CRACOLÂNDIA, OMISSÃO DO PODER PÚBLICO E A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DE DEPENDENTES QUÍMICOS    

10/12/2020

Recente episódio de vandalismo e ataques à população por parte de habitantes e freqüentadores da região popularmente chamada “cracolândia”, na cidade de São Paulo, reacendeu a discussão acerca da possibilidade e viabilidade de internação involuntária de dependentes químicos no Brasil.

Na tarde de terça-feira, dia 8 de dezembro de 2020, Dia da Justiça, usuários de drogas e dependentes químicos fizeram um verdadeiro “arrastão” na região das Avenidas Duque de Caxias e Rio Branco, e também em outras ruas das cercanias, numa cena grotesca e absurda de ataques a veículos e pedestres que por ali transitavam, que, infelizmente, se repete periodicamente na cidade de São Paulo, sob o olhar omisso e complacente das autoridades públicas, que se recusam a enfrentar o problema com seriedade, adotando, invariavelmente, posturas “politicamente corretas” e de acolhimento de usuários, dependentes e traficantes de drogas, que literalmente dominam a região, expulsam e vitimizam a população local e fazem com que a “cracolândia” seja um verdadeiro território sem lei, onde impera a barbárie e a criminalidade.

Conforme já abordamos em artigo anterior, a Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, alterando a Lei de Drogas, trouxe avanços significativos no trato da internação, voluntária e involuntária, de dependentes químicos.

Foi criado o Plano Nacional de Políticas sobre Drogas, com duração de 5 anos a contar de sua aprovação, com diversos objetivos, dentre eles os de promover a interdisciplinaridade e integração dos programas, ações, atividades e projetos dos órgãos e entidades públicas e privadas nas áreas de saúde, educação, trabalho, assistência social, previdência social, habitação, cultura, desporto e lazer, visando à prevenção do uso de drogas, atenção e reinserção social dos usuários ou dependentes de drogas; viabilizar a ampla participação social na formulação, implementação e avaliação das políticas sobre drogas; priorizar programas, ações, atividades e projetos articulados com os estabelecimentos de ensino, com a sociedade e com a família para a prevenção do uso de drogas; dentre outros.

No que pertine à problemática do tratamento dos dependentes químicos, a Lei nº 13.840/19 previu dois tipos de internação: a voluntária e a involuntária.

A internação voluntária se dá com o consentimento do dependente de drogas. Nesse caso, ela deverá ser precedida de declaração escrita da pessoa solicitante de que optou por este regime de tratamento. Seu término se dará por determinação do médico responsável ou por solicitação escrita da pessoa que deseja interromper o tratamento.

A internação involuntária, por sua vez, se dá sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na falta de qualquer um deles, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, que constate a existência de motivos que justifiquem a medida. Importante ressaltar que os servidores da área de segurança pública não poderão requerer a internação involuntária.

Nesse sentido, há um verdadeiro tabu no Brasil, que permeia os ambientes acadêmicos e políticos e contamina as autoridades públicas, no sentido de que a internação involuntária seria uma violação dos direitos humanos do dependente químico, disseminando uma visão romântica e equivocada de que a obrigatoriedade de tratamento seria uma forma indevida de segregação do drogado, que ficaria alijado da sociedade, a qual, a final, seria a verdadeira responsável pela sua drogadição.

Essa visão completamente equivocada do problema acarreta situações absurdas como a que ocorre na “cracolândia” da cidade de São Paulo, em que o poder público, há anos, se omite completamente e a boa parte da população apóia, ainda que passivamente, essa omissão, quando muito observando, do alto de suas varandas “gourmet”, a barbárie patrocinada por poderosos traficantes e pelo crime organizado, aproveitando para filmar, com seus valiosos telefones celulares, as cenas apavorantes e compartilhar, com comentários vazios, nas redes sociais a fim de angariar “likes” e curtidas.

A verdade, no entanto, é que o problema requer um sério e urgente enfrentamento, que deixe de lado a demagogia eleitoreira e se aparte do “politicamente correto” dos discursos acadêmicos e políticos, invariavelmente repercutido nas redes sociais.

Instrumentos há, na legislação pátria, que permitem a utilização da internação involuntária do dependente químico como um dos instrumentos para o equacionamento do problema, que, decerto, tem raízes mais profundas, que devem ser igualmente reconhecidas e adequadamente enfrentadas.

Nesse aspecto, a internação involuntária somente poderá ser realizada após a formalização da decisão por médico responsável e será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde. Importante ressaltar que a internação involuntária prescinde de autorização judicial.

Vale lembrar, entretanto, que a internação perdurará apenas pelo tempo necessário à desintoxicação do dependente químico, no prazo máximo de 90 dias, tendo seu término determinado pelo médico responsável. A qualquer tempo, a família ou o representante legal do internado poderá requerer ao médico a interrupção do tratamento.

De acordo com a lei, ademais, todas as internações e altas de dependentes químicos deverão ser informadas, no prazo máximo de 72 horas, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a outros órgãos de fiscalização, por meio de sistema informatizado único, na forma de regulamento a ser editado. Essas informações permanecerão sigilosas e o acesso ao sistema somente será permitido às pessoas autorizadas a conhecê-las, sob pena de responsabilidade.

Nesse meio tempo, enquanto não se resolve o problema das drogas e dos dependentes químicos no Brasil, assistimos a iniciativas completamente estapafúrdias e apartadas da realidade como a ocorrida no dia 7 de fevereiro de 2019, em que um Anteprojeto de Lei foi encaminhado à Câmara dos Deputados, de autoria da “Comissão de Juristas responsável pela atualização da Lei de Entorpecentes”.

O referido Anteprojeto descriminaliza a aquisição, posse, armazenamento, guarda, transporte, compartilhamento ou uso de drogas ilícitas, para consumo pessoal, em quantidade de até 10 (dez) doses.

O Anteprojeto, ainda, retalha os dispositivos atinentes ao tráfico de drogas, diminuindo a pena de várias condutas criminosas e abolindo o crime de associação para o tráfico.

Especificamente no que se refere ao consumo pessoal de drogas ilícitas, o art. 28 do Anteprojeto apresenta a seguinte redação:

“Art. 28. A aquisição, posse, armazenamento, guarda, transporte, compartilhamento ou uso de drogas ilícitas, para consumo pessoal, em quantidade de até 10 (dez) doses não constitui crime. § 1º Semear, cultivar ou colher até 6 (seis) plantas das quais se possa extrair substância ou produtos conceituados como drogas ilícitas não constitui crime. § 2º O limite excedente a 10 (dez) doses previsto neste artigo será considerado para consumo pessoal, se em decorrência das condições em que se desenvolveu a ação, ficar caracterizado que a droga ilícita se destinava exclusivamente para uso próprio.”

Além de equivocadamente fixar um limite quantitativo de porções de drogas para diferenciar posse para consumo de tráfico, o próprio Anteprojeto diz que esse limite de 10 (dez) porções pode ser ultrapassado, a depender “das condições em que se desenvolveu a ação”.

Dessa forma, como já tivemos oportunidade de ressaltar em outro artigo nesta coluna, o Brasil, mais uma vez, vem na contramão da história, na contracorrente da tendência mundial de real enfrentamento do problema das drogas, que não se resume a descriminalizar a posse e o consumo pessoal, que, a bem da verdade, apenas agrava a situação daqueles que se lançam ao consumo dessas nocivas substâncias, além de constituir a mola propulsora da escalada do tráfico de drogas, que aumentou assustadoramente em todos os países em que a posse e o consumo foram liberados.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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