Cerveja sem álcool: uma questão de linguagem?

29/07/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 29/07/2015

Olá a todos!!!

Este é o primeiro texto da coluna “Argumentação jurídica, justiça e cotidiano” que fui convidado a escrever semanalmente para o Empório do Direito. Nesta coluna, tratarei de assuntos jurídicos, nacionais e internacionais, com enfoque técnico correlacionado ao cotidiano. A ideia é desenvolver análise de questões teóricas, sem, contudo, perder o viés prático. Contarei com a contribuição de operadores da área jurídica, acadêmicos; e, por vezes, também profissionais afetos a outras áreas do conhecimento, interdisciplinaridade necessária para o desenvolvimento de todas as ciências. Espero que gostem!

Apresentada a coluna, introduzo o primeiro tema: qual linguagem deve ser utilizada para a tomada de decisão?

O Superior Tribunal de Justiça recentemente decidiu que, a despeito da informação contida no rótulo, cerveja sem álcool pode conter 0,5% de álcool. Conquanto o Relator, Ministro Luis Felipe Salomão, tenha considerado que “a publicidade deve refletir fielmente a realidade anunciada, em observância às diretrizes do CDC”, a maioria dos Ministros da Quarta Turma, após voto-vista proferido pelo Ministro Raul Araújo, compreendeu que a regulamentação da Lei n°. 8.918/94 admite que as cervejas com teor alcoólico igual ou inferior a 0,5% em volume sejam classificadas como “sem álcool” e deixem de apresentar no rótulo a advertência de que o produto contém álcool. Observou o voto vencedor que o Decreto n°. 6.871/09, que regulamenta a Lei n°. 8.918, disciplina, no inciso I do artigo 12, que as bebidas serão classificadas em não alcoólicas quando tiverem, a 20 graus Celsius, graduação alcoólica até meio por cento em volume de álcool etílico potável, de modo que, acresço, estranhamente, a cerveja que contém álcool no mundo real, não o contém no âmbito jurídico[1].

No caso citado, existe uma evidente discrepância entre a linguagem jurídica e a linguagem comum, natural; e essa dissonância assumiu forma tão evidente e drástica que resultaria em decisão completamente diferente acaso utilizada uma ou outra para fins de colmatação da lacuna axiológica identificada.

Existiria, assim, uma linguagem correta a ser utilizada para fins jurídicos? E, acaso positivo, qual seria: a jurídica, ou a natural mesmo, do dia-a-dia?

Há bons argumentos para a utilização de ambas. No que toca à linguagem jurídica, seria possível pontuar que o direito, enquanto ciência, apresenta especificidades técnicas que devem ser preservadas; não se esperaria, afinal, analogicamente, que para curar uma infecção bacteriana, um médico prescrevesse ao paciente um “medicamento contra meios de vida”, ao invés de um “antibiótico”[2]. Por outro lado, a utilização da linguagem dita natural é claramente conveniente para a compreensão do que se fala; e, não custa lembrar, a compreensão é um pressuposto da fala, que, por sua vez, viabiliza a interação nas relações humanas. Há muito, aliás, Aristóteles nos lembrou que a possibilidade de mútuo entendimento é o que nos diferencia dos animais[3] e, mais recentemente, Hans- Georg Gadamer observou que poder falar significa “poder tornar visível, pela sua fala, algo ausente, de tal modo que também um outro possa vê-lo”[4]; e isso somente se perfectibilizará com a compreensão. Trazendo ao exemplo médico, decerto o paciente ficará menos preocupado ao saber que apresenta pedra na vesícula, do que foi acometido por colelitíase em evolução.

Como se pode verificar no texto médico citado em nota de rodapé, o embate linguagem técnica-linguagem-natural é assunto corrente em diversas ciências; e, claro, no âmbito jurídico não é diferente. Destaco apenas um dos exemplos que essa controvérsia gerou, aqui representada pelas, digamos, divergências ideológicas entre os juristas argentinos Sebastián Soler e Genaro Carrió.

