“CARTEIRADA” É CRIME?

23/07/2020

A nova Lei de Abuso de Autoridade – Lei nº 13.869/19 – trouxe figura típica até então inexistente na legislação pátria, tipificando a conduta de se utilizar de cargo ou função pública ou invocar a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.

Nesse aspecto, dispõe o parágrafo único do art. 33:

“Art. 33 (...)

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.”

Efetivamente, o novo tipo penal pune o agente público que, invocando a sua condição ou se utilizando do cargo ou função pública, busca se eximir de obrigação legal ou obter vantagem ou privilégio indevido.

Trata-se da conduta vulgarmente denominada de “carteirada”, prática que, infelizmente, é muito comum por parte de autoridades em nosso País.

Não efetuar o pagamento de comidas e/ou bebidas em padarias, lanchonetes, restaurantes e congêneres; “furar” fila; não se submeter a busca pessoal ou “scanner” corporal em aeroportos, agências bancárias etc; não se submeter ao teste do “bafômetro”; não ser autuado quando infringir normas de trânsito; ingressar em espetáculos, shows e cinemas sem pagar; frequentar casas noturnas sem pagamento; são apenas alguns exemplos de condutas que podem caracterizar o crime em comento.

O crime deve ser praticado, nos termos da Lei de Abuso de Autoridade, por qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: I - servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; II - membros do Poder Legislativo; III - membros do Poder Executivo; IV - membros do Poder Judiciário; V - membros do Ministério Público; VI - membros dos tribunais ou conselhos de contas. O parágrafo único do art. 2º esclarece, ainda, que “reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo ‘caput’ deste artigo.”

Vale ressaltar que, para a configuração do crime, a vantagem ou privilégio deve ser “indevido”, elemento normativo do tipo que tem que ser verificado no caso concreto.

Trata-se de crime formal, que se consuma com a mera utilização de cargo ou função pública ou com a invocação da sua condição, independentemente de conseguir o agente público efetivamente se eximir de obrigação legal ou obter vantagem ou privilégio indevido. A tentativa é admissível, em tese, como no caso de ser a utilização ou invocação feita por escrito.

Merece ser destacado, entretanto, que, no caso, não há “exigência” por parte do agente público de vantagem ou privilégio indevido.

Se o agente público “exigir” (impor, determinar) a vantagem indevida, estará configurado o crime de concussão, previsto no art. 316 do Código Penal.

Da mesma forma, se o agente público “solicitar” (pedir), “receber” ou “aceitar promessa” de vantagem indevida, estará configurado o crime de corrupção passiva, previsto no art. 317 do Código Penal.

Nesse aspecto, nos crimes de concussão e corrupção passiva ocorre a indevida negociação do ato funcional, estando o comportamento atrelado à finalidade de contraprestação do agente público, o que não ocorre na mera “carteirada”, prevista no parágrafo único do art. 33. Nessa última hipótese, o agente tão somente se utiliza do cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido, sem, contudo, mercadejar o ato funcional.

Por fim, de acordo com o disposto no art. 3º, “caput”, da Lei n. 13.869/19, “os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.” Admite-se, no §1º, a ação penal privada subsidiária. A pena cominada é de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos de detenção e multa. Sendo crime de menor potencial ofensivo, a competência é do Juizado Especial Criminal (Lei nº 9.099/95), não sendo possível o acordo de não persecução penal em razão do disposto no art. 28-A, §2º, I, do Código de Processo Penal.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Martelo, justiça // Foto de: QuinceMedia // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/martelo-leilão-justiça-legal-juiz-3577254/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura