Cabe Habeas Corpus para discutir medidas cautelares na Violência Doméstica?

24/12/2015

Segundo entendimento da 5ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, “o Habeas Corpus pode ser usado para questionar medidas de proteção à mulher previstas na Lei Maria da Penha. O autor do pedido de Habeas Corpus não concordou com as medidas determinadas pelo Juizado de Violência Doméstica de Maceió, como manter distância mínima de 500 metros da mulher, não frequentar a residência nem o local de trabalho dela e evitar qualquer contato com familiares e testemunhas da vítima. Em caso de descumprimento, poderia vir a ser preso preventivamente. Passados quase dois anos da imposição das medidas protetivas, o Ministério Público ainda não havia oferecido denúncia contra o suposto agressor. Inconformado com a decisão de primeiro grau, sob a alegação que as medidas feriam seu direito de ir e vir, o homem recorreu então ao Tribunal de Justiça de Alagoas, utilizando-se do Habeas Corpus. O Tribunal, no entanto, não analisou o pedido por entender que o Habeas Corpus não é o instrumento legal cabível. A Defensoria Pública de Alagoas, representante do acusado, recorreu ao Superior Tribunal de Justiça alegando que a Lei Maria da Penha não prevê qualquer recurso contra decisões judiciais que impõem medidas protetivas. No julgamento, os Ministros reconheceram que o Habeas Corpus pode ser utilizado nesses casos e determinaram que o Tribunal de Justiça de Alagoas analise a questão.” (Com informações da Assessoria de Imprensa do Superior Tribunal de Justiça).[1]

Pergunta-se: acertada a decisão do Superior Tribunal de Justiça? Vejamos.

A Lei nº. 11.340/06, a chamada “Lei Maria da Penha”, em tese, procurou criar “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Para isso, dentre outras disposições, criou medidas protetivas de urgência (assim denominadas pela lei) que “poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida (art. 19), não havendo necessidade, no último caso, de ser o pedido subscrito por advogado[2], e “independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público.

Algumas destas medidas são salutares, seja do ponto de vista de proteção da mulher, seja sob o aspecto “descarcerizador” que elas encerram. Em outras palavras: é muito melhor que se aplique uma medida cautelar não privativa de liberdade do que se decrete uma prisão preventiva ou temporária.

Como afirma Rogério Schietti Machado Cruz, “se a pena privativa de liberdade, como zênite e fim último do processo penal, é um mito que desmorona paulatinamente, nada mais racional do que também se restringir o uso de medidas homólogas (não deveriam ser) à prisão-pena, antes da sentença condenatória definitiva. É dizer, se a privação da liberdade como pena somente deve ser aplicada aos casos mais graves, em que não se mostra possível e igualmente funcional outra forma menos aflitiva e agressiva, a privação da liberdade como medida cautelar também somente há de ser utilizada quando nenhuma outra medida menos gravosa puder alcançar o mesmo objetivo preventivo.[3]

A previsão de tais medidas protetivas (ao menos em relação a algumas delas) encontra respaldo na Resolução 45-110 da Assembleia Geral das Nações Unidas – Regras Mínimas da ONU para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio, editadas nos anos 90). Estas regras “enunciam um conjunto de princípios básicos para promover o emprego de medidas não-privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas da prisão.[4]

O art. 18 da Lei da Violência Doméstiva estabelece que, recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de quarenta e oito horas conhecer do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso e comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis. As medidas poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, podendo ser aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.

Ademais, poderá o Juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.

Também dispõe a mesma lei que em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo Juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial, podendo revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Tais medidas, outrossim, não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. Para garantir a sua efetividade, poderá o Juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. Também está prevista a prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Por terem a fundamento jurídico de medidas cautelares, de caráter penal, para a sua decretação, serão necessários o fumus commissi delicti e o periculum in mora, sem os quais ilegal será a imposição de tais medidas. Devemos atentar, porém, para a lição de Calmon de Passos, segundo a qual “o processo cautelar é processo de procedimento contencioso, vale dizer, no qual o princípio da bilateralidade deve ser atendido, sob pena de nulidade. A lei tolera a concessão inaudita altera pars de medida cautelar, nos casos estritos que menciona (art. 804), mas impõe, inclusive para que subsista a medida liminarmente concedida, efetive-se a citação do réu e se lhe enseje a oportunidade de se defender (arts. 802, II e 811, II).[5] Neste sentido, observar o disposto no art. 282 do Código de Processo Penal, inteiramente aplicável à lei especial.

Dispõe o art. 313, III, do Código de Processo Penal que será admitida a decretação da prisão preventiva, independentemente da pena máxima cominada abstratamente ao delito e do crime ser doloso ou culposo, decretar a prisão preventiva (previstos os requisitos do art. 312, óbvio), se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Ora, como, em tese, é possível a decretação da prisão preventiva em caso de descumprimento injustificado da medida protetiva, entendemos ser perfeitamente cabível a utilização do Habeas Corpus para combater uma decisão que a aplicou.

Portanto, correto o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, pois o Habeas Corpus deve ser também conhecido e concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Logo, se a medida protetiva foi abusiva (não necessária), cabível a utilização do habeas corpus que visa a tutelar a liberdade física, a liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque.

Como já ensinava Pontes de Miranda, em obra clássica sobre a matéria, é uma ação preponderantemente mandamental dirigida “contra quem viola ou ameaça violar a liberdade de ir, ficar e vir.”[6]

Para Celso Ribeiro Bastos “o habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de se locomover em razão de violência ou coação ilegal.”[7]

Aliás, desde a Reforma Constitucional de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação destinada à tutela da liberdade de locomoção, ao direito de ir, vir e ficar, aplicável a todos, independentemente da acusação, inclusive no âmbito da violência doméstica.


Notas e Referências:

[1] http://www.conjur.com.br/2015-dez-24/habeas-corpus-discutir-medidas-protetivas-maria-penha

[2] O art. 27, porém, exige que “em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei”, bem como ser “garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado.” (art. 28).

[3] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar – Dramas, Princípios e Alternativas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 132.

[4] SICA, Leonardo. “Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 123.

[5] CALMON DE PASSOS, J. J. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. X, Tomo I, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 139.

[6] PONTES DE MIRANDA, História e Prática do Habeas Corpus, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1999, p. 39.

[7] BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 312.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Katarinahissen Elevator // Foto de:  Jakub Kadlec // Sem alterações

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