BULLYING E CYBERBULLYING NA NOVA LEI 14.811/24

01/02/2024

A Lei n.º 14.811/24, que estabelece medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência em ambientes educacionais ou similares, foi oficialmente publicada no Diário Oficial da União em 15 de janeiro de 2024 e entrou em vigor na mesma data. A referida lei institui a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente, promovendo alterações no Código Penal, na Lei dos Crimes Hediondos e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

É amplamente reconhecido que a violência contra crianças e adolescentes em ambientes educacionais e similares representa um sério problema que afeta milhões de jovens no Brasil. Essa violência pode se manifestar de várias maneiras, incluindo "bullying", maus-tratos, abuso sexual e exploração sexual, resultando em consequências severas para as vítimas, como danos físicos (lesões corporais e morte), psicológicos (depressão, fobias, transtornos de ansiedade, etc.) e sociais (isolamento, dificuldade de relacionamento, integração na sociedade prejudicada, etc.).

Vale ressaltar que, desde o ano de 2015, está em vigor a Lei n.º 13.185, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática ("bullying"). Essa legislação estabelece a responsabilidade dos estabelecimentos de ensino, clubes e agremiações recreativas em garantir a implementação de medidas de conscientização, prevenção, diagnóstico e combate à violência e à intimidação sistemática.

A nova Lei n. 14.811/24 incluiu no Código Penal a tipificação do “bullying” (intimidação sistemática) no art. 146-A, definindo-o como “intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação, ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais”. A pena é de multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Também o “cyberbullying” foi previsto no parágrafo único do art. 146-A, consistente na intimidação sistemática por meio virtual. Se for realizado por meio da “internet”, rede social, aplicativos, jogos “on-line” ou transmitida em tempo real, a pena será de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Vale ressaltar que o legislador, ao tipificar na nova lei os crimes de “bullying” e “cyberbullying” apartou-se completamente da boa técnica legislativa, criando um tipo penal com graves equívocos que, certamente, acarretarão dificuldades interpretativas que poderão comprometer a necessária punição das reprováveis condutas de intimidação sistemática.

Partindo para a análise do tipo penal do art. 146-A, o “bullying” pode ser conceituado como a intimidação sistemática, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, a uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais. O “cyberbullying”, por seu turno, é a intimidação sistemática realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos “on-line” ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real.

Neste aspecto, merece ser destacado que o “caput” do art. 146-A já traz a tipificação do “cyberbullying”, quando se refere à intimidação sistemática por meio de ações “virtuais”. Nesse caso, a pena do “bullying” por meio de ações virtuais (previsto no “caput”), é de multa, se a conduta não constitui crime mais grave.

Ora, no parágrafo único vem prevista a qualificadora consistente na prática do “bullying” por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real, ou seja, por meio virtual. Só que, neste caso, a pena do “cyberbullying” é de reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

A pergunta que fica é a seguinte: como tipificar a conduta de intimidação sistemática (“bullying”) praticada por meio da internet? Essa conduta caracteriza o crime de “bullying” por meio de ação virtual (“caput” – apenado com multa), ou o crime de “cyberbullying” (parágrafo único – apenado com reclusão de 2 a 4 anos e multa)?

A nosso ver não se pode falar em conflito aparente de normas, que seria solucionado com a aplicação do princípio da especialidade, uma vez que a norma constante do “caput”, tratando do “bullying” por meio virtual, é praticamente idêntica e evidentemente mais benéfica que a qualificadora do parágrafo único, devendo, em consequência, prevalecer. Aceito esse raciocínio, o próprio legislador, em razão da péssima e equivocada redação do tipo penal, seria o responsável por sepultar a aplicação do parágrafo único do art. 146-A do Código Penal.

A objetividade jurídica do crime de "bullying" é a integridade física e psicológica de uma ou mais pessoas. No caso, o bem jurídico protegido é a integridade física e psicológica da vítima. A intimidação sistemática, mediante violência física ou psicológica, pode causar danos físicos e psicológicos graves às vítimas, como ferimentos, lesões, transtornos de ansiedade, depressão, fobias, baixa autoestima etc.

O “bullying” pode ocorrer em diversos contextos, mas é mais comum em ambientes escolares. Também pode ocorrer em locais de trabalho, comunidades e “online”.

Portanto, sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, tratando-se de crime comum. De acordo com a redação do tipo penal, a intimidação sistemática pode ser praticada “individualmente ou em grupo”, admitindo, portanto, a coautoria ou a participação como formas de concurso de pessoas. Evidentemente que, se o sujeito ativo for inimputável em razão da idade (criança ou adolescente) estará sujeito às normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente relativas à prática do ato infracional.

