Aspectos polêmicos do processo penal alemão

30/12/2016

Por Valter Guerreiro – 30/12/2016

Considera-se como verdade que o direito processual penal é a área jurídica mais polêmica, seja para qual lado pender a opinião de cada um. Os debates sobre a legitimidade de determinadas provas, ou mesmo, sobre recursos e nulidades processuais deixam acalorados os ambientes acadêmico e forense.

Seja qual for a nacionalidade de origem da querela legal, a tensão é uma marca presente. O Código de Processo Penal da Alemanha (Strafprozessordnung – StPO), por sua vez, mesmo representativo de um sistema jurisdicional robusto, deixa lacunas importantes para o desenrolar dos litígios.

A primeira polêmica estrutural do processo penal alemão encontra-se na questão do juiz-ator ao revés do juiz-espectador. A busca pela produção de provas por parte do magistrado (§ 244 II StPO) faz sentido, mas deve encontrar limites na sua necessária imparcialidade, senão vejamos:

§ 244 II StPO. Das Gericht hat zur Erforschung der Wahrheit die Beweisaufnahme von Amts wegen auf alle Tatsachen und Beweismittel zu erstrecken, die für die Entscheidung von Bedeutung sind.”

A permissibilidade ao juiz togado colher provas na audiência, estende-se aos seus atos de ofício que determinem a busca por fatos e meios de provas dos quais sejam considerados relevantes para a busca da verdade, cujo teor está expresso, legalmente, noutro dispositivo normativo do StPO, sobretudo na parte inquisitiva ou pré-processual (Ermittlungsverfahren), conforme disponível a seguir:

§ 202 StPO. Bevor das Gericht über die Eröffnung des Hauptverfahrens entscheidet, kann es zur besseren Aufklärung der Sache einzelne Beweiserhebungen anordnen. Der Beschluß ist nicht anfechtbar.”

Registra-se que uma das formas de solucionar essa linha tênue entre diligência do juiz e a perda de sua imparcialidade, no alcance da verdade material, é colocada por Bernd Schünemann, da Juristische Fakultät der Ludwig-Maximilians-Universität München, que defende o reforço aos sujeitos processuais a partir de um sistema de balanceamento sob um modelo de processo equilibrado, como, por exemplo, a entrega do procedimento investigatório, de natureza preliminar, ao Ministério Público (Staatsanwaltschaft – StA), nestes termos:

§ 160 I StPO. Sobald die Staatsanwaltschaft durch eine Anzeige oder auf anderem Wege von dem Verdacht einer Straftat Kenntnis erhält, hat sie zu ihrer Entschließung darüber, ob die öffentliche Klage zu erheben ist, den Sachverhalt zu erforschen.”

O segundo ponto polêmico a ser tratado é a questão da relação entre a garantia da jurisdição e a originalidade cognitiva. O problema é verificado quando observa-se a prevenção como critério para fixação da competência do juízo, o que vai de encontro à asseguração da máxima eficácia do contraditório processual.

O enigma está em desvelar o entendimento contaminado do juiz que atua na investigação ao passo de uma futura condenação, pois se o mesmo já foi acionado durante a investigação preliminar, abre-se espaço para sua suspeita frente às fases instrutória (Zwischenverfahren) e decisória (Hauptverfahren).

Ocorre, mais precisamente, quando o magistrado recebe a denúncia (Eröffnungsbeschluss) ou permite medidas processuais cautelares de força constritiva e depois participa da colheita de provas.

Ora, não é de se sustentar outra coisa quando temos que a chamada decisão de abertura do processo principal guarda uma probabilidade de condenação, ou seja, em outras palavras, há um atinado problema no fato de o mesmo juiz auferir a incriminação, realizar a audiência de instrução e julgamento e, em seguida, deliberar sobre o caso criminal. Vejamos como diz o StPO a respeito:

§ 203 StPO. Das Gericht beschließt die Eröffnung des Hauptverfahrens, wenn nach den Ergebnissen des vorbereitenden Verfahrens der Angeschuldigte einer Straftat hinreichend verdächtig erscheint.

O terceiro tema em disputa refere-se ao conflito quanto à investigação entre polícia e o Ministério Público (Herrin des Ermittlungsverfahrens), mais especificamente quando do controle externo das atividades policiais.

