Coluna Por Supuesto
Quando crime político é praticado por incentivo do momento político criado pelo chefe do Poder Executivo Federal é preciso parar, respirar profundamente, domar os sentimentos e falar sobre Direito. Observe-se bem: Direito e não normas jurídicas.
Muito se disse e tem dito sobre regras de crimes políticos, persecução penal, segurança nacional. Não é disso que se trata ou se deveria tratar.
É antiga, mas olvidada lição, aquela que preconiza ser o Direito muito mais que normas jurídicas. Desde a Antiguidade, passando pela era moderna até o presente, há diversas compreensões que propõem alternativas ao juspositivismo e que, dessa forma, veem no Direito algo além, anterior ao momento estatal de positivação de regras de dever-ser sobre o que é permitido, proibido ou obrigatório.
Aristóteles, com efeito, na tríade de obras “Ética a Nicômaco”, “Política” e “Retórica”, já na Antiguidade apresentava o Direito como justiça (do grego, dikè). A justiça que era concebida tanto em sentido universal, como partícipe necessária de todas as demais virtudes humanas (temperança, coragem, honestidade etc.), quanto em sentido particular, como distribuição de bens e honrarias na comunidade política entre os cidadãos (justiça distributiva) ou como restauração de uma situação desvirtuada (justiça corretiva ou diortótica) ou como justa medida nas trocas mercantis (reciprocidade). A norma posta pela comunidade política deveria ser observada somente na medida em que representava a expressão da prudência (do grego, phronesis) dos seres humanos, ou seja, o ápice do ajuste social justo (do grego dikaion) entre cidadãos iguais e, de qualquer maneira, sempre poderia ser corrigida por meio do recurso à equidade. Justiça era sempre social.
“O direito é relação, fenômeno social; repito mais uma vez que não existe direito de Robinson em sua ilha. O Dikaion não é o ‘direito subjetivo’ do indivíduo, pensado em função de um sujeito único, engendrado em um sistema inteiramente diferente de pensamento pelo individualismo moderno.”[1]
Atualmente, não à toa, busca-se elaborar uma compreensão apta a situar o Direito e os juristas no solo firme da realidade social e, nesse sentido, importante reafirmarmos algo que o professor Alarcón, de sala de aula e de manifestações públicas em diversos meios de comunicação social, dentro e fora do Brasil, tem sustentado: o Direito é fenômeno social/cultural e histórico que, pautado em valores, ordena normativamente as relações sociais para a obtenção de determinados fins[2].
E por que isso importa para o caso de homicídio de dirigente partidário por motivações políticas?
Ora, uma vez que o Direito é entendido como expressão necessária de dado estado histórico-cultural de uma sociedade; que essa sociedade tem valores morais e coletivos que devem ser respeitados e tidos como fonte da normatividade positivada pelo Estado; que os fins almejados por essa mesma sociedade, com lastro em seus valores, condicionam toda a atuação estatal e, mais, toda a conduta social dos indivíduos, então estamos falando sobre o Direito como padrão civilizacional de dada sociedade, ou seja, tanto destino final quanto realidade em ato de um processo civilizatório.
Assim, observe-se que os valores dignidade humana, vida digna e segurança, por exemplo, levam à finalidade de redução da violência como meio de solução de conflitos. Os valores dignidade, vida digna, igualdade e liberdade, por outro lado, levam à finalidade de uma justa distribuição de bens na e pela sociedade. O padrão civilizatório dado no Brasil, hoje, pois, vem plasmado, no Direito, pelas normas que se pautam nos referidos valores e promovem as referidas finalidades, tais como os artigos 1º, 3º e 5º, da Constituição Federal de 1988, por exemplo.
Um crime político motivado por ações e/ou omissões e/ou sugestões do chefe do Poder Executivo quebra o próprio lastro do padrão civilizacional brasileiro. Afronta não apenas os valores que a sociedade estabeleceu como mais importantes para seu desenvolvimento como também vulnera as finalidades pretendidas pelos brasileiros com o rechaço do governo ditatorial pré-1988.
Nem se diga que as motivações do agente criminoso eram Deus, família e pátria. A leitura de tais conceitos à luz do processo civilizatório brasileiro contemporâneo não pode albergar o assassinato de divergentes políticos. Deus, no Brasil que-se-deveria-civilizar de hoje, representaria amor, união e comunhão de grupos sociais em torno de promoção de valores religiosos de prestígio dos seres humanos em sua unidade divina com o Criador. Família seria o ambiente, por excelência, do amor concretizado em unidade de afeto, companheirismo e desenvolvimento, na promoção da liberdade e do fundamento da educação para a cidadania, sob livre planejamento de seus pares. Pátria representaria a união de todos os elementos humanos de dado território em razão do nascimento e dos valores que permeiam o grupo político geográfica e socialmente vinculado, ou seja, união pautada nos mesmos valores que embasam o padrão civilizatório brasileiro.
A conduta, tanto do agente do homicídio por razões políticas quanto do chefe do Poder Executivo que embasou e incentivou a conduta são mais que criminosas, portanto. Representam o anti-jurídico em sua máxima compreensão. São a contrariedade a todo o processo civilizatório brasileiro e ao padrão civilizacional que se almejou desde 1988. Ferem de morte o sistema jurídico brasileiro inteiro; o Direito como um todo e, por supuesto, não devem ser toleradas ou justificadas de forma nenhuma, sob argumento nenhum.
Notas e Referências
[1] VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 73.
[2] Conferir ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Ciência política, estado e direito público: uma introdução ao direito público da contemporaneidade. 5ª ed., São Paulo: Tirant Lo Blanch Brasil, 2022.
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