O presente artigo se destina a analisar os precisos contornos do crime permanente, sua conceituação, teorias, requisitos e, por fim, sua admissibilidade em postagens ou publicações nas redes sociais.
De início, cumpre ressaltar que o crime permanente carece de uma definição legal, representando uma criação jurisprudencial, encontrada nas situações em que a ofensa ao bem jurídico protegido pela lei perdura ao longo do tempo em virtude de uma conduta persistente e voluntária do agente. Trata-se de uma figura delituosa em que a conduta se prolonga no tempo por determinação e obra do agente.
Embora haja vários exemplos de crimes permanentes (art. 159 do CP – extorsão mediante sequestro; art. 148 do CP – cárcere privado; art. 149 do CP – redução a condição análoga à de escravo, dentre outros), não há uma definição clara do que seja esse tipo de crime e nem tampouco de seus elementos estruturais. É possível dizer que se trata de um crime que persiste ao longo do tempo, tem duração. Deve, portanto, em razão disso, recair sobre um bem jurídico que não seja suscetível de destruição definitiva, mas passível de uma “compressão temporal”, como ocorre com a liberdade pessoal no crime de sequestro.
Essa carência de delineamento legal do crime permanente fez com que a doutrina e a jurisprudência passassem a vinculá-lo a tipos penais abstratos, com ideia de conduta que se protrai no tempo, sem, contudo, traçar claras balizas que pusessem limites ao subjetivismo judicial.
Como bem acentuado por Alberto Silva Franco[1], “a carência de uma definição legal e o agravo representado para o acusado, em face do reconhecimento do crime permanente, devem conduzir a um exame mais aprofundado do seu conceito. E, sob esse enfoque, afirma-se, na dogmática penal, que, a respeito do crime permanente, há duas posições doutrinárias: a teoria bifásica e a teoria unitária. Sem descer a uma avaliação crítica mais demorada de cada uma delas, vale, em síntese, afirmar que, pela primeira teoria, o crime permanente deverá ser decomposto em duas fases distintas, as quais teriam direta e imediata relação com a violação de dois preceitos: a) a primeira fase poderia provocar, de modo indiferente, uma conduta comissiva ou omissiva no que tange à concretização do fato típico; e b) a segunda fase, de obrigatória característica omissiva — e constitutiva da permanência —, resultaria da falta de remoção do estado antijurídico por parte de quem realizou a primeira fase, descumprindo, por isso, a obrigação jurídica de contra-agir a fim de pôr termo à permanência. Já, pela segunda teoria, a unitária, o crime permanente seria um conceito de realidade que, por si mesmo, não é objeto de incriminação: tal período, de fato, indica a duração da violação da norma ou somente o caráter eventual do crime e isso porque a figura criminosa descreve apenas o fato típico, dele delineia os elementos constitutivos, mas a duração dele, não é tomada em consideração e tampouco descrita.”
Necessário frisar que, não obstante grande parte da doutrina e da jurisprudência brasileira adote a teoria bifásica, o mesmo não ocorre em países europeus como Itália, onde essa teoria já se encontra superada, dando lugar à adoção da teoria unitária.
Assim, ressalta Francesco Carrelli Palombi[2] que “la concezione unitaria, adottata dalla giurisprudenza contemporanea, considera invece la punibilità del reato permanente basata su un’unica norma incriminatrice e provvista di peculiarità strutturale. Infatti, il dovere di contro-agire di cui sopra, secondo tale orientamento, sussisterebbe in ogni fattispecie ad evento di danno e, inoltre, a superamento dell’orientamento precedente, la incriminazione di una omessa condotta si porrebbe in aperto contrasto sia con il principio di tassatività che con quello di tipicità della norma penale. Nei reati permanenti, invece, l’azione delittuosa comprime il bene giuridico (es. libertà personale nel sequestro di persona); quindi l’agente, non solo ha il potere di instaurare la situazione delittuosa, ma ha anche la facoltà di rimuoverla riespandendo, in tal modo, il bene giuridico compresso; il protrarsi dell’offesa dipende dalla volontà dell’agente.“
Com base nisso, o crime permanente, para ser assim definido, requer a concorrência dos seguintes requisitos: a) uma conduta típica que seja suscetível de ser prolongada por um tempo juridicamente relevante; b) um bem jurídico tutelado que não seja destrutível, mas passível de compressão temporal; c) a conduta do sujeito ativo deve ser voluntária e persistente; d) a ofensa ao bem jurídico deve ser contínua e não se esgotar em um único instante.
É bem de ver, portanto, que ofensas verbais ou escritas veiculadas pelas redes sociais, caracterizadoras de infrações penais, não podem ser consideradas crime permanente, sob pena de total subversão e descaracterização deste instituto penal.
Nesse sentido, não é porque o ataque ao bem jurídico tem como veículo um vídeo, um áudio ou um escrito tornado público por meio de imprensa (jornais, revistas, sítios de internet, televisão, rádio), ou ainda publicado em redes sociais (instagram, facebook, youtube, whatsapp etc), que, automaticamente, se torna um crime permanente ao alvedrio da autoridade policial, do Ministério Público ou do juiz de Direito, num perigoso subjetivismo que, a final, conduz inexoravelmente a perigosíssima supressão da liberdade em suas múltiplas facetas, ao arrepio do basilar princípio da legalidade ou reserva legal.
Efetivamente, não é o meio pelo qual o crime é praticado que o torna permanente, mas sim a sua própria característica de conduta que se prolonga no tempo, persistindo a consumação enquanto não cessada a ofensa.
Figuras típicas como calúnia, difamação, injúria, ameaça, apologia de crime e outras semelhantes, principalmente quando praticadas por palavra, não são e nunca foram consideradas crimes permanentes, sob pena de se criar a nefasta figura de um crime eterno, estando o agente em constante e infindável estado de flagrância.
Outrossim, aqueles que se batem pela ocorrência de crime permanente nestas situações, confundem, a nosso ver, essa figura com o crime instantâneo de efeitos permanentes, em que a consumação ocorre em momento determinado (por exemplo, a publicação do vídeo ofensivo nas redes sociais), sendo indeléveis os efeitos dela decorrentes, que, aí sim, se perpetuam no tempo, possibilitando punição criminal ulterior – mas nunca prisão em flagrante, além de reparação civil e outras consequências porventura daí advindas.
Em suma, publicações em redes sociais, ainda que carreguem crimes contra a honra e outros delitos de opinião, não são crimes permanentes, tendo seu momento consumativo no instante da publicação ou veiculação (a depender da espécie delitiva), vinculando-se eventual situação de flagrância estritamente às hipóteses previstas no art. 302 do Código de Processo Penal, que não permite interpretação extensiva e nem ruptura com as demais regras interpretativas da lei penal e processual penal em detrimento daquele ao qual se imputa a prática criminosa.
Notas e Referências
[1] SILVA FRANCO, Alberto. Crime permanente, um conceito errante à procura de seu significado. Disponível em www.conjur.com.br. Acesso em 23.2.2021.
[2] PALOMBI, Francesco Carrelli. Reato Permanente. Giuffrè Francis Lefebvre. Disponível em www.ilpenalista.it. Acesso em 23.2.2021
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