Aspectos da experiência neurojurídica: livre - arbítrio, responsabilidade e racionalidade (Parte 3)

26/08/2016

Por Atahualpa Fernandez e Manuella Fernandez  - 26/08/2016

Leia também: Parte 1, Parte 2, Parte 4Parte 5Parte 6

A ninguno de nosotros le gusta el pensamiento de que lo que hacemos depende de procesos que no conocemos; preferimos atribuir nuestras elecciones a la voluntad, el libre albedrío, el autocontrol… Quizás sería más honesto decir: Mi decisión fue determinada por fuerzas internas que desconozco”.

Marvin Minsky

Livre-arbítrio (1)

Os filósofos profissionais se perguntam desde há muito tempo, sem haver avançado grande coisa, se é possível conciliar o que sabemos do comportamento dos humanos, submetidos, como tudo o que pertence ao mundo natural, a forças que não controlam, e nossa tendência a julgar-lhes como se fossem livres e responsáveis de seus atos. Esse debate sobre o livre-arbítrio, que durante muito tempo pertenceu ao âmbito exclusivo dos filósofos, cobrou uma nova vida entre os neurofilósofos, psicólogos evolucionistas e neurocientistas em geral que estudam como funciona o cérebro. E dado que a questão de se temos livre-arbítrio não é um arcano debate acadêmico sobre filosofia, senão uma pergunta crítica cuja resposta nos afeta de muitas maneiras, cada vez de modo mais urgente o mundo jurídico começa a exigir respostas.

Pois bem, o conhecimento atual da neurobiologia demonstra que não é possível falar-se de uma completa liberdade e nos diz que no momento em que o indivíduo experimenta algo conscientemente o cérebro já fez seu trabalho, isto é, respalda a ideia de que o livre-arbítrio é uma inteira ilusão1: quando somos conscientes de que tomamos uma decisão o cérebro já induziu esse processo (o que levanta a questão de se as ações escapam a nosso controle). Um poderoso argumento contra o livre-arbítrio, quer dizer, contra a livre vontade da pessoa, surgiu com o famoso e surpreendente experimento realizado por Benjamin Libet em que se demostrava que os processos inconscientes no cérebro são o iniciador verdadeiro dos atos da volição, ou seja, que o cérebro decide o que vamos fazer antes que sejamos conscientes de tomar a decisão.2

Também os psicólogos e os neurocientistas estão demonstrando que a própria experiência da vontade poderia ser uma ilusão que a evolução nos proporcionou para conectar nossos pensamentos, que surgem de processos inconscientes, e nossos atos, que também surgem de processos inconscientes. Creem isto porque nossa sensação de ter a «vontade» de realizar um ato “puede ser cambiada, creada o incluso eliminada mediante la estimulación cerebral, la enfermedad mental o los experimentos psicológicos. La ineluctable conclusión científica es que aunque sintamos que somos personajes en la obra de nuestras vidas, reescribiendo nuestros papeles sobre la marcha, en realidad somos marionetas que representan guiones escritos por las leyes de la física”. (J. A. Coyne)

Ainda assim, como é evidente que todos temos a sensação de que causamos conscientemente nossos atos, a maioria das pessoas (filósofos e juristas incluídos) considera esta ideia intolerável: tão poderosa é nossa ilusão de que realmente decidimos. Por que temos esse sentimento, essa sensação? Que função adaptativa cumpre a experiência do livre-arbítrio? Por que o livre-arbítrio, que vem a ser a relação entre nossos pensamentos e nossas ações, é uma possessão tão querida?

