Por Vitor Vilela Guglinski – 08/02/2016
De forma a delimitar o objeto de nossas considerações nos comentários que se seguem, é importante observar que os julgados destacados abaixo analisam causas envolvendo a legalidade de direito potestativo em questões relacionadas a direito de voto no âmbito das associações (REsp. 161.658/SP), cláusula contratual versando sobre venda de passe de atleta (REsp. 291.631/SP) e cláusula em contrato de locação (Ag 652503/RJ), sendo que os respectivos órgãos julgadores, em todos os julgados em comento, afastaram a validade de cláusulas puramente potestativas nessas relações privadas.
Veja-se:
EMENTA: Quinta Turma -LITISCONSÓRCIO. ASSOCIAÇÃO. DIREITO DE VOTO.
O cerne da controvérsia diz respeito à declaração de nulidade de cláusulas estatutárias que conferiram direito exclusivo de voto aos sócios fundadores da Associação recorrente e limitaram temporalmente a permanência dos associados efetivos na entidade, em virtude de alegada violação ao disposto no art. 1.394 do CC/1916. Porém, quando a ação foi ajuizada em 1997, apenas a associação figurava como ré, não integrando o polo passivo os sócios fundadores, os quais somente em sede recursal em 2003 suscitaram a nulidade do processo desde a citação, alegando a configuração de litisconsórcio necessário, uma vez que a nulidade da norma estatutária implica ofensa ao direito adquirido de exclusividade do seu direito de voto. Nos termos do art. 47 do CPC, o litisconsórcio necessário, à exceção das hipóteses de imposição legal, encontra sua razão de ser na natureza da relação jurídica de direito material deduzida em juízo, que implica necessariamente a produção dos efeitos da decisão de mérito de forma direta na esfera jurídica de todos os integrantes dessa relação. In casu, é prescindível a formação do litisconsórcio necessário, uma vez que não há relação jurídica de direito material unitária entre a associação e os sócios fundadores, isso porque a esfera jurídica dos associados com direito de voto é afetada pela decisão do tribunal a quo apenas por via reflexa, não autorizando a formação de litisconsórcio a simples alteração qualitativa do seu direito de voto, o que se situa no plano meramente fático. No mérito, concluiu-se que todos os sócios efetivos da associação devem ser considerados, não como sócios a título precário, mas sim como sócios que, além de possuir direito a voto, têm também o de convocar, comparecer e participar efetivamente das assembleias gerais ordinárias e extraordinárias, devendo, para tal fim, delas ter ciência prévia. De modo que todas as cláusulas estatutárias objeto da demanda mostram-se nulas de pleno direito, uma vez que violam frontalmente o art. 1.394 do antigo diploma civil, o qual se reveste da qualidade de norma cogente norteadora dos princípios básicos de todas as sociedades civis que, sem eles, estariam a mercê do autoritarismo dos detentores do poder de comando, situação dissonante da boa convivência exigida entre pessoas que devem ser tratadas em condição de igualdade entre si. Na mesma linha, o voto desempate do Min. Antonio Carlos Ferreira salientou que o poder de auto-organização das associações sem fins lucrativos não é absoluto e que, na hipótese, trata-se de uma associação anômala, em que um grande número de associados contribui com sua força de trabalho e dedicação, muitas vezes de forma exclusiva e com dependência econômica, concluindo que essa atipicidade da relação existente entre associado e associação permite a intervenção jurisdicional visando a alteração das regras estatutárias da associação. Com isso, acompanhou a divergência, entendendo que, à luz das peculiaridades do caso, inviável, com base no antigo Código Civil, a exclusão do direito de voto dos sócios. Com essas e outras considerações, a Turma, por maioria, por violação ao dispositivo supracitado, declarou nulas as cláusulas puramente potestativas, entre elas, a exclusão do direito de voto, a existência de sócios precários com mandato de um ano e a possibilidade de exclusão de sócios efetivos dos quadros da entidade por força de decisão de assembleia cujos membros são os componentes da diretoria formada exclusivamente pelos sócios fundadores. Precedentes citados do STF: RE 74.820-SP, DJ 11/4/1997; do STJ: REsp 161.658-SP, DJ 29/11/1999; REsp 20.982-MG, DJ 22/3/1993; REsp 291.631-SP, DJ 15/4/2002, e AgRg no AgRg no Ag 652.503-RJ, DJ 8/10/2007. REsp 650.373-SP, Rel. Originário Min. João Otávio de Noronha, Rel. Para o acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 27/3/2012.