Sujeito passivo é a pessoa que sofre a intimidação sistemática, independentemente de idade, condição social, sexo, orientação sexual, raça, cor, religião ou origem. O tipo penal faz referência a “uma ou mais pessoas”, sendo possível, portanto, a pluralidade de vítimas.

A conduta típica vem representada pelo verbo “intimidar”, que significa amedrontar, assustar, assombrar, aterrorizar, apavorar, aterrar, espantar, inquietar, atemorizar.

A intimidação deve ser “sistemática”, ou seja, com regularidade, de forma metódica, reiterada, repetitiva. O próprio texto legal, pleonasticamente, faz menção à intimidação sistemática de modo “repetitivo”, dando a entender que a conduta não pode ser isolada, mas praticada de modo recorrente, com habitualidade.

Ademais, a intimidação deve ser praticada mediante violência física ou psicológica, sendo certo que Lei n. 13.185/15, em seu art. 2º, estabelece que “caracteriza-se a intimidação sistemática (“bullying”) quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e, ainda: I - ataques físicos; II - insultos pessoais; III - comentários sistemáticos e apelidos pejorativos; IV - ameaças por quaisquer meios; V - grafites depreciativos; VI - expressões preconceituosas; VII - isolamento social consciente e premeditado; VIII - pilhérias.” Da mesma forma, no parágrafo único do referido artigo vem disposto que “há intimidação sistemática na rede mundial de computadores (“cyberbullying”), quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial.”

Ainda de acordo com o disposto no novo art. 146-A do Código Penal, a intimidação sistemática (“bullying”) deve ser praticada (modo de execução) por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais.

Nesse aspecto, o art. 3º da Lei n. 13.185/15, ao classificar a intimidação sistemática conforme as ações praticadas, estabelece o “bullying” verbal como “insultar, xingar e apelidar pejorativamente”; o “bullying” moral como “difamar, caluniar, disseminar rumores”; o “bullying” sexual como “assediar, induzir e/ou abusar”; o “bullying” social como “ignorar, isolar e excluir”; o “bullying” psicológico como “perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar”; o “bullying” físico como “socar, chutar, bater”; o “bullying” material como “furtar, roubar, destruir pertences de outrem”; e o “bullying” virtual como “depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social”.

Trata-se evidentemente de crime doloso, sendo certo que o sofrível tipo penal requer que intimidação sistemática seja praticada “de modo intencional”, certamente pretendendo estabelecer um elemento subjetivo específico, deixando bastante evidenciada a vontade de intimidar sistematicamente a vítima.

O tipo penal ainda requer, para a configuração do crime, que o “bullying” seja praticado “sem motivação evidente”, coroando a sofrível ausência de técnica legislativa. O dispositivo dá a entender que, se houver uma “motivação evidente” para a prática da conduta, o crime não restaria configurado. Mas o que seria “motivação evidente” que, se presente na intimidação sistemática, descaracterizaria o crime de “bullying”? Percebe-se, pois, a absoluta falta de técnica legislativa na elaboração do tipo penal.

O crime se consuma com a efetiva prática da conduta típica, ou seja, com a intimidação intencional e repetitiva, mediante violência física ou psicológica, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais. Deve ser ressaltado que o tipo penal exige a reiteração de atos (“de modo ...repetitivo”), caracterizando crime habitual. Entretanto, a efetiva configuração da reiteração (qual a quantidade de atos necessários) demandará a análise do caso concreto, sendo necessário que a jurisprudência estabeleça os precisos limites à incidência do tipo penal. Trata-se, outrossim, de crime de mera conduta, uma vez que ausente resultado naturalístico na descrição típica.

Cuidando-se de crime habitual, a tentativa é inadmissível. Portanto, um único ato de intimidação sistemática não configura o crime de “bullying”, tornando a conduta atípica. Ainda que se considere o caráter subsidiário da norma, estampado no preceito secundário (“se a conduta não constitui crime mais grave”), o crime mais grave a ser eventualmente configurado também demandaria a habitualidade, ínsita no tipo penal do “bullying”.

A figura qualificada do crime consiste na intimidação sistemática virtual, também chamada de “cyberbullying”, em que a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos “on-line” ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real.

Tanto o “bullying” quanto o “cyberbullying” são crimes de ação penal pública incondicionada.

O “bullying” constitui infração penal de menor potencial ofensivo, sendo cabível a transação penal, nos termos do procedimento estabelecido pela Lei n. 9.099/95.

No “cyberbullying”, por seu turno, descabe a suspensão condicional do processo (em razão da pena mínima cominada), não sendo cabível também o acordo de não persecução penal, haja vista a violência física ou psicológica empregada.

 

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