Constituição viva Vs. Constituição doente: o sentimento Constitucional em agonia

16/02/2016

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 16/02/2016

Olá a todos!!!

Nos Estados Unidos, costuma-se debater muito as diferentes visões acerca da Constituição. Há desde os originalistas, entre os quais o recém-falecido juiz Antonin Scalia, que sustentam a necessidade de salvaguardar a ideia outrora transmitida pelos “founding fathers”, isto é, pelos juristas e políticos responsáveis pela elaboração da Constituição estadunidense e a propagação de seus ideários; até os doutrinadores, professores e juízes de vanguarda, postulando até mesmo uma interpretação criativa da Constituição. Claro, há diversos vieses, correntes intermediárias, nuances em cada uma das escolas etc. Tudo isso, contudo, por ora não interessa ao objetivo que se pretende desenvolver nesta coluna. O que de fato importa, nesta oportunidade, é um interessante direcionamento da teoria da Constituição, denominado “Constituição viva”.

David A. Strauss, em livro intitulado “The living Constitution”, sustenta como tese central que a Constituição é muito mais do que o documento que fisicamente a representa. Ao contrário das palavras escritas (“norms”), a narrativa do sentimento constitucional que congrega a humildade intelectual, o senso de complexidade dos problemas vivenciados pela sociedade, a sabedoria adquirida com eventos do passado e a responsabilidade de cada cidadão por carregar consigo parte da história do país compõem o que se deve compreender por Constituição[1].

Warren E. Burger, outrora “Chief-Justice” na Suprema Corte norte-americana, também pontua, em capítulo especialmente dedicado a essa temática, que umas mais marcantes características da Constituição dos Estados Unidos é a sua brevidade. De acordo com o Autor, não tendo sido criada para ser um código, o documento inteiro pode ser reproduzido em não mais do que 16 (dezesseis) laudas[2]. Esta característica enseja, como adiante explico, que o significado do texto constitucional seja trabalhado de maneira dinâmica ao longo da história.

Este é precisamente o ponto que gostaria de explorar. Composta inicialmente por sete artigos e posteriormente incluídas vinte e sete emendas ao longo de mais de duzentos e vinte e cinco anos de história, o texto da Constituição norte-americana, por sua característica orgânica, institucional e de disposições reduzidas, permite a discussão e aprofundamento de cada um dos seus artigos originais e emendas, ademais, evidentemente, da inserção da sua força normativa na vida cotidiana do cidadão. Afinal, para seguir algo, é preciso antes conhecê-lo.

Outro ponto favorecido pela brevidade da Constituição norte-americana é a possibilidade de a Suprema Corte deixar de se arvorar em temas que não são estritamente de índole constitucional, ou, em raciocínio diverso, escolher, pinçar conflitos cuja análise demande alguma consideração efetiva a respeito da Constituição em caráter orgânico, institucional ou social. Como já mencionei nesta coluna anteriormente, precisamente por tal motivo que, por exemplo em 2015, dos mais de 8.000 casos que ingressaram naquela Corte, apenas cerca 80 receberam apreciação da questão de fundo.

Em um cenário desses, plenamente possível sustentar a existência de uma Constituição viva que, calcada na diferença entre texto e narrativa constitucional, possa abarcar a complexidade social, a humildade institucional e diversas outras características intrínsecas e extrínsecas à democracia, em ordem a, tal como um pássaro que constrói um ninho e o deixa cada vez mais forte, elaborar um acolhedor ambiente de discussão de direitos, garantias e deveres. Não que inexistam problemas – o que seria absurdo sustentar –, mas a solução é trabalhada sob um quadro absolutamente real e dinâmico.

Agora vamos olhar para o nosso cenário. Temos uma Constituição promulgada em 1988, com 250 (duzentos e cinquenta) artigos, mais 100 (cem) artigos que compõem o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescida de 06 (seis) emendas Constitucionais de revisão e, finalmente, mais 90 (noventa) – sim, 90! – Emendas Constitucionais. Aliás, esse texto já nasce desatualizado, porque em 18 de fevereiro será promulgada a 91ª Emenda Constitucional.

Diante desse quadro, temos, de fato, algum sentimento Constitucional? Sinto algo por meus entes queridos, porque os conheço, convivemos juntos, trocamos ideias, debatemos, brigamos, mas nos conciliamos etc. Com a Constituição, fica difícil fazer o mesmo (sob o aspecto da democracia, evidentemente). Conheço-a de maneira efêmera, já que, qual artista, altera o figurino a cada momento; convivo pouco com a sua ideia originária, já que se não a essência, ao menos o frasco é alterado diuturnamente; difícil trocar ideias democráticas, promover debates, ou até brigas sob o aspecto da democracia, porque não sei com quem exatamente estarei travando uma batalha ideológica: será a Constituição de ontem, de hoje, ou quem sabe o que amanhã poderá surgir; e, finalmente, ainda mais dificultoso é conciliar com não se sabe quem.

O princípio, que já virou jargão, é claro: Supremacia da Constituição. O que é isso, no entanto? Se a Constituição viva norte-americana permite, entre vários fatores, o debate e a discussão do seu cerne ao ponto de se estabelecer a distinção entre texto e narrativa constitucional, a nossa, que nem sei se anda muito viva de tão remendada, parece estar cada vez mais com a saúde debilitada, ao ponto de ficar extremamente complicado extrair de seu âmago o perfil que adota.

Haverá quem diga que é para ser assim mesmo, que a Constituição não traz um perfil dominante, pois pretende uma conciliação entre diversas formas de ver a sociedade; que é plural, polissêmica e indiscutivelmente democrática justamente por permitir a sua abertura ao dia-a-dia vivenciado pela sociedade...

Estas e muitas outras críticas são viáveis ao raciocínio exposto. Aliás, sequer discordo do argumento de fundo; a dificuldade é como alcançá-lo. Perfil dominante não quer dizer necessariamente que exista algum perfil definido, ou todos indefinidos; conciliação entre formas de ver a sociedade e tratar os iguais está menos atrelado ao texto constitucional do que ao funcionamento das instâncias democráticas; conceituações polissêmicas não garantem pluralidade e mesmo a abertura pode ser obtida muito mais com o exercício da cidadania do que com a existência de direitos constitucionalmente definidos, porém destinados ao cumprimento condicional, isto é, qual evento futuro e incerto. Ou de fato temos efetividade na saúde, educação, habitação e meio-ambiente, para citar apenas alguns exemplos?

Acredito que na Constituição exista uma linha mestra capaz de fazer gerar um sentimento que nos conduza à tal narrativa Constitucional e, por consequência, à Constituição viva. O esforço institucional para alcançá-lo, aliado à alteridade e ao reconhecimento do outro talvez possam nos conduzir a viver a experiência Constitucional em sua plenitude.

Para tanto, independentemente de partidos, crise política, econômica, ou de qualquer natureza, um apelo se faz necessário aos nossos Parlamentares: deixem-nos viver a Constituição tal como ela é! Talvez assim, possamos lograr obter alguma estabilidade institucional, política e até econômica.

Na situação atual, o que você conhece com maior profundidade e detalhamento: a Constituição da República Federativa do Brasil, ou as regras de seu condomínio? Seja sincero...

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] STRAUSS, David A. The living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010, p. 139.

[2] BURGER, Warren E. It is so ordered. A Constitution Unfolds. New York: William Morrow and Company, 1995, p. 99.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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