Na persecução estatal alemã, cumpre ressaltar que o Ministério Público exerce uma relação de poder no âmbito do controle da polícia. O professor Kai Ambos, da Juristische Fakultät der Georg-August-Universität Göttingen, relata esse aspecto na própria origem histórica das atividades ministeriais:

“[...] se puede afirmar sin más que la lucha del ministerio fiscal por el control de la policía ha ido dejando huella a lo largo su historia; es más, es tan antigua como la institución misma.” – Control de la policía por el fiscal versus dominio policial de la instrucción, Prof.º Kai Ambos.

Percebe-se, então, que o Ministério Público, na condição de protetor das leis (Wächter des Gesetzes), possui plena legitimidade para fiscalizar a polícia, no intuito de coibir práticas policiais autoritárias.

A importância é tão perceptível que o período do qual houve um afastamento desse vínculo obrigatório, de encaminhamento ao Ministério Público, foi, injustamente, no período em que o país foi governado, à revelia do espírito democrático, pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP).

Portanto, nota-se que tal submissão ao ministério Público por parte dos setores policiais não é irrelevante, sendo, para tanto, disciplinada pelo StPO da consequente forma:

§ 161 I StPO. Zu dem in § 160 Abs. 1 bis 3 bezeichneten Zweck ist die Staatsanwaltschaft befugt, von allen Behörden Auskunft zu verlangen und Ermittlungen jeder Art entweder selbst vorzunehmen oder durch die Behörden und Beamten des Polizeidienstes vornehmen zu lassen, soweit nicht andere gesetzliche Vorschriften ihre Befugnisse besonders regeln. Die Behörden und Beamten des Polizeidienstes sind verpflichtet, dem Ersuchen oder Auftrag der Staatsanwaltschaft zu genügen, und in diesem Falle befugt, von allen Behörden Auskunft zu verlangen.”

De maneira objetiva, o sistema normativo alemão diz que o Ministério Público pode realizar inteiramente as investigações ou admitir tal exercício ao véu policial, mas com a obrigatoriedade de cumprimento de quaisquer diligências entendidas como cabíveis pelo conveniente Ministério Público.

Folheando o StPO, compreende-se um ponto importante para o refletido debate aqui presente, qual seja: a polícia não está amarrada à necessidade de requisição prévia do Ministério Público para averiguar um fato tido como criminoso.

De outra sorte, todavia, temos que os autos do procedimento investigatório devem ser conduzidos ao Ministério Público para a concretização dos efeitos legais, consolidando o domínio sobre as apurações do órgão policial. É o que dispõe a norma apontada adiante:

§ 163 StPO.

I. Die Behörden und Beamten des Polizeidienstes haben Straftaten zu erforschen und alle keinen Aufschub gestattenden Anordnungen zu treffen, um die Verdunkelung der Sache zu verhüten. Zu diesem Zweck sind sie befugt, alle Behörden um Auskunft zu ersuchen, bei Gefahr im Verzug auch, die Auskunft zu verlangen, sowie Ermittlungen jeder Art vorzunehmen, soweit nicht andere gesetzliche Vorschriften ihre Befugnisse besonders regeln.

II. Die Behörden und Beamten des Polizeidienstes übersenden ihre Verhandlungen ohne Verzug der Staatsanwaltschaft. Erscheint die schleunige Vornahme richterlicher Untersuchungshandlungen erforderlich, so kann die Übersendung unmittelbar an das Amtsgericht erfolgen.

III. Bei der Vernehmung eines Zeugen durch Beamte des Polizeidienstes sind § 48 Absatz 3, § 52 Absatz 3, § 55 Absatz 2, § 57 Satz 1 und die §§ 58, 58a, 58b, 68 bis 69 entsprechend anzuwenden. Über eine Gestattung nach § 68 Absatz 3 Satz 1 und über die Beiordnung eines Zeugenbeistands entscheidet die Staatsanwaltschaft; im Übrigen trifft die erforderlichen Entscheidungen die die Vernehmung leitende Person. Bei Entscheidungen durch Beamte des Polizeidienstes nach § 68b Absatz 1 Satz 3 gilt § 161a Absatz 3 Satz 2 bis 4 entsprechend. Für die Belehrung des Sachverständigen durch Beamte des Polizeidienstes gelten § 52 Absatz 3 und § 55 Absatz 2 entsprechend. In den Fällen des § 81c Absatz 3 Satz 1 und 2 gilt § 52 Absatz 3 auch bei Untersuchungen durch Beamte des Polizeidienstes sinngemäß. 185 Absatz 1 und 2 des Gerichtsverfassungsgesetzes gilt entsprechend.

Assevera-se que é a partir de tal procedimento que o Ministério Público vai formar opinio delicti, na perspectiva de estar convencido sobre a autoria e a materialidade referentes às possíveis imputações criminosas que possam ser feitas, conforme o artigo assinalado abaixo:

§ 170 StPO.