PRECEDENTES:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO EM QUE SE ALEGA NEGATIVA DE VIGÊNCIA AOS ARTS. 20 E 1394 DO COD. CIVIL, AO ART. 381 DO COD. DE PROC. CIVIL E A LEI N. 4024/61. NÃO SE CONFIGURANDO A ALEGADA NEGAÇÃO DE INCIDÊNCIA DAS REFERIDAS NORMAS, O STF NÃO TOMA CONHECIMENTO DO RECURSO. 2. RECURSO EXTRAORDINÁRIO EM QUE SE ALEGA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. SE ESSE FUNDAMENTO NÃO FICOU DEMONSTRADO NOS AUTOS, A CORTE NÃO CONHECE DO APELO.
RE 74820 / SP, 2ª Turma, Rel. Min. Antonio Neder, Julgamento:26/11/1973.
DIREITO CIVIL - CONTRATO ENTRE AGREMIAÇÕES DE FUTEBOL. VENDA DE PASSE DE JOGADOR - CLÁUSULA CONDICIONADA A EVENTO FUTURO - POTESTATIVIDADE.
I - Cláusula contratual que condiciona a realização de negócio futuro à vontade e ao ilimitado arbítrio de apenas uma das partes é potestativa e, por isso, não goza de respaldo no direito positivo pátrio (Art. 115 do Cód. Civil).
II - Não tem efeito jurídico, em vista de encerrar condição puramente potestativa, a cláusula contratual que, na cessão de passe do jogador de futebol, confere excessivos poderes ao cessionário, em prejuízo do cedente.
Recurso conhecido e provido.
REsp 291631/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJe 15/04/2002.
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAÇÃO. PROCESSO CIVIL. CLÁUSULA PURAMENTE POTESTATIVA. ARTIGO 115 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. PROIBIÇÃO PELO SISTEMA JURÍDICO.
1. "São lícitas, em geral, todas as condições, que a lei não vedar expressamente. Entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o ato, ou o sujeitarem ao arbítrio de uma das partes."(Artigo 115 do Código Civil de 1916).
2. As regras de locação não admitem cláusula que conceda a uma das partes benefício ou vantagem que a torne mais poderosa, ou ainda que a submeta ao arbítrio da outra.
3. É vedado pela Súmula 7/STJ o reexame do quantum fixado em multa contratual.
4. O decaimento de parte mínima do pedido não caracteriza a ocorrência de sucumbência recíproca.
5. Agravo regimental improvido.
Ag 652503/RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, DJe 08/10/2007.
Comentários
Para compreender as construções do STJ nos casos sob exame, é necessária uma breve incursão conceitual sobre o que sejam direitos potestativos.
No REsp. 100.710/SP, o ex-ministro Ruy Rosado de Aguiar nos fornece elucidativo conceito do instituto, esclarecendo que o direito potestativo é aquele que “atribui ao seu titular, por ato unilateral, formar relação jurídica concreta, a cuja atividade a outra parte simplesmente se sujeita”.
De seu turno, Pablo Stolze Gagliano, amparado nas lições de Orlando Gomes e Francisco Amaral, leciona que “direito potestativo nada mais é do que um direito de sujeição. Ao exercer um direito potestativo, o seu titular, simplesmente, interfere na esfera jurídica alheia, sem que esta pessoa nada possa fazer” (Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20091028091226293).
Alguns exemplos de direitos potestativos podem ser identificados nos seguintes casos: quando um dos contratantes promove a rescisão unilateral do contrato por inadimplemento da outra parte (art. 473 do CC); quando o consumidor desiste da contratação durante o prazo de reflexão (art. 49 do CDC); quando alguém opõe impedimento ao casamento nos casos previstos no art. 1521 do Código Civil; enfim, nosso arcabouço normativo prevê inúmeras hipóteses em que o exercício de um direito deverá ser simplesmente suportado pela parte contra a qual é alegado.
