Billy, o gato, e a sinceridade

05/08/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto – 05/08/2015

Olá a todos!!!

Na semana passada tratei da dificuldade na utilização da linguagem dita natural/jurídica para fins de compreensão do texto normativo vigente, especificamente no que toca à tomada de decisão. Apresentei, para ilustrar essa questão, julgamento levado a cabo pelo Superior Tribunal de Justiça em que se discutiu se a cerveja poderia conter 0,5% de álcool e ainda assim ser tida como desprovida desta substância. Na oportunidade, também para exemplificar a controvérsia, rememorei a acentuada divergência outrora verificada entre os juristas argentinos Sebastián Soler e Genaro Carrió. Com base e lastro nesses pontos, terminei indagando se existiria uma forma média, ou metodologia apta a aplainar a dificuldade da utilização da linguagem.

Nesta semana, enunciarei algumas peculiaridades na compreensão deste embate. O caso-paradigma a viabilizar essa análise será o do gato Billy, que, segundo se apurou em reportagem realizada pelo jornal “Estadão”, foi cadastrado no Bolsa-Família como Billy da Silva Rosa e percebeu durante sete meses o benefício do governo no montante de R$20,00 (vinte reais) mensais. Ao que se depreende da reportagem, a descoberta ocorreu quando determinado agente de saúde foi até a casa do animal com o objetivo de convocá-lo para a pesagem no posto de saúde, tendo sido informado da verdadeira natureza jurídica do beneficiado[1].

De fora parte a análise da ilicitude da conduta em si, interessante considerar uma importante faceta da questão: a pretensão de sinceridade de quem se utiliza da linguagem para fins jurídicos ou cotidianos.

Ao se empreender um ato de fala[2], desenvolve-se necessariamente uma relação dialética, ou, segundo Charles Taylor, dialógica[3]. E esta relação se desenvolve com base em expectativas, comportamentais, psicológicas, ou de qualquer maneira relacionadas a atitudes e interações. A tomada de decisão, neste ponto, converte-se de um processo isolado, monológico, para um procedimento interacional, conjunto, baseado em fins e lastreado em algumas premissas de articulação esperada, aptas a funcionar como pano de fundo da movimentação comportamental que será levada a cabo com a posterior ação[4].

Essa lógica segue-se da mesma maneira no âmbito institucional. Espera-se determinado comportamento estável por parte do Poder Judiciário (o que fica evidenciado pela previsibilidade das decisões), do Poder Executivo, como decorrência de políticas públicas assentadas e previamente debatidas, evitando-se decisões de momento, inéditas ou questionáveis, porque ad hoc; e, igualmente, do Poder Legislativo, por intermédio da observância de balizas constitucionais e programas legislativos que perpassam as legislações de ocasião. Esta, evidentemente, é a expectativa, antes que se diga que advém de onírico desejo.

A estabilidade advém, em grande parte, da pretensão de sinceridade, que, não se confundindo com honestidade, garante que a tomada de decisões, particulares ou públicas, manifestem o que realmente pretendem.

O que isso tem a ver com o caso do gato Billy da Silva Rosa, ou a tomada de decisão? A pretensão de sinceridade encontra-se no manancial das vontades, no âmago das relações e, embutida em sua profundidade, caracteriza-se, sobretudo, pela intencionalidade. Ao cadastrar Billy como beneficiário do Bolsa-Família, esta sinceridade foi violada tanto em ambiente interno, pessoal, como relacional, tal qual a lei de ocasião, a decisão particularista, ou a política pública desvirtuada. A pecha é a mesma e, em idêntico grau, pode-se extrair a mesma nefasta consequência: o errôneo direcionamento, particular ou público, no atuar.

Somos todos responsáveis pela pretensão de sinceridade e, no processo jurídico, seja na elaboração como cumprimento e execução de leis, essa situação fica ainda mais evidente, já que o material positivado nada mais representa do que a relação intersubjetiva que dele advém, materializado por enunciação genérica e abstrata ou individual e concreta.

