Contra a violência simbólica: o que Warat nos ensina

18/01/2016

Por Juliana Ribeiro Goulart - 18/01/2016

A violência simbólica presente no modelo tecnicista, pensado pelo Positivismo Jurídico, parece ocupar a maioria dos espaços de ensino do Direito, apesar de a doutrina[1] apontar esse modelo como ultrapassado.

Com efeito, os estudos mais recentes e criativos apontam para uma crise do Direito e do ensino com dimensões assombrosas e reflexos perversos para a sociedade, especialmente para uma sociedade extremamente carente da realização de direitos, como a sociedade brasileira.

Pierre Bordieu trata do tema violência simbólica e de suas implicações no espaço social, na obra “O Poder Simbólico”.

De acordo com o citado autor, a violência simbólica se funda na fabricação de crenças que induzem o indivíduo a se posicionar no espaço social seguindo os padrões do discurso dominante, sendo uma manifestação decorrente do poder simbólico.[2]

Nesses termos, o campo jurídico seria fértil para o desenvolvimento da violência simbólica. Pois, segundo o autor:

[...] o campo jurídico é o lugar da concorrência pelo monopólio de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, no qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social.[3]

Percebe-se, assim, que no Direito ainda se privilegia um imaginário que simplifica o ensino jurídico, a partir da construção de standards e lugares comuns, repetidos nas salas de aula e posteriormente nos cursos de preparação para concursos, bem como nos fóruns e tribunais, onde, inclusive, se tem trabalhado em linhas de montagem de produção.

Essa cultura alicerça-se em casuísmos didáticos, no qual o Positivismo com o seu postulado de uma ciência axiologicamente neutra ainda é a regra. A dogmática jurídica dominante considera o Direito como sendo uma mera racionalidade instrumental, um universo de regras destinado a satisfazer a violência.

Em outras palavras, o Direito Positivo é pressuposto como autossuficiente, claro e preciso, em que todos os conflitos e fatos ocorrentes no mundo da vida encontram a possibilidade de um enquadramento lógico-dedutivo.

Em razão disso, Paulo Roney assevera que:

O século XXI requer um novo paradigma, que visualize a complementariedade dos fenômenos. Ademais, como afirma Foucault (não há apenas um centro de poder científico). Ele dissemina-se na sociedade. Há o exercício do poder pelo saber em toda sociedade. Há uma relação de poder entre médico e paciente, advogado e cliente, professor e aluno, como assinala Castoriadis.[4]

O citado autor leciona também que:

O direito, pela sua riqueza, não pode ser visto apenas no seu aspecto normativo. Ele atua fundamentalmente no fenômeno social, controlando-o e, ao mesmo tempo, sofrendo as consequências das transformações diuturnas que se operam na vida em sociedade.[5] 

Assim, diversas propostas pedagógicas surgiram no cenário jurídico, dentre elas a de Luis Alberto Warat, que propôs alterar o modelo pautado na violência simbólica produzida no ensino jurídico, por um novo, mais condizente com a ideia de Direitos Humanos.

As posições pedagógicas de Luis Alberto Warat buscam aproximar o Direito das demais Ciências Sociais. Valendo-se da interdisciplinaridade, aproxima diversas áreas do conhecimento ao Direito, o que aponta para direções mais promissoras e comprometidas com a humanização dos espaços jurídicos.

Warat, buscou, portanto, a partir de uma postura interdisciplinar, impedir a reprodução acrítica do poder e da violência que o Direito pode legitimar.

A proposta de humanização do campo jurídico do mencionado autor parte da premissa de que o Direito precisa de operadores que entendam de relações afetivas ao invés de entender apenas de normas jurídicas.

No Direito brasileiro, Warat busca alternativas ao modelo tradicional de ensino, estabelecendo uma forma afetiva de trabalhar o saber, por meio de uma didática a qual envolve o desejo. De acordo com Warat:

O professor sedutor incita à construção de um imaginário que procure sua autonomia, quebrando o útero e deslocando o afeto protetor para o prazer sem culpa. Na didática da sedução, busca-se a realização coletiva de um imaginário carnavalizado, onde todos possam despertar para o saber do acasalamento da política com o prazer, da subversão com a alegria, das verdades com a poesia e finalmente da democracia com a polifonia das significações.[6]

Em sua obra-prima “A ciência Jurídica e seus dois maridos”, Warat traz uma interessante reflexão sobre si mesmo:

Eu sou um mágico, um ilusionista, um vendedor de sonhos, de ilusões e fantasias. Quando eu entro numa sala de aula, proponho, imediatamente, a substituição do giz por uma cartola. Dela sairão mil verdades transformadas em borboletas. Eu sou uma abelha-vampiro, uma abelha da ilusão que suga verdades, os fragmentos de múltiplos saberes, as palavras que me acariciam para construir os favos em que desejo pôr o mel. Com meu comportamento docente procuro a utopia, falsifico a possibilidade de construção de um mundo, de/e pelo desejo. Ministro sempre uma lição de amor, provoco e teatralizo um território de carências. Quando invado uma sala de aula se amalgamam ludicamente todas as ausências afetivas. O aprendizado é sempre um jogo de carências.[7]

A didática waratiana busca, assim, uma nova possibilidade em favor do aluno e dos profissionais das diversas carreiras jurídicas, apontando um novo caminho de superação do racionalismo, enclausurado em sua pretensão de sacralização da verdade, até porque a ciência produz apenas verdades provisórias.