I. Bieten die Ermittlungen genügenden Anlaß zur Erhebung der öffentlichen Klage, so erhebt die Staatsanwaltschaft sie durch Einreichung einer Anklageschrift bei dem zuständigen Gericht.

II. Andernfalls stellt die Staatsanwaltschaft das Verfahren ein. Hiervon setzt sie den Beschuldigten in Kenntnis, wenn er als solcher vernommen worden ist oder ein Haftbefehl gegen ihn erlassen war; dasselbe gilt, wenn er um einen Bescheid gebeten hat oder wenn ein besonderes Interesse an der Bekanntgabe ersichtlich ist.

Não é outra a visão, senão a que denota ao Ministério Público, em razão de seus conhecimentos processuais, o poder de avaliar em eventos difíceis o que é indispensável ao processo penal, sendo ele, pois, o titular da investigação e, assim sendo, possuidor do monopólio da acusação (Anklagemonopol).

A principal relevância da matéria em termos polêmicos é abordada pelo jurista Claus Roxin, da mesma instituição de ensino superior de B. Schünemann, cuja explicitação segue no sentido de que parte do § 163 II StPO permite à polícia encaminhar os autos investigativos diretamente ao juiz, principalmente nos casos em que haja noção de medida cautelar frente à reserva de jurisdição.

No entanto, faz-se imperioso destacar que a situação acima elencada diz respeito, tão somente, à remessa dos autos ao juiz, com a sugestão do órgão policial, com fundamento nos pressupostos reclamados pelo § 165 StPO, transcrito logo mais:

§ 165 StPO. Bei Gefahr im Verzug kann der Richter die erforderlichen Untersuchungshandlungen auch ohne Antrag vornehmen, wenn ein Staatsanwalt nicht erreichbar ist.”

O quarto e último ponto polêmico a ser aqui levantado, sem a pretensão de exaurir o tema, é sobre o instituto jurídico da prisão preventiva.

De início, cabe dizer que qualquer medida cautelar, ainda mais as que restringem a liberdade do indivíduo, não podem servir como antecipação da pena criminal, devido aos princípios da presunção de inocência (Unschuldsvermutungsprinzip) e da liberdade como regra no sistema processual (Freiheitsprinzip).

No processo penal alemão, quando os indícios que levam á autoria e á materialidade são intensos, chama-se de dringender Tatverdacht, o que corresponde ao brocardo latino fumus commissi delicti.

O risco á obstrução da instrução criminal, por sua vez, é conhecido como Verdunkelungsgefahr, assim como o perigo de fuga ou periculum libertatis constitutem o Fluchtgefahr.

Outro aspecto interessante é o cometimento de um crime capital, considerado grave, que afete de formal malsinada o sentimento público, justificando-se, para tanto, a decretação de prisão preventiva, o que se convencionou denominar de Vorliegen eines Kapitalverbrechens.

O ponto alto da discussão é por causa das arbitrariedades que são impostas em muitos casos, com disfarces em modo de fundamentação plausível, ou seja, outros interesses vindo a prejudicar o correto funcionamento do processo.

As alegações referem-se aos conhecidos fundamentos de prisão apócrifos (Apokryphe Haftgründe), constituindo um desvio ao real objetivo da prisão preventiva, seja para conseguir uma confissão do réu (Förderung der Geständnisbereitschaft), ou mesmo, para tentar uma colaboração no sentido de desestruturar a suposta organização criminosa (Förderung der Kooperationsbereitschaft mit den Ermittlungsbehörden).

Percebe-se, assim, que a decretação da prisão preventiva (Untersuchungshaft) pode significar um mau uso do instituto, se não respeitado os requisitos previstos legalmente.

À guisa de conclusão, foi apresentado 04 pontos polêmicos do direito processual alemão, muito parecidos com as questões bastante divergentes que temos em terras canarinhas. O processo penal é apaixonante por seus debates, mas não deve ser autoritário ou destinar-se a um fim que não é o seu, sobretudo no tocante à utilização certa dos institutos jurídicos previstos, seja no StPO ou no Código de Processo Penal brasileiro (CPP).


valter-guerreiro. Valter Guerreiro é acadêmico de Direito da FA7, estagiário profissional do Autran Nunes, Teixeira & Barreto Advogados (ANTB), secretário de finanças do Centro Acadêmico Agerson Tabosa (CAAT) e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). valter.mnova@gmail.com. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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