No que toca nosso objeto de análise, pode-se dizer que a atuação das Turmas do STJ consideram as cláusulas puramente potestativas como sendo ilícitas, leoninas.
Sobre o tema, permitimo-nos um breve parêntese para esclarecer ao leitor o que é uma cláusula leonina.
A expressão tem origem numa fábula do escritor grego Esopo, considerado o pai das fábulas. Uma de suas novelas conta a história de um leão, que, visando caçar um cervo, reuniu uma vaca, uma cabra e uma ovelha para lhe auxiliar. No momento de partilhar o produto da caça, o leão repartiu o cervo em quatro partes. No entanto, quando cada participante da empreitada levou a mão para tomar a parte que lhe pertencia por direito, o leão intercedeu, dizendo: “a primeira parte é minha, pois é meu direito como leão; a segunda me pertence porque sou mais forte que vós; a terceira também levo porque trabalhei mais que todos; e quem tocar a quarta me terá como inimigo”.
Ou seja, uma cláusula leonina é aquela em que há previsão de vantagens para apenas uma parte, e consequentes desvantagens à outra.
No sistema normativo do Código Civil, será leonina, por exemplo, uma cláusula contratual que violar o disposto no art. 122 (correspondente ao art. 115 do CC/1916), que assim estatui:
Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.
Destarte, a parte final da regra acima veda, justamente, que uma parte se beneficie, arbitrariamente, de um negócio jurídico.
Dentro dessa hipótese, a 5ª Turma do STJ, ao julgar o REsp. 161.658/SP, entendeu - acertadamente, a nosso juízo - como sendo nulas as cláusulas estatutárias puramente potestativas que versavam sobre “a exclusão do direito de voto, a existência de sócios precários com mandato de um ano e a possibilidade de exclusão de sócios efetivos dos quadros da entidade por força de decisão de assembleia cujos membros são os componentes da diretoria formada exclusivamente pelos sócios fundadores”.
Percebe-se que a decisão do Tribunal da Cidadania ampara-se em precedentes que utilizaram o mesmo fundamento para a declaração de nulidade de cláusulas dessa natureza, seja em estatutos de associações ou em contratos.
A ratio da regra estatuída no art. 112 do CC reside na própria natureza da codificação. O Código Civil em vigor é um sistema normativo que prevê direitos e deveres entre sujeitos que se encontram em situação de igualdade, sendo que o equilíbrio é a pedra de toque dos negócios jurídicos. Se o arbítrio de uma parte redundar no desequilíbrio da relação, gerando desvantagens para a outra parte, maculado estará o negócio.
No caso de uma associação, em que os sócios efetivos sejam impedidos pelos demais de exercer o direito de voto, há clara ofensa a um dos requisitos de validade do negócio jurídico, que é a forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104, III, CC). Se a norma jurídica veda expressamente que uma parte no negócio imponha à outra uma condição arbitrária, caso esta se implemente, nulo será o negócio.
Por fim, cabe assinalar que as condições simplesmente potestativas são admitidas por nosso direito. Nesse caso, haverá arbítrio de uma das partes, porém relativo. Haverá condição simplesmente potestativa, por exemplo, naqueles casos em que se estabelecer uma condição para que o negócio jurídico produza os efeitos dele esperados.
Ilustrando, verifica-se condição simplesmente potestativa no caso do pai que promete dar um automóvel ao filho, caso ele seja aprovado no vestibular. Enquanto essa condição não se implementar, a eficácia do negócio ficará suspensa. Percebe-se, nessa hipótese, que o arbítrio do pai é relativo, pois, lograda a aprovação no certame, o filho fará jus ao objeto do negócio. Dependerá da parte beneficiária, então, empreender esforços para realizar a condição imposta. Assim, não há que se falar em ilicitude.
Por todo o exposto, as decisões do STJ nos casos em comento encontram-se afinadas com os preceitos estatuídos pela codificação civil pátria.
. Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país. .
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