Combatendo a violência de gênero no Brasil: romper o silêncio, reordenar a cultura

17/10/2015

Por Daniela de Lima e Rita Matos Coitinho - 17/10/2015

“Às vezes peço a ele que vá embora (...) E eu que tenho medo até de suas Mãos (...) E eu que tenho medo até do teu olhar(...)Da vergonha do espelho, naquelas marcas (...) Olhos insanos, que passavam o dia a me vigiar (...)” [1]

A forma histórica de dominação do homem sobre a mulher é a violência. A violência, conforme a elaboração de Marilena Chauí, é “a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior (...). A ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência” [2].

A Declaração para Eliminação da Violência Contra as Mulheres, aprovada em 1993 pela Assembleia Geral das Nações Unidas define, em seu Artigo 1º, a violência contra as mulheres da seguinte maneira: “qualquer ato de violência de gênero que resulte, ou possa resultar, em dano físico, sexual ou psicológico, ou sofrimento para a mulher, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, quer isto ocorra em público ou na vida privada”. A natureza dos atos violentos está tipificada no Artigo 2º da Declaração, podendo ser: 1) física; 2) sexual; 3) psicológica; na família ou na comunidade, lembrando que este rol não é taxativo e sim exemplificativo.

A violência de gênero é anterior à formação das sociedades capitalistas, não tendo sido, porém, resolvida com o avanço das formas de trabalho “livre” (assalariado) nem com as aparentes conquistas femininas no mercado de trabalho.

Engels, ao tratar da origem da família e da propriedade privada, abordou o debate em relação à origem da opressão da mulher pelo homem e apontou o que acreditava ser o caminho para a libertação feminina dessa relação opressora tão antiga: “De igual maneira, o caráter particular do predomínio do homem sobre a mulher na família moderna, assim como a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade social efetiva entre ambos, não se manifestarão com toda a nitidez senão quando homem e mulher tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais. Então é que se há de ver que a libertação da mulher exige, como primeira condição, a reincorporação de todo o sexo feminino à indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão da família individual enquanto unidade econômica da sociedade.” [3]

Hoje sabemos, porém, que a incorporação massiva das mulheres do mercado de trabalho capitalista não aboliu a opressão e a subordinação femininas. Como destaca Asunción Portolés [4], as mulheres continuam obtendo rendas menores por igual trabalho, enfrentam contratos de trabalho condicionados a não terem filhos ou aceitam trabalhos em tempo parcial para poderem conciliar a vida profissional e familiar. Se, por um lado, é correta a ideia de Engels, de que a absoluta igualdade de direitos é pré-condição para o fim da opressão de gênero, por outro lado o desenvolvimento histórico demonstrou que “direitos iguais” dentro do ordenamento jurídico não são suficientes para abolir a discriminação, as duplas jornadas e, principalmente, a violência.

É preciso mais, conforme se percebe ao analisar a efetividade das políticas de combate à violência contra as mulheres no Brasil: embora a Constituição de 1988 traga como valor basilar do Estado Democrático de Direito o princípio da igualdade e da não discriminação, foi necessária ainda a introdução em nosso ordenamento jurídico da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, que por vinte anos lutou para ver seu agressor preso.

É importante destacar que a Lei Maria da Penha não é apenas mais uma lei sobre agressões e não pode ser substituída, como querem alguns magistrados, pela simples aplicação do Código Penal – que já previa penalidades para lesão corporal, agressão ou cárcere privado. A lei 11.340 é uma lei contra a violência de gênero, tal como explicitada pela Declaração para Eliminação da Violência Contra as Mulheres, aprovada no âmbito da Assembleia Geral da ONU.

Para o governo brasileiro, a lei é parte de uma política pública abrangente de promoção e afirmação da autonomia das mulheres. Não há autonomia plena sem a eliminação da violência, razão pela qual, desde a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003, as políticas de combate à violência de gênero - que não se restringem à Lei Maria da Penha - partem de um amplo sistema de orientação, acolhimento e empoderamento das mulheres vítimas de violência, tornando-se uma Política de Estado com impossibilidade de regressão em relação ao tema e a manutenção dos avanços já conquistados.

Estatísticas sobre violência contra as mulheres apontam a casa como o lugar mais inseguro. Dados da PNAD/IBGE [5] mostram que 48% das mulheres agredidas declaram que a violência aconteceu em sua própria residência. Outra pesquisa, realizada pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular (novembro de 2014) mostra que 3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos, e que 56% dos homens admitem que já cometeram alguma dessas formas de agressão contra a mulher (Data Popular/Instituto Avon 2013), ainda 77% das mulheres  relatam viver em situação de violência sofrem agressões semanal ou diariamente. Em mais de 80% dos casos, a violência foi cometida por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo. [6]

Por outro lado, Pesquisa do Data Senado de Março de 2013 [7], aponta que há ainda uma grande resistência em procurar a polícia. Em geral a mulher vítima da violência doméstica só busca ajuda após a terceira agressão, porém cerca de 32% das vítimas não formaliza denuncia ou não procura por qualquer tipo de ajuda. Apesar de todos os avanços e de todas as políticas públicas em execução, os dados ainda são preocupantes e alarmantes, isso porque o medo da mulher vítima da agressão em relação às consequências que podem vir do agressor, ainda é real.

