeita para a maioria, mas para cada indivíduo. Omelas é a cidade que oferece um conceito abstrato de felicidade, por um preço (LE GUIN, 2004).

O preço toma a forma de uma lesão manifesta sobre uma criança deficiente mental e malnutrida de dez anos, a qual se encontra confinada em um calabouço sujo e mal iluminado, embaixo de um lindo edifício que está sempre trancado. Ninguém virá ajudá-la, por aceitarem, os cidadãos de Omelas, a fonte de felicidade que deve ser mantida presa. A criança nem sempre viveu assim, lembra-se da luz do sol e da voz de sua mãe, mas sobrevive com meia tigela de cereal de milho e gordura, os comendo diariamente enquanto senta em suas fezes (LE GUIN, 2004).

Todas as pessoas de Omelas sabem que a criança está lá, algumas vieram vê-la, outros estão contentes em apenas saber que ela está lá. Todos sabem que ela deve permanecer lá. Todos entendem que sua felicidade, beleza de sua cidade, calor de suas amizades, saúde de suas crianças, sabedoria de seus intelectuais e abundância de suas colheitas dependem completamente da abominável situação em que a criança se encontra (LE GUIN, 2004).

Eles adorariam fazer algo pela criança, mas não há nada que possam fazer sem abdicar de seus mimos de seu eu. Se a criança fosse trazida para a luz do sol, para fora daquele lugar vil, se fosse limpa e alimentada, isso seria uma coisa boa de fato; mas se o fosse feito, naquele dia e hora toda a prosperidade e beleza da cidade de Omelas seria destruída. Estes são os termos. Às vezes alguém vai ver a criança e não volta para casa, vai embora. Dirige-se diretamente para fora da cidade de Omelas, através dos lindos portões. Continuam caminhando, sem saber aonde vão, cada um anda sozinho. Eles vão, e não voltam mais, pois não estão dispostos a obter sua felicidade a tão altos custos (LE GUIN, 2004).

Não podemos esquecer-nos dos meios torpes que são camuflados de maneira a legitimar fins fantásticos. Toda ação que utilize de um homem como meio para a orquestra de determinados fins está fadada a ser corrompida no processo, independente de se tratarem de fins virtuosos, afinal, escravidão é escravidão, sejam as algemas coloridas ou peluciadas e tenha o nome que tiver (LE GUIN, 2004).

Diz Benjamin Constant (2007, p.147) que:

nada é mais simples do que encobrir a causa com o efeito. Quanto mais a medida governamental ofende a liberdade e a razão, mais ela arrasta em sua onda a desordem e a violência; e então o governo atribui a necessidade da medida a própria desordem e violência.

Não se pode legitimamente obter a consumação de um fim virtuoso através de um meio vicioso sem mutilar o valor, isto é, é errado escravizar uma pessoa, mesmo se essa escravidão puder produzir um gigantesco bem, dado que o corolário inevitável é a deturpação de seu fim. No caso de Omelas, as pessoas da cidade viviam vidas estruturadas nos pilares da dor de um para o bem do todo, em decorrência, possuíam sorrisos tão cariados quanto suas almas, ao aceitar tais termos para a organização de sua sociedade (LE GUIN, 2004).

Na Laranja Mecânica de Anthony Burgess (2014) o Estado faz o que acredita ter de ser feito para diminuir a criminalidade e a superlotação de suas prisões, o que compreende ceifar de um indivíduo seu livre-arbítrio, sua habilidade de ser moral e consciente.

Para Constant (2007, p.121) “[...] não existe despotismo no mundo, por mais ineptos que sejam seus planos e mais opressores seus meios, que não saiba como alegar algum propósito abstrato do tipo plausível e desejável.”

O Rei da obra O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry (2008, p.37-38) reconhece a importância da camuflagem, de maneira a fazer com que ordens tirânicas soem razoáveis, o que motivara ao povo a segui-las ao invés de insurgir-se:

’Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se numa gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem, ele ou eu, estaria errado? [...] É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar [...] A autoridade se baseia na razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, todos se rebelarão. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.’

