Fernando, fale sobre como escolheu o Direito e sobre sua trajetória profissional.
Acredito que tenha escolhido o Direito por causa de minha paixão, desde garoto, pela História e pela política. Sempre acreditei no Direito como instrumento de transformação social, promoção de cidadania e construção de uma convivência verdadeiramente democrática. Busco refletir o Direito através de uma perspectiva crítica e agir de forma emancipatória, pensando em um sistema que rompa com todas as formas de opressões, estigmas e preconceitos, cumprindo, ainda que tardiamente, as promessas da modernidade de vida boa e digna para todas as pessoas, indistintamente.
Atualmente exerço o cargo de Diretor Administrativo da Procuradoria-Geral do Município de Gaspar. Além disso, sou pesquisador e extensionista.
Qual a proposta do livro “Justiça Restaurativa: Um olhar para além da repressão”, publicado recentemente pela Editora Empório do Direito?
A proposta da obra é provocar uma reflexão acerca dos limites e impossibilidades do sistema punitivo dominante. O crime não pode continuar a ser visto isoladamente no Brasil. É preciso enxergá-lo como um fenômeno social ou o Brasil continuará a praticar um verdadeiro genocídio da população jovem, negra e de periferia, assim como o faz com a violência contra as mulheres, os índios e a população LGBT, por exemplo.
O crescimento exponencial da população carcerária brasileira, aliada aos elevadíssimos índices de reincidência, faz ruir o mito de que não se prende no Brasil e de que o que carece nossa sociedade é a expansão do poder punitivo estatal. A impunidade que existe no Brasil é de parcela das classes dominantes e políticas. O jovem humilde de periferia é infinitamente punido no Brasil. Em primeiro lugar, é punido por não possuir acesso a bens e a serviços públicos mínimos que lhe garantam e dignidade prometida pela Constituição. A igualdade, no Brasil, ainda é uma falácia, visto que nossa sociedade trata de forma diferenciada e reserva futuros diferentes aos jovens de diferentes comunidades e classes sociais. Em segundo lugar, é punido com o encarceramento. Cerca de 67,1% da população carcerária brasileira é negra, majoritariamente constituída por jovens. Em terceiro lugar, é punido com a morte e o extermínio, nas ruas, nas delegacias e nos cárceres, através de abordagens policiais violentas ou mesmo de particulares “justiceiros”.
O sistema penal é estruturalmente falho e absolutamente inapto a reabilitar, pois guarda intrínseca relação com violência e morte, conforme nos ensinaram os Drs. Engenio Raúl Zaffaroni, Vera Regina Pereira de Andrade e Ivone Fernandes Morcilo Lixa, dentre outros grandes pesquisadores e juristas. É preciso pensar menos em punição e mais em restauração, oferecendo verdadeiramente um serviço de justiça de qualidade aos grupos sociais que sempre estiveram à margem do sistema.
Quais as motivações para escrever sobre este tema?
O que mais me motivou a escrever sobre o tema foi possuir uma leitura totalmente diversa do fenômeno criminológico daquela que é imposta à maior parte da sociedade brasileira por uma imprensa absolutamente questionável – em todos os sentidos. Todos os dias o ódio e o preconceito são alimentados no Brasil. O Direito, no Brasil, serve apenas a quem é branco, homem, cristão, heterossexual e possui recursos. Pouco ainda se discute e se combate com a seriedade necessária o racismo, a violência doméstica, a homofobia, a aversão às religiões afro-brasileiras, dentre outras formas de inaceitáveis preconceitos. No que diz respeito ao sistema penal, o que se vê no Brasil é uma verdadeira pregação do genocídio de presos e infratores. Acredito que seja preciso compreender o sistema penal a partir da perspectiva da juventude negra exterminada nas ruas e nos cárceres, e não da elite financeira a este imune. Neste sentido, a resistência às ideias de expansão do poder punitivo e a abominação a qualquer atentado aos direitos humanos me estimularam a pensar nos problemas sociais de outra maneira, e, consequentemente, buscar alternativas diferentes das apresentadas pelo tradicional paradigma retributivo.
Conte como foi o processo de pesquisa para escrever a obra.
O livro surgiu de meu trabalho monográfico apresentado junto à Universidade Regional de Blumenau (FURB) em dezembro de 2014. Em um primeiro momento, me concentrei em pesquisar a crise do sistema pena brasileiro, que é um dos que mais cresce e encarcera no mundo, apesar de ter se revelado inteiramente falho. Busquei, então, estudar quais são os encarcerados no Brasil e quais são os agentes sociais imunes ao sistema punitivo. Com a convicção de que o sistema punitivo dominante não toca na raiz de graves problemas sociais que remontam à desumana colonização do povo brasileiro, a justiça restaurativa se apresentou como um sistema horizontal, democrático e humanizador.