No livro “La Interpretación de la ley”, Sebastián Soler apresenta o termo “finitude lógica” para explicar que os conceitos jurídicos ostentam um número limitado e taxativamente determinado de notas definitórias. Soler trata este tema ponderando que a esta propriedade dos conceitos, a “finitude lógica” aproximaria o direito de disciplinas menos abstratas, quais a matemática e, em especial, os conceitos geométricos[5].

Contra esta perspectiva externada por Soler é que se insurge Genaro Carrió, na obra “Notas sobre Derecho y Lenguaje”, ao sustentar, a partir do conceito de preço no contrato de compra e venda, que não é verdade que os conceitos jurídicos se assemelhem à geometria, mas sim, em evidente influxo hartiano, que o fato de o conceito ser vago indica a possibilidade de dificuldades no uso empírico de seus termos, o que denota a existência da zona nebulosa que denomina “umbral”[6].

Em resposta às concepções de Carrió, Soler publicou, na sequência de seus trabalhos de investigação acerca dos conceitos jurídicos, o livro “Las palavras de la ley”, em que ataca as explanações expostas por Carrió em “Notas sobre derecho y lenguaje” principalmente acerca do seguinte ponto de vista: a leitura da linguagem jurídica como a vê um juiz não representa o correto meio de interpretação; tal há de se fazer aos olhos dos homens membros da polis, para quem as palavras da lei representam verdadeiro direito positivo[7].

A partir deste ponto, a discussão recrudesceu. Em obra posterior, denominada “Algunas palavras sobre las palavras de la ley”, com título deveras sugestivo quanto à alça de mira do livro, Carrió enfrenta as ponderações que lhe foram lançadas, não sem antes pontuar ironicamente em desfavor de Soler que estava disposto a transitar por forma benigna e beneficiosa de esquizofrenia que consiste em ver as ideias com objetividade. Nesta obra, de certa maneira fustigando a Soler, observa que não vislumbrou incertezas de origem semântica, de modo que, com apoio nos ensinamentos de Hart, trataria de apresentar uma via média, livre “de aquella forma de cegueira y de esta morbosa atracción por lo patológico”[8].

Pelo que se pode ver, a discussão se apresenta infinda e pode facilmente descambar para o ataque pessoal. Soler e Carrió não se entenderam e, no âmago de seus correspondentes trabalhos – e ataques, talvez estivessem postulando algo que não encontra uma forma definitiva de visualização.

Haveria, portanto, uma forma média, ou metodologia apta a aplainar essa dificuldade? Talvez, mas decerto não sem a aceitação de alguns paradigmas que veremos na coluna da próxima semana.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Íntegra da notícia pode ser encontrada em http://www.rotajuridica.com.br/cerveja-nao-alcoolica-pode-ter-ate-05-de-alcool-decide-stj/. Acesso em 26 julho de 2015. A íntegra do V. Acórdão, por outro lado, pode ser encontrada em https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%201185323 . Acesso em 26 julho de 2015.

[2] Para uma curiosa análise das expressões médicas sob o prisma da linguagem, sugiro a leitura do texto “Expressões médicas: falhas e acertos”. BACELAR, Simônides; GALVÃO, Carmen Cecília; ALVES, Elaine; TUBINO, Paulo. Expressões médicas: falhas e acertos. Disponível em http://www.imaginologia.com.br/dow/radiologia_basica/Linguagem-Medica-Expressoes-Medicas.pdf. Acesso em 26 julho de 2015.

[3] ARISTÓTELES. A Política. Brasília: Editora Universitária de Brasília, 1985.

[4] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Tradução de Enio Paula Giachini. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p. 173.

[5] SOLER, Sebastián. La Interpretación de la ley. Buenos Aires: editora Ariel, 1962, p. 34

[6] CARRIÓ, Genaro R.. Notas sobre Derecho y Lenguaje. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1986, p. 65.

[7] SOLER, Sebastián. Las Palabras de la ley. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1969.

[8] CARRIÓ, Genaro R. Algunas palavras sobre las palavras de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1971.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba."


Imagem Ilustrativa do Post: Beer sampler // Foto de: Quinn Dombrowski // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/quinndombrowski/5200218267 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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