Uma injustiça sempre será uma injustiça. Os fins jamais justificarão os meios, mesmo que os fins sejam gloriosos e os meios infringirem poucos direitos desprezíveis em razão de os direitos individuais se encontrarem acima de qualquer objetivo, sendo inviável utilizar-se do homem como ferramenta. A proteção e zelo pela honra e direitos do indivíduo devem ser preservados. Se a meta da lei for a paz e a forma de se obter isso for a guerra, cuidado, pois seus direitos e sua qualidade individual podem estar em perigo (IHERING, 2012).

Philip Zimbardo (2015, p.384) elenca três fatores que visam à submissão individual, sendo o primeiro “alterar a semântica do ato, do ator e da ação [...] substituindo a realidade desagradável pela retórica desejável, dourando a moldura para que a pintura real fique disfarçada.” O segundo remete a um conceito distorcido que garante caráter virtuoso à pintura real, mesmo que esta seja composta de uma substância viciosa; enquanto que o último engloba a oferta de um fim supremo que camufla quaisquer meios necessários para sua perseguição.

No Admirável novo mundo de Aldous Huxley (2014) cada casta humana era pré-fabricada de maneira a servir a um fim específico elencado pelo Estado. Os habitantes não viviam para si, mas para as expectativas da casta dominante, mesmo que inconscientemente. Eram partes de um todo: a teoria organicista em seu ápice.

Quem é o homem e do que é capaz são valores preestabelecidos pela casta dominante; não cabia ao homem escolher seu emprego, hobbies ou interesses, em razão deste mesmo homem ter sido criado especificamente para cumprir uma função na engrenagem do Estado. O conceito de felicidade era uma antítese à autonomia da vontade e determinado pela submissão às expectativas, isso porque ser feliz não compreende encarar o medo de um amanhã enigmático, mas pelo contrário, se esconder na camuflagem proporcionada pelo Soma (HUXLEY, 2014).

Em We de Yevgeny Zamyatin (2007), o fim da regra refletia os interesses do Estado, enfatizando ser o indivíduo uma parte do todo e que, se um dia se encontrasse sozinho pereceria em razão de sua natural inaptidão. Todo cidadão deve estar sempre saudável, não se envenenar com nicotina ou álcool e dormir bem à noite, afinal, são partes de um organismo e a este devem prestar submissão. Se uma mão está doente, o corpo inteiro sente.

A teoria organicista de Estado é aquela que implica sermos todos nós partes do Estado; concebe o Estado como sendo um organismo, na qual o todo é anterior às partes, ou seja, muitos são anteriores a um. A teoria organicista não consegue imaginar um dedo longe de uma mão, assim, o indivíduo se limita a ser mero membro, um dedo de uma mão que compreende apenas parte de um todo maior que ele: o organismo do Estado (ZAMYATIN, 2007).

Como o eu é parte do todo, em uma democracia o voto de um deve seguir o dos outros, afinal, um membro não pode seguir à esquerda enquanto o outro membro pretende se dirigir à direita. O Estado é a representação do todo e, como corolário, deve se suspender sobre o eu individual, dado que é a representação do nós. É maior e, por isso, se sobrepõe (ZAMYATIN, 2007).

O título da obra de Zamyatin (2007) não é We por acaso: nós importamos, o eu é dispensável; em outras palavras, o povo, representado pelo Estado é importante, mas o indivíduo sozinho não o é. Ser um indivíduo desacorrentado do todo é uma vergonha e um vício, devendo ser esta ideia de liberdade, assim como qualquer outra, reprimida. Nós é um termo divino, enquanto que o eu é satânico.

A consciência é uma doença que impede o usufruto da casta dominante sobre seus servos: os súditos. São números seguidos de letras os nomes de cada homem dentro do One State, o que permite exprimir que não se tratam de indivíduos, mas membros quantificados de um todo. A concepção de homem se assemelha ao de uma máquina que não pensa sozinha, mas é motivada a pensar pelo Estado, que possui a representação de Benefactor. A evolução final dos homens se dá pela forma de cessarem qualquer pensamento, tomando a aparência interna e externa de homens-trator, existindo sob o controle direto de um grupo seleto de indivíduos que os manipulam.

Ser feliz, em Zamyatin (2007), é ser isento de liberdade, isso porque se um homem não tem de refletir sobre o que lhe compreende, ele não tem de lidar diretamente com a situação, podendo se deleitar sobre sua ignorância passiva. A reflexão se mostra como sendo um obstáculo à felicidade, uma doença, um vício a ser anulado pelas forças do Estado (ZAMYATIN, 2007).

