Combate à corrupção e abuso de autoridade – o falso antagonismo

25/04/2017

Por Tânia Maria S. de Oliveira – 25/04/2017

Creia nos que procuram a verdade; duvide dos que a encontram

André Gide

Ao estudar a sociedade com base na alegoria do carnaval em sua obra “Carnavais, Malandros e Heróis” o antropólogo Roberto DaMatta pontuou que mito e rito são dramatizações ou maneiras de chamar a atenção para certos aspectos da realidade social, dissimulados pelas rotinas e complicações do cotidiano. O discurso que tenta colocar o debate do projeto de abuso de autoridade, em tramitação no Senado Federal, como um simulacro para afetar competências das investigações contra a corrupção, sobretudo a operação Lava Jato, é uma construção midiática a partir do lugar comum de eleger personagens à condição de heróis.

Afirma o professor Cristiano Fragoso que o autoritarismo é elemento estrutural do sistema penal[1]. Não há sistema penal que não contenha elementos autoritários. Uma conclusão fácil de alcançar quando se deduz que o próprio exercício do poder punitivo parte de matrizes de autoridade. Esta, como exercício de um poder legítimo, é dependente de alguns pressupostos: da forma como é constituída, da fonte de sua legitimidade e da maneira como é exercida. Do desvio dessa última premissa, da extrapolação da franquia legal e constitucional desse exercício, surge o abuso de autoridade.

O processo penal, conforme determinado pela Constituição Federal, é um instrumento de aplicação da pena, nos moldes ali definidos, devendo obedecer rigorosamente as garantias penais e processuais penais. Todavia, o que ocorre na praxe brasileira é o uso do processo como aniquilação de indivíduos ou grupos. O formato adquire, cada dia mais, contornos de rupturas de legalidade, com base no apoio midiático e anuência popular. Como assentido pelo professor e juiz de Direito Rubens Casara, em artigo tratando do tema:

Basta pensar na aceitação social de discursos que pugnam pela naturalização das provas ilícitas, defendem prisões cautelares e práticas de tortura como estratégias para a obtenção de confissões ou delações (em clara instrumentalização da pessoa que já se encontra privada de sua liberdade), sustentam a “vontade popular” em detrimento das formas processuais, desconsideram a doutrina processual penal em nome de um compromisso com a “realidade” (esquecendo, ou ignorando, que a “realidade” é uma trama simbólico-imaginária e, portanto, condicionada por uma tradição, uma cultura, que no caso brasileiro é autoritária), relativizam o princípio do juiz natural, dentre outras distorções processuais, para se perceber a importância de atores jurídicos (em especial de juízes comprometidos em assegurar o respeito aos direitos fundamentais) que não se deixam levar pela tentação populista e, em especial, pelo populismo penal[2]

Para dar efetividade à repressão, vem-se adotando afastar as garantias processuais, vistas como obstáculos à efetivação da “justiça”. Como produtores e gestores das provas, membros do ministério público e juízes passam a valorá-las mais ou menos, evidenciando convicções sem amparo em elementos fáticos, manipulando-as de acordo com seu desejo de condenar e punir. Incorporam uma postura que enxerga o investigado ou réu como inimigo, afastando-se, assim, da necessária isenção a que se vinculam como órgãos do Estado e integrantes do poder público, convertendo-se em “ídolos” nacionais e adentrando, cada dia mais, à esfera da política, interferindo em debates e buscas de soluções que seriam próprios dos representantes eleitos pelo povo.

Corrupção é uma prática lesiva em escala mundial, que produz injustiça, aumenta desigualdade, aumenta privilégios e esgota recursos essenciais, que poderiam ser usados em benefício da sociedade; mina a legitimidade democrática e os direitos dos cidadãos à aplicação correta de verbas. Portanto, a apuração dos casos não pode ser considerada desnecessária, tampouco se deve duvidar da necessidade de coordenação entre os órgãos de investigação na busca de eficiência.

Por outro lado, é preciso ponderar que uma análise da corrupção sob a perspectiva individual do agente que a pratica tende a se realizar a partir de um estereótipo moral e questionável. A corrupção tem raízes embrionárias e certamente está presente nas relações de poder que engendram o sistema político. É preciso percebê-la como rede que integra diversos agentes e interesses político-econômicos relacionados e divididos em distintos momentos e esferas de atuação, ultrapassando, inclusive, as fronteiras nacionais. Desse modo, caminha-se para a necessidade de reflexão sobre a implementação de mecanismos que favoreçam a transparência e a fiscalização, diminuindo as zonas de arbitrariedade e de desvios no âmbito da administração pública.

Pesquisas acerca da psicologia do comportamento ético, como aquele realizado para a obra de Max H. Bazerman, da Universidade de Harvard, e Ann E. Tenbrunsel, da Universidade de Notre-Dame, chamado “Blind Spots: Why We Fail to Do What’s Right and What to Do About It” (“Pontos Cegos: porque falhamos em fazer o que é certo e o que fazer diante disso”, em livre tradução) elucidam que a virtude total de caráter é apenas um ideal. Na prática ignoramos comportamentos éticos e vivemos processos de auto-engano e ofuscamento, em que subestimamos nossas próprias condutas de desvio e superestimamos as dos outros. Os dados importam para uma avaliação de validade de tentar transformar a realidade social em matéria de corrupção por meio do direito penal, objetivo que se mostra irreal e promotor de demagogia político-social.