Para o que aqui interessa, e evitando perder-nos em disquisições filosóficas ou em realizar um exame exaustivo do amálgama de (neuro) teorias e crenças que conformam o pot-pourri da liberdade de decidir, nos limitaremos a dizer que o livre-arbítrio é a ideia de que podemos atuar ou fazer eleições sem estar constrangidos por circunstâncias externas, condicionantes internos ou instâncias como o destino ou a vontade divina; isto é, a capacidade de elegir entre formas de ação, incluindo o não fazer nada, no mundo que nos rodeia (John Searle, por exemplo, define o livre-arbítrio como “la posibilidad de haber actuado de otra manera diferente a como lo hicimos”)3. Esta capacidade tem raízes profundíssimas: algumas vêm da evolução, “otras de partes de la corteza cerebral, el órgano que más finamente nos ajusta al mundo que nos rodea y que contienen lo que Ortega llamaba la «circunstancia»”. (J. M. Fuster)4

Assim que ninguém nem nenhuma lei da natureza pode torcer em princípio nossa vontade. Consideramos-nos capacitados para tomar decisões e continuamos pensando que nossas decisões são nossas, como se vivêramos excluídos ou em uma dimensão à parte da atividade fisiológica dos tecidos de um cérebro moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa espécie e aparelhado para pensar, eleger e decidir de certa maneira, inventando-nos toda classe de agentes que rompam as cadeias causais, invocando “centros de poder transempíricos, egos inmateriales, yoes nouménicos, causas inobjetivables, y toda una letanía de otras instancias especiales cuyas operaciones no quedan muy claramente explicadas” (R. Kane) - por isso o livre-arbítrio vai estreitamente vinculado ao conceito de responsabilidade (moral, civil, penal, etcétera).

A ideia básica consiste em que fazemos uso da deliberação consciente quando decidimos como atuar, quer dizer, que em ausência de coação, tomamos decisões livremente. Os argumentos a favor dessa liberdade (livre-arbítrio, ou dito mais acertadamente, a “natureza da ação”) se baseiam tipicamente na intuição ou na experiência subjetiva direta: «Sinto que tomei a decisão de levantar o dedo justo agora». Mas, como afirmar que somos livres nesse sentido se bailamos ao som da química, da genética e da física? Não requer a avaliação do livre-arbítrio de certos matizes mais além de nossas intuições imediatas? Por acaso não sabemos que a intuição humana é uma guia da realidade notoriamente pobre?5


Notas e Referências:

1 A palavra ilusão não significa que não exista: “existe como fruto de la actividad cerebral que al parecer genera esa ilusión en nuestro propio beneficio” (S. Blackmore). Ademais, tudo indica que as ilusões cognitivas que nos induzem a pensar no livre-arbítrio favorecem de algum modo a nossos genes, razão suficiente para manter intensamente viva essa ilusão no cérebro humano; ilusão que pode ser tão convincente que perfeitamente podemos negar-nos a admitir que é uma ilusão. (J. Bering)

