Constituição, eu te perdoo por te trair

28/02/2016

Coluna Espaço do Estudante

Eu te perdoo por te trair, por fingir interesse e depois me furtar aos teus ensinamentos. Eu te perdoo por te trair, por me deixar iludir pelo espantalho da impunidade a assombrar as mazelas do cárcere. Eu te perdoo por te trair, por me precipitar e cair na indecência do discurso que preza pela mutilação de direitos em nome de uma razão que não é a minha. Eu te perdoo por te trair, por te apunhalar aos olhos de tolos consolos que repercutem apenas no morro. Eu te perdoo por te trair, por não me atentar para as feridas que na lucidez de um outrora tentaste remediar. Eu te perdoo por te trair, por me jogar nos braços de uma ira que te corrói. Eu te perdoo por te trair, por me distrair quando mais precisaste do meu abrigo.

Eu te perdoo por te trair, por não te velar nas noites estranhas, por não me importar com teus valores mais caros. Eu te perdoo por te trair, por te interditar, sem ampla defesa, sem contraditório. Eu te perdoo por te trair, por me curvar ao sincero equívoco de te desrespeitar. Eu te perdoo por te trair, por me entediar com tuas palavras retas nestes tempos tortos. Eu te perdoo por te trair, por te asfixiar na antessala do caos, sob a atenção de milhões. Eu te perdoo por te trair, por te rejeitar como quem, sábio demais, se esquece do caminho árduo que trilhaste. Eu te perdoo por te trair, por insistir nas pontas de faca, por incidir na hediondez de te aviltar. Eu te perdoo por te trair, por te forçar a dizer o oposto do que disseste antes. Eu te perdoo por te trair, por te apresentar o doce vício de um ativismo suicida.

Eu te perdoo por te trair, por te costurar à beira de um precipício de más pretensões. Eu te perdoo por te trair, por te consumir ao avesso pelo só interesse de te ver agonizar por um gélido instante. Eu te perdoo por te trair, por não te dar ouvidos quando, atordoada, vieste me pedir proteção. Eu te perdoo por te trair, por te arrastar até um beco sem saída para oferecer a uma massa sem nome certa dose de vingança. Eu te perdoo por te trair, por te calar sem te ouvir. Eu te perdoo por te trair, por abrir mão de coisas que julgas pétreas e que não supus como tais. Eu te perdoo por te trair, por te ver frágil, acuada, e tender para tua sedação. Eu te perdoo por te trair, por te tirar o copo d'água num momento de imensurável sede. Eu te perdoo por te trair, por arriscar te desacreditar. Eu te perdoo por te trair, por te esconder segundas intenções. Eu te perdoo por te trair, por não me atentar para as tuas crises de choro, por não resistir aos lamentos de quem te ignora.

Eu te perdoo por te trair, por te omitir meus encontros furtivos com a dramaticidade dos ídolos que não se contentam com as tuas linhas de dignidade. Eu te perdoo por te trair, por te avistar distante por vontade própria. Eu te perdoo por te trair, por te algemar na imensidão do retrocesso. Eu te perdoo por te trair, por te julgar culpada de uma inocência. Eu te perdoo por te trair, por te esquecer despida na mão única da página policial. Eu te perdoo por te trair, por te submeter ao desuso. Eu te perdoo por te trair, por te aniquilar virtudes ao acaso, por ciente acaso. Eu te perdoo por te trair, por te mostrar quem sou, o que eu soube ser. Eu te perdoo por te trair, por te encarcerar na culpa sem trânsito em julgado. Eu te perdoo, enfim.


David Maxsuel Lima. . David Maxsuel Lima é Acadêmico de Direito do 9.º Semestre pelo Centro Universitário da Grande Dourados. Atuou como cronista semanal do coletivo Vida a Sete Chaves (2012-2014). Também é autor de diversos textos literários em prosa e verso. .


Imagem Ilustrativa do Post: Dreaming // Foto de: Matthias Fiesel // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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