É de se indagar, então, se, e em que medida, a sinceridade produz ou é produzida pelas enunciações jurídicas. Haverá uma intencionalidade oriunda da própria linguagem? Ou, por outro lado, esta não pode ser pressuposta, mas construída a partir da movimentação interpessoal, seja de consenso, seja de conflito?

Há ao menos duas vertentes bem claras de divergência neste ponto. Axel Honneth, com embasamento Hegeliano fundamentado principalmente na sua concepção de reconhecimento, concebe a existência de um déficit sociológico existente entre o sistema e o mundo da vida, em vista da ausência de algo a permeá-los; o que chamou, no desenvolvimento de sua teoria, de ação social, capaz de dar conta do verdadeiro cerne da interação social, que não estaria no consenso, ou entendimento, segundo Habermas, mas no conflito. Incluiu na dinâmica social as chamadas “dinâmicas experienciais”, que também exercem a função de critérios normativos, consistentes na esfera emotiva, na jurídico-moral e na estima social[5].

Sob este apanágio teórico, os atores sociais, no âmbito do processo de deliberação, não trazem à tona apenas pretensões de validade, ainda que de maneira discursiva; mas formulam expectativas de reconhecimento, objetivando que os seus enunciados e pretensões não apenas encontrem lugar na argumentação, senão que toda pessoa seja considerada de maneira positiva; há, em suma, “uma relação positiva do sujeito consigo mesmo e com o outro, sem a qual as bases elementares para garantir a plena participação na esfera pública não são asseguradas” . O reconhecimento, para Honneth, é duplo: do sujeito consigo mesmo, por intermédio de um senso de integridade que o sujeito possui em relação a si próprio, que se co-constrói nas relações comunicativas linguísticas e extralinguísticas; e do outro em relação a si, que, por sua vez, reconhece a capacidade de afirmar sua própria especificidade[6].

Tendo em linha de conta esta alteração na concepção habermasiana de pragmática, o paradigma da comunicação passa a ser concebido não mais nos termos de uma teoria da linguagem, mas de uma teoria do reconhecimento, o que permite a passagem de uma teoria do consenso a uma teoria do conflito social. Honneth, portanto, embasando-se nas concepções de Hegel e Mead, constrói a teoria do reconhecimento a partir de três princípios integradores: i) as ligações emotivas fortes; ii) a adjudicação de direitos; e iii) a orientação por valores.

A segunda vertente sustenta ideias diametralmente opostas, concebendo na linguagem, mais especificamente na gramática, a existência de padrões que possam indicar – e, de certa forma justificar – até mesmo ações nefastas ou moralmente questionáveis, tal como a inscrição do gato Billy. Examinarei essa vertente na próxima semana. Acompanhem. Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Íntegra da reportagem encontra-se disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,gato-recebe-por-sete-meses-beneficio-do-bolsa-familia,312279. Acesso em 02 agosto de 2015.

[2] AUSTIN, John Langshaw. Como hacer cosas com palavras – Palabras y acciones. Barcelona Ediciones Paidos, 1982. AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer – palavras e ação. Tradução e apresentação à edição brasileira: Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

[3] TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. EDIÇÕES LOYOLA: São Paulo, 2000.

[4] O processo enunciado é desenvolvido em: TAYLOR, Charles. Fuentes del yo. La construcción de la identidad moderna. Traducción de Ana Lizón. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica S.A., 1996.

[5]  NETO, José Aldo Camurça de Araújo. A filosofia do reconhecimento: as contribuições de Axel Honneth a essa categoria. In: KÍNESIS, vol. V, n° 09 (Edição Especial), Julho 2013, p. 52-69.

[6] NOBRE, Marcos. Reconstrução em dois níveis – um aspecto do modelo crítico de Axel Honneth. In: MELO, Rúrion. A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e Justiça. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 12-13.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.”


Imagem Ilustrativa do Post: cat // Foto de: Jimmy Bi // Sem alterações Disponível em: hhttps://www.flickr.com/photos/96828128@N02/16925552798 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


   

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