Além disso há grande resistência por parte de alguns magistrados em aplicar a Lei Maria da Penha, punindo e afastando o agressor do convívio da mulher – casos que, não raro, terminam em tragédia. Recentemente acompanhamos a obtenção de medida protetiva que foi devidamente cumprida, em favor de uma mulher vítima de violência doméstica. Infelizmente  o agressor retornou à residência da família e esfaqueou sua ex-companheira, que veio a óbito.

Diante desta realidade é inevitável perguntar, passados oito anos da sanção da Lei Maria da Penha, sobre a efetividade de sua aplicação.

Pesquisa realizada recentemente pelo IPEA mostrou que a Lei Maria da Penha teve impacto positivo na redução de assassinatos de mulheres, em decorrência de violência doméstica. Segundo o estudo divulgado em março deste ano, a lei promoveu a redução em 10% da projeção anterior de aumento da taxa de homicídios domésticos, desde 2006, quando entrou em vigor. Ainda segundo esse estudo, a efetividade da lei deve-se: a) ao aumento da pena para o agressor, b)ao maior empoderamento das mulheres,  c) às condições de segurança para que a vítima denuncie e d) ao aperfeiçoamento do sistema de Justiça Criminal para atender de forma mais efetiva os casos de violência doméstica.

Conforme afirmou em entrevista para a Agência Brasil [8] a secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Aparecida Gonçalves, com o advento da Lei Maria da Penha, as mulheres começaram a perder o medo de denunciar e de buscar ajuda e proteção. “O Estado brasileiro e todas as suas instituições estão mais engajados para que efetivamente diminua a violência contra a mulher, mas ainda é um grande desafio para o Brasil a questão das políticas públicas para as mulheres”.

Também em março deste ano a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei do Senado que classifica o feminicídio como crime hediondo e o inclui como homicídio qualificado. O texto modifica o Código Penal para incluir o crime – assassinato de mulher por razões de gênero – entre os tipos de homicídio qualificado. Todos esses esforços para coibir os crimes motivados por razões de gênero demonstram que a sociedade brasileira ainda tem um longo caminho a percorrer para banir a violência contra as mulheres e que, se por um lado a repressão aos crimes desse tipo é extremamente importante, ela não é suficiente. É preciso atacar as raízes da violência contra as mulheres e a sua naturalização por parte da sociedade.

Christine Delphy, pensadora do feminismo materialista francês, em artigo de opinião [9] afirma que a energia do movimento feminista é consumida em atividades que visam pressionar a aprovação de leis e cobrar que estas sejam devidamente aplicadas, porém finaliza observando que “não se muda a estrutura social através de lei - ao contrário, esta é o fundamento daquela, ainda que isso permaneça oculto”. Em outras palavras, a edição de leis não muda as relações sociais. As alterações no ordenamento jurídico refletem, no máximo, a ascensão de novas concepções que podem, ou não, tornar-se preponderantes em uma sociedade.

Muitas das correntes de pensamento feministas abordam a violência contra a mulher como reflexo de uma cultura patriarcal. Heidi Hartmann entende a categoria “patriarcado” como “um conjunto de relações sociais entre homens, que tem base material, o qual, embora hierárquico, estabelece ou cria interdependência e solidariedade entre os homens que os capacita a dominar as mulheres” [10]. Iris Young [11] afirma que as relações patriarcais estão internamente relacionadas às relações de produção como um todo, defendendo como necessidade prática uma organização autônoma das mulheres e reconhecendo que nem o capitalismo e nem o patriarcado são autônomos, reconhecendo a união de ambos os sistemas de dominação – sexual e de classe [12]. Delphy, ao se debruçar sobre a questão do trabalho doméstico – que, para ela, é a base econômica do patriarcado – observou que nas sociedades capitalistas ocidentais as mulheres trabalham fora de casa (o que lhes dá algum grau de independência) mas, quando têm família, acumulam uma sobrecarga de trabalho porque o “trabalhar fora” lhes deixa menos tempo para as atividades domésticas, que seguem sendo de sua exclusiva responsabilidade.

Asunción Porteles [13] observa que Delphy parece estar de acordo com Sylvia Walby, que acredita que nas sociedades ocidentais passou-se de um patriarcado “privado” a um patriarcado “público” em que o conjunto dos homens se beneficiam da sub-retribuição e da sobre-exploração feminina.

Que relações há entre “super-exploração” das mulheres, sub-retribuição no trabalho, duplas jornadas e violência? Uma relação intrínseca, que está diretamente relacionada a ideia de uma “cultura patriarcal” que não foi rompida pelas sociedades modernas. Se as mulheres podem ser submetidas a condições de vida exaustivas, se podem receber menos pelo mesmo trabalho simplesmente por serem mulheres, se são as únicas responsáveis pelas tarefas do lar são, no imaginário social, cidadãs diferentes dos homens – ou, mesmo, “cidadãs de segunda classe”.