Erasmo de Rotterdam (2012, p.65, grifo meu) nos diz que: 

É um grande mal ser enganado. Há um pior ainda: não ser enganado. [...] se, por acaso, alguém chega ao conhecimento, com muita frequência é à custa da própria felicidade. O espírito do homem é feito de tal modo que pode ser dominado muito melhor pela mentira do que pela verdade. Quem quiser fazer uma experiência, basta ir à igreja para assistir a uma pregação. Se o sermão versa sobre coisas sérias, o auditório cochila, boceja e se aborrece. Quando o gritador (perdão, queria dizer orador), como acontece seguidamente, relata uma historieta de velhinhas, todos despertam e ficam boquiabertos.

Em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (2016) o mundo da felicidade é efetivado através do império da ignorância, isso porque se rege como premissa da felicidade a ausência de conflitos. A autonomia é enxergada como sendo uma possibilidade tanto de tristeza, como de dor e de desgaste emocional. Aceitar prazer instantâneo injetado diretamente na veia ao invés de lidar com uma problemática através da razão traz felicidade, mas o conflito persistirá até que seja dirigido pela razão. Pensar, refletir e tentar buscar meios de resolver um conflito leva à infelicidade momentânea, mas, futuramente, para uma situação ascendente.

A proposição – seja pela norma ou pela casta detentora do poder político – de uma concepção de felicidade transforma o qualitativo em quantitativo na medida em que o desejo individual é sobreposto por um dever ser. Pessoas diferentes devem ter o poder de elencar o seu conceito de felicidade, desde que não lesem diretamente terceiros, de maneira a perseguir sua concepção de felicidade (HAYEK, 1994).

Diferente do que Luigi Ferrajoli (2014, p.795) acredita ao dizer que “[...] o Estado de direito liberal deve somente não piorar as condições de vida dos cidadãos, o Estado de direito social deve ainda melhorá-las; deve não somente não ser para eles uma desvantagem mas, outrossim, ser uma vantagem”, há uma antítese entre Estado de Direito liberal e Estado de Direito social. Isso porque no momento em que intervém, o Estado utiliza de seu monopólio de violência de maneira a fomentar roubo bélico (OPPENHEIMER, 1922), sistemático e maciço, o que faz do Estado de Direito social um meio vicioso (roubo) – como promovido por um ladrão comum que pretende utilizar o produto do roubo para satisfazer um fim nobre - ávido a perseguir um fim virtuoso e necessário (combate à desigualdade substancial).

Que todo homem desfrute de seu conceito de felicidade como quiser, desde que não lesem a vida e os bens de terceiros, isto é, desde que não transcendam o Estado de Direito liberal, isso porque nenhuma norma social pode ser, legitimamente, sobreposta ao indivíduo sem reduzir sua qualidade de vida. O altruísmo é anterior ao roubo, seja ele perpetrado por homens materiais ou artificiais.


Notas e Referências:

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. 2.edição. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.

BURGESS, Anthony. Laranja mecânica. São Paulo: Aleph, 2014.

CAMPANELLA, Tommaso. A cidade do sol. Petrópolis: Vozes de Bolso, 2014.

CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos. Rio de Janeiro: Liberty Fund e Top Books, 2007.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do Garantismo penal. Quinta Parte. 4.ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2014, p.785-872.

HAYEK, Friedrich August Von. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército e Instituto Liberal, 1994.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 22.ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.

IHERING, Rudolph Von. A luta pelo direito. São Paulo: Hunter, 2012.

LE GUIN, URSULA K. The wind’s twelve quarters: stories. The ones who walk away from Omelas. New York: Harper Perennial, 2004, p.275-284.

OPPENHEIMER, Franz. The State: it’s history and development viewed sociologically. New York: Vanguard Press, 1922.

ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura. São Paulo: Lafonte, 2012.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Pocket Ouro, 2008.

SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo: e o perigo da falsa esperança. São Paulo: É Realizações, 2015.

ZAMYATIN, Yevgeny. We. London: Vintage, 2007.

ZIMBARDO, Philip. O efeito Lúcifer: como pessoas boas se tornam más. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.


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Maurício Fontana Filho. Maurício Fontana Filho é acadêmico do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, RS e bolsista Fapergs no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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