O debate sobre corrupção alcançou o ápice no Brasil nas últimas décadas e ganhou contornos de espetáculo desde o julgamento da Ação Penal 470, conhecida como “Mensalão”, transmitido ao vivo pela TV Justiça. Tem sido motor de crises as mais diversas desde que se iniciou a operação Lava Jato que, completando três anos de funcionamento no último dia 17 de março de 2017, teve 38 fases, expediu mais de 200 conduções coercitivas, todas sem prévia intimação, a despeito do disposto na redação expressa no art. 260 do Código de Processo Penal que a exige; decretou 98 prisões entre preventivas e provisórias, fechou 127 acordos de delação premiada, muitas com réus presos, que incluem cláusulas como a proibição de recorrer da sentença que receber e de impetrar habeas corpus e condenou 89 pessoas na primeira instância.

As ações da operação Lava Jato têm chamado atenção de juristas de todo o mundo. O professor Luigi Ferrajolli, um dos mais brilhantes e respeitados teóricos, curiosamente citado inclusive por procuradores e pelo juiz da operação, falou neste mês de abril em palestra no parlamento italiano sobre o que acontece no Brasil: 

Existe uma forma horrenda de populismo, que não é o populismo político, mas o populismo judiciário. E esse pode representar um perigo para a cultura jurídica, que deve ficar atenta de maneira alarmante para proteger a própria jurisdição e a credibilidade do direito.

(...)

Podemos reconhecer, neste processo, além das extraordinárias violações, como a difusão e a publicação de interceptações, feitas pelo próprio juiz, as características típicas da Inquisição.[3]

A relação que a investigação estabelece com segmentos da mídia possui contornos assombrosos, ao limite de depoimentos que estão sob segredo de justiça serem transmitidos em tempo real para sites da internet, e os vazamentos de conteúdos inteiros serem disponibilizados em portais, jornais e TV, sem qualquer ação para investigar. Cabe enfatizar, nesse ponto, que a publicidade dos julgamentos, que se dera com a evolução da própria sociedade e da massificação de seus meios de comunicações, pode se revelar danosa sempre que veiculada de forma dramática e apelativa e, não raro, manipulada para atingir determinados objetivos.

Um processo penal autoritário, que se afasta do cumprimento das normas de direito dos acusados é demagógico e termina por confundir os papéis dos agentes do sistema de justiça com os da política, produzindo heróis fictícios. Nesse passo, não só não terá êxito em extirpar a corrupção, como pode levar a sociedade a um nível de autoritarismo intolerável. Os atos de abuso de autoridade não são sustentáculos do combate à corrupção. A tese foi construída por determinados agentes e apoiadores do sistema de justiça sob patamares superficiais, com o intuito de legitimar os desvios de cumprimento da lei.

Dito de forma muito simples: combater a corrupção e o abuso de autoridade não são posturas antagônicas, ao oposto, são igualmente formas de compromisso com a ética e com a defesa de princípios e valores elencados e incorporados à nossa Constituição.

Evidente que a luta contra a corrupção não pode ser feita como um fim em si mesmo e deve privilegiar fundamentalmente a esfera preventiva, o que, aliás, também é papel do Ministério Público, que deveria abraçá-lo ao invés de tentar substituir o legislador, enviando ao Congresso Nacional “pacotes de medidas legislativas” ditas de anticorrupção, com relativização da presunção de inocência, validação de provas ilícitas, teste de integridade e aberrações afins.

Não se pode usar veneno para curar o doente, não é correto rifar o Estado de direito, descumprir normas sob o argumento de combater a corrupção. Não em uma democracia. Urge lembrar que toda ação autoritária ou genocida na história da humanidade sempre se justificou em algum valor universal de sua época. O autoritarismo nunca é autodeclarado. É uma postura que se sustenta, sempre, em um norte de aceitação social.

Ao se colocarem em um patamar acima das normas, se dizerem intérpretes do que não está escrito, ao tentarem interferir no processo legislativo, produzindo vídeos para instigar a opinião pública, ao se insurgirem contra qualquer lei que limite abusos, os membros da operação Lava Jato mostram sua postura autoritária e sua autoimagem, nos instando a enxergá-los como as personagens alegoricamente descritas por Roberto DaMatta e sua sintomática frase: “você sabe com quem está falando? ”


Notas e Referências:

[1] FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[2] Disponível em:http://justificando.cartacapital.com.br/2015/08/01/os-bons-juizes-processo-penal-e-seguranca-publica/

[3] Link do vídeo em http://www.ocafezinho.com/wp-content/uploads/2017/04/ScreenHunter_1071-Apr.-20-20.01.jpg


Tânia M. S. Oliveira. . Tânia Maria S. de Oliveira é Mestre e Pós-graduada em Direito. Pesquisadora do GCcrim/Unb. Assessora jurídica no Senado. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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