Atitude Constitucional: o STF precisa reabrir as portas do Habeas Corpus diante da reiteração de violações. O recente caso do HC 132.331

04/01/2016

Por Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa - 04/01/2016

O sintoma de que o estreitamento da impetração da habeas corpus é algo a ser revisto pode ser constatado, mais uma vez. O Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Ricardo Lewandowski, no dia 30 dezembro do ano passado, concedeu a ordem no Habeas Corpus nº. 132331, para substituir o regime prisional fechado para o aberto e autorizar que o Juízo de Execução de Caraguatatuba, no Estado de São Paulo, substitua a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. O paciente foi condenado a dois anos de reclusão pelo crime de tráfico de drogas. Segundo o Ministro, mais uma vez o STF precisou dizer que a gravidade genérica do crime não é fundamentação suficiente para fixação do regime inicial fechado.

De acordo com os autos de origem, com base na quantidade e na natureza da droga que portava (18 pedras de crack) e nas circunstâncias em que elas foram encontradas, o Juiz de Direito fixou o regime fechado para o início do cumprimento da pena aplicada, negando-se a substituí-la por pena restritiva de direitos.

Após a rejeição de Habeas Corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça, a defesa impetrou nova ordem, agora junto ao Supremo Tribunal Federal. Em sua decisão, o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que a hediondez ou a gravidade genérica do delito não impunha, por si só, o regime prisional mais gravoso ao apenado, na medida em que o Juízo, em atenção aos princípios constitucionais da individualização da pena e da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, deve motivar o regime imposto observando a singularidade do caso concreto: “Compulsando os autos, verifico que a decisão atacada determinou o cumprimento da pena em regime fechado e negou a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos com base na gravidade em abstrato do crime”, afirmou o Presidente do Supremo, que adotou, como fundamento para a concessão da ordem, o entendimento proferido na Reclamação nº. 19126. “Assim como no precedente citado, constato que a primariedade do autor, as circunstâncias menos gravosas do caso e a fundamentação insuficiente da decisão proferida pelo juízo de origem são elementos suficientes a autorizar o cumprimento da pena em regime aberto”, concluiu.

A decisão monocrática do Presidente da Suprema Corte está correta, primeiro porque observou o Princípio da Individualização da Pena, previsto expressamente na Constituição da República, art. 5º., XLVI. Não se olvide que a individualização da pena engloba, não somente a aplicação da pena propriamente dita, mas também a sua posterior execução, com a garantia, por exemplo, do regime de cumprimento da pena. Observa-se que o art. 59 do Código Penal, que estabelece as balizas para a aplicação da pena, prevê expressamente que o Juiz sentenciante deve prescrever “o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade”, o que indica induvidosamente que o regime de cumprimento da pena é parte integrante do conceito “individualização da pena”.

Como ensina Luiz Luisi, “o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo.” (grifo nosso). Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: “Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução.”(...) “Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execução.” (...) “Esta fase da individualização da pena tem sido chamada individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais.”(...) “Relevante, todavia no tratamento penitenciário em que consiste a individualização da sanção penal são os objetivos que com ela se pretendem alcançar. Diferente será este tratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e sua função intimidatória, se por como finalidade principal da sanção penal o seu aspecto de ressocialização. E, vice-versa.” E conclui o autor: “De outro lado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualização judiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinqüente tem importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de execução.”[1] (grifos nossos).

O profesor peruano, Luis Miguel Reyna Alfaro, afirma que “la individualización judicial de la pena a imponer, es uno de los más importantes aspectos que deben ser establecidos por los tribunales al momento de expedir sentencia. Sostienen por ello con absoluta razón ZAFFARONI/ ALAGIA/ SLOKAR que la individualización judicial de la pena debe servir para ´contener la irracionalidad del ejercicio del poder punitivo`. Este proceso de individualización judicial de la pena es ciertamente un proceso distinto y posterior al de determinación legal de la misma que es realizado por el legislador al momento de establecer normativamente la consecuencia jurídica. Esta distinción es importante porque nos permite marcar la diferencia –a la que recurriremos posteriormente- entre ´pena abstracta` y ´pena concreta`. La primera está relacionada a la pena determinada legalmente por el legislador en el proceso de criminalización primaria, mientras la segunda se refiere a la pena ya individualizada por el operador de justicia penal, dentro del proceso de criminalización secundaria. Adicionalmente, ésta distinción ´pena abstracta- pena concreta` sirve para comprender que el proceso de individualización judicial de la pena es un mecanismo secuencial que pasa, en primer lugar, por establecer cuál es la pena establecida por el legislador para, en segundo lugar y sobre esos márgenes, establecer la aplicable al caso concreto y la forma en que la misma será impuesta. (...) Como se indicó anteriormente, el proceso de individualización judicial de la pena debe necesariamente encontrarse vinculado a los fines de la pena, lo que obliga a introducirnos al inacabable debate sobre el fin de la pena.[2] (grifo nosso).

Neste mesmo sentido, Rodríguez Devesa afirma que “pueden distinguirse tres fases en el proceso de determinación de la pena aplicable: individualización legal; individualización judicial e individualización penitenciaria.[3]

Ademais, esquece-se, com certa frequência, que a decisão judicial deve ser fundamentada, como determina o art. 93, IX, da Constituição e, obviamente, expressões genéricas como gravidade do crime não podem servir para tornar mais grave a situação do acusado ou do condenado. Isso serve, inclusive, para as decisões que decretam prisões provisórias com base em clamor social, ordem pública, segurança social, alta periculosidade, possibilidade clara de reiteração, e outros exercícios de futurologia...

A propósito, o Supremo Tribunal Federal tem dois enunciados que não deixam dúvidas a respeito do que acabamos de afirmar, a saber:

Enunciado 718: “A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”.

Enunciado 719: “A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea”.

Perceba-se que o paciente precisou chegar ao Supremo Tribunal Federal para obter o que a Corte reafirma de maneira reiterada, perfazendo verdadeira romaria jurisdicional, diante da postura renitente e ilegal dos órgãos jurisdicionais. A ordem foi concedida porque conseguir chegar ao STF. Quantos não conseguem? Daí a importância de buscarmos mecanismos aptos à contenção das reiteradas ilegalidades praticadas pelos juízos ordinários, já que nem todos conseguem chegar ao STF que, nos últimos tempos, reduziu as hipóteses de conhecimento. Sorte do paciente e parabéns ao Min. Lewandowski que demonstra coragem e atitude constitucional.


Notas e Referências.

[1] Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.

[2]La individualización judicial de la pena. Especial referencia al artículo 46 CP peruano”, encontrado no site www.eldial.com – 13 de junho de 2005.

[3] Apud Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, “Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal”, Madri: Editorial Colex, 1990, p. 30.


  Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.

   

Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui           


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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