É considerado “normal” e “aceitável” que uma mulher abandone seus estudos ou comprometa sua carreira profissional para assumir o papel de mãe e dona de casa. É, da mesma maneira aceitável que, uma vez casadas ou comprometidas com um homem passem a ser tratadas como alguém de sua propriedade.

Grande parte dos casos de feminicídios são motivados pelo que se intitula como “defesa da honra”, socialmente considerada uma atitude digna (ainda que criminosa). A personagem Camila da música que inspirou esse artigo ilustra com perfeição essa naturalização da violência: em muitos casos a mulher não consegue se libertar do ciclo de violência por se considerar culpada ao invés de se reconhecer como vítima e se cala. Em muitos casos também as vítimas da violência são apontadas como responsáveis por provocarem ciúmes intencionalmente, por não se vestirem, adequadamente, por exporem-se a “situações de risco” (como caminhar nas ruas à noite).

É por isso que iniciativas como a Lei Maria da Penha e a classificação do crime de “feminicídio” como crime hediondo são iniciativas importantes mas não podem, de maneira nenhuma, ser encaradas como a solução do problema da violência contra as mulheres e sim compreendidas como parte de um esforço maior de construção de novas práticas sociais.

A repressão dura aos crimes motivados por razões de gênero deve ser combinada a políticas de promoção da autonomia das mulheres e de desconstrução da imagem da mulher como objeto de consumo e satisfação dos desejos masculinos. Campanhas publicitárias, programas de televisão e outros veículos de comunicação que expõem o corpo feminino como objeto também contribuem para a perpetuação de uma cultura de violência. Certos grupos religiosos também se apegam aos valores do patriarcado para justificar a permanência dos seus dogmas e jogam um papel desedificante no combate à violência. É necessário que o poder público assuma para si o papel de promover novas relações.

Nesse sentido, a questão agora em debate durante a construção do Plano Nacional de Educação é parte essencial de uma estratégia geral de combate à violência contra as mulheres. É urgente que se discuta gênero nas escolas para que se compreenda que as práticas violentas decorrem de concepções de superioridade e inferioridade. Não haverá mudança profunda sem que se promova novas formas de relacionamento entre homens e mulheres, livres de sentimentos de possessão e submissão. Se as questões de gênero permanecerem relegadas ao ambiente privado não haverá avanço, mas perpetuação do atual estado de coisas. O Estado tem meios de atuar no reordenamento da cultura, que não é um dado, mas um processo.

A existência da Lei Maria da Penha e seus efeitos de redução dos crimes contra as mulheres comprova essa tese: é possível mudar a cultura de violência contra as mulheres. Mas para isso é preciso que se atue em todas as frentes, não apenas na coerção ao crime, mas na promoção de políticas de igualdade e autonomia e onde a opressão e a violência não tenham lugar. Para que não existam mais Camilas.


Notas e Referências:

[1] Nenhum de Nós. (banda de rock brasileira, fundada em 1986 no estado do Rio Grande do Sul). Camila. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Yaj3D8VcjVg

[2] Chauí M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Perspectivas Antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar; 1985. 23p.

[3] ENGELS, Friedrich. A origem da família e da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1997, p. 22.

[4] PORTOLÉS, Asunción Oliva. La teoria de las mujeres como classe social: Christine Delphy y Lídia Falcon. In: AMORÓS, Celia & DE MIGUEL, Ana (orgs). Teoria Feminista: de la ilustración a la globalización. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. Volume 02, páginas 107 a 145.

[5] Disponível em http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-e-estatisticas-sobre-violencia-contra-as-mulheres/ acesso  04/06/2015

[6] Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/datasenado/pdf/datasenado/DataSenado-Pesquisa-Violencia_Domestica_contra_a_Mulher_2013.pdf acesso 04/06/2015.

[7] Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/datasenado/pdf/datasenado/DataSenado-Pesquisa-Violencia_Domestica_contra_a_Mulher_2013.pdf acesso 04/06/2015.

[8] Agência Brasil: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-03/ipea-lei-maria-da-penha-reduziu-homicidios-de-mulheres-dentro-de

[9] Disponível em http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=1158 , acesso em 04/06/2015.

[10] HARTMANN, Heidi. The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism. In: SARGENT, Lydia. (ed.) Women and Revolution. Boston, South End, 1981, p. 41 – Tradução Livre.

[11] Young, I. (1981) “Beyond the Unhappy Marriage: a critique of dual systems theory”, in L. Sargent (Ed.) Women and Revolution, London: Pluto Press. Tradução Livre

[12] Teoria do duplo sistema

[13]  PORTOLÉS, Asunción Oliva. La teoria de las mujeres como classe social: Christine Delphy y Lídia Falcon. In: AMORÓS, Celia & DE MIGUEL, Ana (orgs). Teoria Feminista: de la ilustración a la globalización. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. Volume 02, páginas 107 a 145.


Daniela de Lima .

Daniela de Lima é Advogada e Professora. Pós Graduada em Processo Civil e Mestra em Ciência Jurídica.  

.         . Rita Coitinho .

Rita Matos Coitinho é Cientista Social. Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília e Doutoranda em Geografia Humana pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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