2 Em 2008, John Dylan Haynes modernizou o estudo de Libet (Unconscious determinants of free decisions in the human brain) e pôde predizer com uma précisão de 60% das vezes o que elegeriam os participantes. Em seu segundo estudo de 2011 (Tracking the Unconscious Generation of Free Decisions Using UItra-High Field fMRI) utilizou técnicas de exploração mais precisas e foi capaz de confirmar seus descobrimentos anteriores: que as intenções motoras eram codificadas no córtex frontopolar até sete segundos antes de que os participantes foram conscientes de suas decisões. Em 2011, Itzhak Fried (Internally Generated Preactivation of Single Neurons in Human Medial Frontal Cortex Predicts Volition)estudou indivíduos com eletrodos em seus cerebros e pôde predizer o momento em que se toma uma decisão com mais de 90% de precisão: "La voluntad podría surgir cuando la acumulación de actividad de conjuntos neuronales cruza un umbral". A meados de 2014, um estudo realizado pelo Center for Mind and Brain  da University of California, Davis, e publicado no Journal of Cognitive Neuroscience (Spontaneous Neural Fluctuations Predict Decisions to Attend), encontrou que a ilusão do livre-arbítrio poderia proceder de ruído do cérebro:Este hallazgo proporciona evidencia para una explicación mecanicista de la toma de decisiones mediante la demostración de que la actividad neuronal en curso sesga las decisiones voluntarias sobre a dónde ir en un momento dado”. Nota bene: O experimento de Libet mostrava que a atividade que o cérebro realiza para preparar um movimento ocorre uns décimos de segundos antes de que a pessoa manifeste ser consciente de sua intenção de realizá-lo. Para entender-nos, é como se os neurônios de uma pessoa tomassem uma determinada decisão antes que ela mesma. Nada obstante, há que reconhecer que esse razoamento parece enviar mensagens contraditórias, porque pressupõe que os neurônios são algo diferente ao indivíduo e, se isso fora correto, teríamos um grande problema para explicar que é a pessoa se não é seu cérebro e a mente que esse cérebro cria. Ademais, como explica Richard Restak, “el hecho de que pueda mostrarse que la decisión y sus fundamentos neurológicos se produjeron antes de que los sujetos tuvieran conciencia de haber tomado una decisión no implica que quien tomó la decisión no fuera el yo”. Por outro lado, os resultados de dito experimento também já foram questionados por outros mais recentes realizados com técnicas mais precisas, que afirmam que o processo cerebral de deliberação (a tomada de decisões) consciente não é instantâneo, senão que requer um tempo, e o momento em que a pessoa diz ser consciente de sua decisão não é posterior a ela, senão mais bem a conclusão desse mesmo processo (I. Morgado). Por dizê-lo de alguma maneira: a atividade cerebral preparatória não deve pensar-se como uma sequência, senão como múltiplos processos, que involucram muitas áreas, desenvolvendo-se em paralelo dentro de uma complexa rede “en la que las interacciones diseminadas se producen de forma continua” (R. Restak). Essas evidências não demonstram, obviamente, a existência do livre-arbítrio, porque se as condutas muito distantes da normalidade estão determinadas por nossa química cerebral, não há nenhuma razão para supor que as condutas consideradas mais comuns não estejam igualmente causadas por nosso cérebro.

3 A liberdade costuma entender-se como uma propriedade da vontade, e dizemos que temos vontade livre quando se dão ao menos as seguintes condições: 1) entre um conjunto de possibilidades, a que elegemos está em nossas mãos; 2) uma ação é livre se existe também a possibilidade de não fazê-la (poderíamos haver atuado de outra maneira, porque existem possibilidades alternativas; quer dizer, a opção que tomamos em um momento dado era evitável); 3) a fonte de nossas ações está em nós, e não em algo sobre o que não temos controle; 4) a ação há de ser intencional; 5) é necessário que se tenha a impressão de realizar a ação por si mesmo (ainda que, por suposto, não seja mais que uma impressão).

4 O livre-arbítrio a miúde se contrapõe ao determinismo, segundo o qual todos os acontecimentos do mundo estão supostamente determinados por acontecimentos prévios, concepção geralmente aceitada como verdadeira pelos cientistas. Os incompatibilistas afirmam que o livre-arbítrio e o determinismo não podem reconciliar-se, e que, portanto, se pensamos que o determinismo é verdadeiro não podemos crer no livre-arbítrio. Os compatibilistas sustentam – com diferentes argumentos – que, ainda quando o determinismo seja verdadeiro, podemos fazer eleições complexas que contam como livre-arbítrio.(S. Blackmore)

5 Medio siglo de investigación psicológica ha demostrado que cuando la gente trata de evaluar intuitivamente las cosas, sus cabezas activan estereotipos, eventos memorables, impresiones subjetivas, incidentes escogidos selectivamente, escenarios vivos y narrativas morales”. (S. Pinker)


Atahualpa FernandezAtahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Manuella FernandezManuella Fernandez é Abogada Il·lustre Col·legi d’Advocats de les Illes Balears – ICAIB/España; Doctora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears-UIB, España; Doctorado Derecho Público/ Universitat de les Illes Balears-UIB, España; Master (M.Sc.) Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB, España; Research Scholar/ Fachbereich Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, Deutschland; Miembro de la Comisión de Derechos Humanos del ICAIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Almada Negreiros Street sculpture and the loving couple // Foto de: Pedro Ribeiro Simões // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pedrosimoes7/14071603160

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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