CRIME PERMANENTE E ESTADO DE FLAGRÂNCIA – DISPENSA DE MANDADO EM BUSCA DOMICILIAR

01/03/2018

Questão interessante que, vez por outra, desponta como fundamento de pedidos de anulação de diligências policiais que culminam com a prisão em flagrante de acusados e com a apreensão de produtos e instrumentos de crime, diz respeito à necessidade de mandado judicial de busca e apreensão a legitimar o ingresso de policiais em domicílio alheio nos casos de crimes permanentes.

Crimes permanentes, também chamados de crimes de conduta permanente, são aqueles cuja consumação se protrai no tempo, estendendo-se a conduta enquanto perdurar a prática delitiva. No âmbito processual penal, é possível a prisão em flagrante enquanto não cessar a permanência.

Nesse sentido, seria lícito à polícia ingressar em um domicílio, sem mandado, na ocorrência de um crime permanente?

A resposta positiva aparenta ser bastante óbvia, ainda mais à vista do dispositivo constitucional que afasta a inviolabilidade de domicílio em caso de flagrante delito (art. 5º, XI, CF).

Entretanto, não raras vezes, os tribunais se deparam com alegações de nulidade das provas colhidas nesse contexto, sob a alegação de que, para ingressar em um domicílio sem mandado judicial, a polícia deve ter fundadas suspeitas ou indícios suficientes de que, em seu interior, está sendo praticado um delito. E isso nem sempre é tão simples de dimensionar, ainda mais na decorrência de uma diligência policial e de seus desdobramentos necessários.

O art. 157, “caput”, do Código de Processo Penal estabelece que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.” O §1º do citado dispositivo agasalha a “doutrina dos frutos da árvore envenenada” (“fruits of the poisonous tree doctrine” ou “taint doctrine”), oriunda do sistema da “common Law” e amplamente utilizada pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Essa teoria, também conhecida como teoria da prova ilícita por derivação, prevê que toda prova lícita que tenha utilizado meio ilícito para a sua límpida execução será considerada proibida por consequência. O próprio §1º dispõe que constituem exceções à doutrina dos frutos da árvore envenenada as teorias da “independent source” (fonte independente), da “attenuated connection” (conexão atenuada) e da “inevitable Discovery” (descoberta inevitável).

Nesse sentido, se o ingresso da polícia em domicílio alheio, sem mandado judicial, for considerado ilícito, todas as diligências daí decorrentes também estarão contaminadas pela ilicitude originária, ensejando a nulidade de todos os atos praticados, tais como a prisão de um ou mais criminosos e a apreensão de objetos ou produtos da prática delitiva.

É sabido, outrossim, que o art. 33 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06), nos seus 18 verbos, contempla condutas instantâneas (como adquirir, vender etc) e condutas permanentes (como ter em depósito, guardar, trazer consigo etc).

Havendo fundadas suspeitas, portanto, de que, no interior de uma casa, esteja sendo praticado o tráfico de drogas nas modalidades permanentes de conduta, estará autorizado o ingresso da polícia, mesmo sem mandado judicial, sendo absolutamente lícita a diligência, assim como todas as demais provas daí derivadas.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado, negou provimento a agravo regimental interposto contra decisão que não reconheceu como violação de domicílio a atuação de policiais que, após sentirem forte cheiro de maconha em uma residência, realizaram busca no interior do imóvel. Nesse caso, ocorrido em São Paulo, houve a abordagem de um indivíduo na rua, o qual não estava na posse de seus documentos pessoais, sendo acompanhado pela polícia até a sua casa. Chegando ao local, os policiais sentiram forte odor de maconha e, à vista do nervosismo apresentado pelo indivíduo, ingressaram na residência dele e apreenderam grande quantidade de drogas como maconha, “crack” e cocaína.

Desacolhendo os argumentos da defesa do acusado, que alegou não haver justificativa legal para a busca no interior do imóvel, de vez que os policiais somente tiveram conhecimento das drogas lá armazenadas após ingressarem na residência, o relator do caso, Ministro Sebastião Reis Júnior, invocando entendimento já sedimentado naquela Corte, decidiu que, “em se tratando de crimes permanentes, é despicienda a expedição de mandado de busca e apreensão, sendo permitido à autoridade policial ingressar no interior de domicílio em decorrência do estado de flagrância, não estando caracterizada a ilicitude da prova obtida”. Segundo o Ministro, a desconfiança dos policiais em razão do nervosismo apresentado pelo suspeito e o forte odor de maconha no interior do imóvel, demonstraram “fundadas razões” que justificavam a busca levada a cabo pelos policiais.

Ademais, apegou-se o Ministro Sebastião Reis Junior a outros precedentes do Superior Tribunal de Justiça, segundo os quais “é dispensável o mandado de busca e apreensão quando se trata de flagrante da prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, pois o referido delito é de natureza permanente, ficando o agente em estado de flagrância enquanto não cessada a permanência.” (AgRg no REsp n. 1.637.287/SP, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 10.5.2017). Também: “É pacífico nesta Corte Superior o entendimento de que, tratando-se de flagrante por crime permanente, no caso, por tráfico de drogas, desnecessário tanto o mandado de busca e apreensão quanto a autorização para que a autoridade policial possa adentrar no domicílio do paciente, conforme previsto no 5º, XI, da CF” (HC n. 352.811/SP, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 1º.8.2016)

Em suma, tratando-se de crime permanente e havendo fundadas suspeitas de sua ocorrência no interior de um imóvel, residencial ou não, em situação de flagrância, não constitui violação de domicílio o ingresso da polícia, sem mandado judicial, no local, sendo a diligência considerada absolutamente lícita, sendo lícitas também as provas daí produzidas por derivação.

 

Imagem Ilustrativa do Post: COT // Foto de: André Gustavo Stumpf // Sem alterações

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