Busquei refletir a partir de textos de criminologia crítica, política criminal, direitos humanos e Direito Constitucional.
Contei, especialmente, com o incentivo e integral apoio das professoras Lenice Kelner e Ivone Lixa. A professora Lenice, que me orientou na elaboração da monografia, é uma humanista inspiradora, que presta um maravilhoso e exemplar serviço de assistência jurídica aos detentos e egressos do Presídio Regional de Blumenau/SC. A professora Ivone, assim como em outros momentos de minha carreira, me deu conselhos certeiros e me fez pensar em um direito sempre construído de forma crítica e democrática, para os sujeitos históricos marginalizados.
Quais as principais conclusões adquiridas com a obra?
A justiça restaurativa criticiza e historiciza sujeitos que sempre estiveram à margem da sociedade brasileira. O sistema penal sempre rotulou e estigmatizou as pessoas, legitimando a violência, particular ou estatal, contra aqueles que possuem extrema dificuldade de inserirem-se na sociedade. O crime é uma questão social. Tenho a convicção de que a maioria absoluta das infrações cometidas são fruto de uma questão estrutural da sociedade brasileira, que ainda é racista, machista, excludente e muito desigual.
A justiça restaurativa entende que o tratamento dispensado aos sujeitos envolvidos nas infrações penais pelo modelo atual é limitada e possui impossibilidades, visto ser extremamente raro, com a pena, atender, ao mesmo tempo, necessidades individuais e coletivas. O paradigma punitivo dominante concentra-se em atender necessidades coletivas (notadamente, a ilusória segurança, através da punição do sujeito transgressor), dificilmente dando atenção às vítimas e mesmo ao infrator. A justiça restaurativa, por outro lado, compreende que o crime é um fenômeno social, fruto do desequilíbrio dos relacionamentos entre sujeitos sociais e da indiferença política às condições estruturais que permitem que existam relações desarmônicas. Além disso, a justiça restaurativa presta efetivamente um serviço aos infratores, visto que aposta na sua reabilitação, o que no atual sistema é apenas mais uma promessa, uma vez que os direitos fundamentais dos transgressores são violados diariamente sem que haja grande indignação dos agentes políticos e da sociedade em geral. Por fim, as vítimas também são atendidas pelo paradigma restaurativo e possuem suas feridas curadas.
Fale sobre os planos para futuras publicações.
Pretendo aprofundar as pesquisas sobre a crise do sistema punitivo e a premente necessidade de lançarmos um olhar pacificador e humanizador nos conflitos. A justiça restaurativa, neste contexto, é uma das possibilidades críticas nas quais eu aposto, não a única. Embora eu acredite em seu potencial, penso em pesquisar ainda outras alternativas ao modelo repressivo. Além disso, irei dedicar mais tempo ao estudo da área em que atuo profissionalmente, qual seja, o Direito Administrativo. Pretendo escrever, especificamente, sobre política jurídica e a efetividade dos direitos e garantias fundamentais no contexto da Administração Pública no Brasil.
Algumas outras considerações que julgar pertinente.
Escrever sobre justiça restaurativa foi um prazer e um grande aprendizado. Espero poder, com meu trabalho, combater, de alguma forma, a onda de fascismo e ódio que perigosamente crescem pelo país. Não precisamos de mais muros (cárceres), e sim de mais pontes (cidadania). Vivemos tempos difíceis de inversão de irrenunciáveis conquistas humanizadoras. Cresce também, paradoxalmente, a desinformação. Cito, como exemplo, as importantes ações afirmativas que são desenvolvidas como políticas públicas essenciais em favor da inclusão, dignidade e cidadania de pessoas ou grupos historicamente relegados ou violentados, a exemplo de mulheres, negros, indígenas e da população LGBT. Porém, por ignorância da história do próprio país, muito facilmente se difunde a ideia de que o que se tem operado é uma forma de privilegiar grupos. Penso que vivemos um momento político em que é preciso que manifestemo-nos em prol da democracia, da pluralidade e da diversidade, não transigindo com qualquer ato atentatório aos direitos humanos. A justiça restaurativa é certamente uma ponte para uma convivência mais harmônica, plural e democrática.
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