Warat projeta um pensamento audacioso e criativo, repensando a instituição de ensino como um lugar de produção coletiva de saberes instituintes, sobrepondo a repetição dos hábitos e a normatização dos vínculos pela carnavalização das práticas discursivas. A Universidade poderia vir a ser um espaço social polifônico, multifacetado e democrático.

De acordo com Dilsa Mondardo:

A pedagogia waratiana baseia-se na atitude de mostrar que a plenitude é impossível, que o efeito dessa plenitude não é outra coisa que a ideologia funcionando no interior da própria educação, a plenitude como dimensão ideológica da pedagogia.[8]

Warat adverte que, no ensino do Direito, existe uma linguagem que circula nos espaços oficiais e ela é um dos suportes das relações de poder. Para o autor, a língua legítima acaba por consagrar como cultura um lugar autoritário que enclausura o homem, para que viva dentro de um costume que enaltece a imobilidade e impõe a voz dos outros como a voz que se deve ter.

Assim, Warat propõe a ideia de carnavalização das práticas discursivas e explica que:

[...] o primeiro traço decisivo de uma prática discursiva carnavalizada passa por seu auto-estabelecimento como uma ordem semiológica democrática. Pode-se dizer que, a partir do momento em que nos situamos no interior de um processo de significações carnavalizadas, não é mais possível a sociedade representar-se na imagem de uma comunidade orgânica e unificada, na imagem de um mundo “um” firmemente definido na razão e na imagem de uma sociedade que conta papéis claramente determinados.[9]

Nesses termos, usando a metáfora da carnavalização, o autor procura compreender que não existe mais uma autoridade incontestável detentora do poder e do saber; ou, ainda, que na democracia não se pode mais aceitar o princípio de um suposto possuidor do sentido da lei e do poder.

Contrariando o discurso dominante, Warat aposta na criatividade, na sensibilidade humana e na alteridade. Sempre inovador, criou novas disciplinas em programas de pós-graduação onde lecionou como professor: Teoria Crítica e Dogmática Jurídica, Direito e Ecologia Política, Pesquisas em Direito e Psicanálise e Pesquisas em Filosofia do Direito e da Política. Idealizou congressos e seminários, montados com grandes temas, como a Cinesofia, Direito e Psicanálise, Literosofia, etc. De acordo com Mondardo, Warat “para pensar sua metodologia de ensino, buscou inspiração em vários territórios do saber: Nietzsche, Barthes, Foucault, Deleuze, Guattari.”[10] Pode-se, ainda, citar outros, como Bakthin, no qual Warat busca a inspiração para a carnavalização, e, ainda, Córtazar, Freud e Castoriadis.

Em suma, com base em sua pedagogia, compreende-se que as máscaras da ciência do Direito são disciplinadoras e não conseguem gerar uma cultura jurídica visceralmente democrática, razão pela qual Warat busca, acima de tudo, um saber sobre o Direito que reconcilia o homem com suas paixões.


Notas e Referências:

[1] Entre os grandes autores que diagnosticaram a crise do ensino jurídico podemos citar: Roberto Lyra Filho, José Eduardo Faria, Luis Alberto Warat, Paulo Roney Ávila Fagúndez, Horário Wanderley Rodrigues, Dilsa Mondardo, entre outros.

[2] O poder simbólico é o que decorre da crença dos agentes em sua existência, derivando daí sua submissão e o efeito de reconhecimento dos agentes que o assumem. Para maiores detalhes ver: BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1980.

[3] Ibid., p. 212.

[4] FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila (Org.). A crise do conhecimento jurídico: perspectivas e tendências do direito contemporâneo. Brasília: Editora OAB, 2004, p. 240.

[5] FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila. O direito e a hipercomplexidade. São Paulo: LTr, 2003, p.16.

[6] WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. v. 1, p. 119.

[7] Ibid., p. 176.

[8] MONDARDO, Dilsa. 20 anos rebeldes: o direito à luz da proposta filosófico-pedagógica de L. A. Warat. Florianópolis: Diploma Legal. 2000, p.56.

[9] WARAT, 2004, p. 139.

[10] WARAT, 2004, p.59.


Juliana Ribeiro GoulartJuliana Ribeiro Goulart possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. Tem experiência na área da advocacia, com ênfase em Direito Processual, área em que é especialista pelo CESUSC. Atualmente ocupa o cargo de Assistente Jurídica da Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina e é pesquisadora na área da Mediação de conflitos. E-mail: juligoulart@hotmail.com / Facebook aqui.


Imagem Ilustrativa do Post: Playing with Light while Watching 'Don't Give Up' / Light // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ssoosay/7296089482

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura