As mídias sociais e as Genis: em 2016 sobrou culpabilização da vítima

03/01/2017

Por Luanna Tomaz de Souza – 03/01/2017

“Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni!”

Chico Buarque

O ano de 2016 foi emblemático (para suavizar minha impressão) em diferentes aspectos. No âmbito das violências cometidas contra as mulheres, muitos casos chamaram atenção, em especial das mídias sociais. Alguns casos continuam invisíveis como aqueles que ocorrem contra mulheres indígenas, prostitutas, negras, trans, ribeirinhas, dentre outras. Outros casos ganharam grande repercussão, seja promovendo revolta, seja colocando as mulheres no centro de um verdadeiro “massacre midiático”.

Um dos casos mais famosos foi o de uma adolescente vítima de estupro coletivo[1], que sofreu inúmeras agressões em redes sociais questionando sua falta de consentimento e até a insinuação de um delegado de que a mesma gostava de sexo grupal[2].

Só no mês de dezembro três casos ganharam atenção das mídias sociais. O primeiro ocorreu em Três Corações, Minas Gerais. Um homem teria agredido sua esposa, que seria delegada, e uma policial militar que tentava ajudá-la. O vídeo foi divulgado nas redes sociais e a “culpada” foi eleita: a esposa. Segundo alguns comentários[3]:

“A delegada é a mais culpada, não que o cara não seja doido, mas ela é conivente. O que é pior.” 

“parabéns ao marido que teve autodomínio e bateu pouco nela” 

“Por que a segurança se meteu na briga? Se a mulher dele, que é delegada, não fez nada, por que a segurança resolveu provocar o cara bêbado e emocionalmente alterado? A reação dele foi desproporcional, mas a segurança provocou quando o mandou "baixar a bola". Mulher que não respeita homem tem que apanhar SIM.”

A maioria dos comentários e compartilhamentos da matéria questionavam porque uma delegada apanhava do marido e depositavam nela a culpa pela situação. Prevalece uma lógica de que só seria justificável uma mulher aceitar uma relação violenta se não tivesse curso superior ou uma profissão na área de segurança pública, o que ignora que a violência alcança mulheres de diferentes idades e estratos sociais. Além disso, se imputa uma visão moralista e individualista que acredita que a mulher entrou em uma situação de violência por uma simples escolha e desta mesma forma deve sair, o que despreza todo um contexto social de machismo, que banaliza a violência e pressiona às mulheres à aceita-la.

Outro caso de muita repercussão foi o de uma entrevista com o ator hollywoodiano Vin Diesel[4]. Na entrevista, ele interrompe inúmeras vezes uma brasileira com frases como: "Você é tão bonita", "Vamos sair daqui, vamos almoçar", "Eu te amo", "Estou apaixonado pela entrevistadora" e 'Ela é muito sexy", chegando a se ajoelhar diante da youtuber.

Surgiram vídeos na internet[5] questionando a conduta da entrevistadora e devassando entrevistas anteriores dela para ver como ela agia e diversos comentários afirmando coisas como: “essa moça não bate bem da cabeça e é uma oportunista, quer 15 minutos de fama” [6]. O comum em quase todas as postagens foi a críticas às feministas que estariam vendo algo que não teria acontecendo só para se promover.

Interessante observar que foi a própria entrevistadora que relatou o mal-estar e não os movimentos, alvos das críticas. Além disso, é risível acreditar que em um país em que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada[7] pessoas achem que os movimentos feministas tem que se esforçar muito para achar casos a denunciar. Pelo contrário, o que tem se questionado muito é a chamada “cultura do estupro”, que naturaliza práticas de assédio e objetificação da mulher.

Na virada do ano, em plena festa de réveillon um homem invadiu um imóvel e matou doze pessoas, incluindo a ex-mulher e o próprio filho, e depois se matou. Em carta deixada culpa a mulher, que ganhou a guarda da criança na justiça. Segundo ele: “a vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos”. Além disso, responsabiliza o “sistema feminista” e “as loucas”[8]. Nas redes sociais, muitos comentários diziam[9]:

Não podemos condenar este homem, sem saber primeiro o que essa mulher fez para leva-lo a cometer este ato de loucura, POIS TODOS NOS SABEMOS QUE AS MULHERES LEVAM OS HOMENS AO EXTREMO. 

pra mim é grande burrice, principalmente das mulheres. Além de ficar com pensão alimentícia, casa, carro, etc. ainda querem proibir que o filho não veja o pai. Hoje tem a guarda compartilhada 

Quando a mãe tirou a guarda do filho do pai...já sabia o monstro ele era

Todos os exemplos citados, demonstram que independente dos contextos e condutas, um dos discursos mais presentes é aquele que responsabiliza a mulher pela violência. De acordo com a pesquisa do IPEA (2014), “Tolerância social à violência contra as mulheres”, 65,1% (sessenta e cinco vírgula um por cento) da população concorda com a afirmação “Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”. Em pesquisa feita pelo Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mais de 33% da população brasileira consideram a vítima culpada pelo estupro, e 42% dos homens e 32% das mulheres entrevistados concordam com a afirmação: “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”.

Esse jogo perverso de atribuição de culpa às mulheres esvazia por completo todo o projeto voltado à sua proteção, reproduzindo o caldo de cultura em que está imerso e a violência institucional e tem como resultado um maior distanciamento na relação com as jurisdicionadas, piora nos mecanismos de acesso à Justiça, realimentação da “inferioridade cidadã” feminina, regresso no processo de construção do Estado Democrático de Direito[10].

Em pesquisa realizada em meu doutorado[11], pude observar para além da culpabilização, uma lógica muito comum de patologização, principalmente em casos de violência conjugal. A mulher tende a ser retratada pelo sistema de justiça, e pela sociedade como um todo, como uma pessoa “louca” e “dependente”, principalmente quando ela decide deixar de seguir adiante com a demanda policial.

Segundo a pesquisa DataSenado de 2013[12], seis motivações são apontadas tanto para vítimas quanto para a sociedade em geral para situações como essa: medo do agressor, dependência financeira, percepção de que nada acontece com o agressor, preocupação com a criação dos filhos, vergonha de se separar e de admitir que é agredida e acreditar que seria a última vez. Para Elena Larrauri[13], dentre outras, temos como possíveis razões: a) a falta de apoio econômico; b) o temor às represálias; c) a desinformação e falta de atenção; d) a preocupação com bem-estar das/os filhas/os, sendo que muitos homens manipulam as mulheres dizendo que vão tirar a guarda; e) a desconfiança quanto às declarações da mulher.

Não fazer ocorrência ou não levar adiante uma demanda criminal causa grande indignação em uma sociedade punitivista que acredita que o sistema de justiça criminal seja a panaceia para os problemas da sociedade. Há inclusive muitas campanhas voltadas a estimular as mulheres a prestar ocorrências. Estas campanhas ignoram que as ocorrências têm crescido a cada ano, ou seja, as mulheres têm denunciado, todavia são inúmeros os obstáculos impostos a ela por parte do sistema de justiça criminal, desde a morosidade à falta de informações, o que faz com que muitas delas busquem formas diferentes de resolução dos conflitos, como fugir, se divorciar ou se tentar a reconciliação.

Segundo o informe da Relatora Especial de Violência contra as Mulher das Nações Unidas, entre os fatores que dificultam o acesso à justiça pela mulher em situação de violência se destacam: o preconceito dos órgãos da justiça e dos juízes e juízas sobre o tema violência de gênero, assim como a pobreza, a falta de autonomia econômica da mulher; o analfabetismo jurídico; a exclusão da vida pública e política; o medo e as inibições que sofrem as mulheres em suas demandas judiciais e a falta de grupos de promoção poderosos que apoiem as suas demandas de justiça[14].

Em 2017, que tenhamos mais respeito pelas mulheres, em especial àquelas em situação de violência. Isso não só nas mídias sociais, mas em toda a sociedade, principalmente na rede de apoio, incluindo o sistema de justiça, alvo de tantas denúncias de agressões contra vítimas, em 2016[15]. Além da necessidade de mais mecanismos de monitoramento, um dos caminhos possíveis e necessários é, conforme a própria Lei Maria da Penha determina[16] uma educação que questione as discriminações de gênero, e suas interseções como raça e classe social. Infelizmente, foi também em 2016 que assistimos o surgimento de leis inconstitucionais voltadas a proibir esse debate[17].

Ganha força ainda um discurso que ataca feministas, acusadas de “feminazis”, “vadias”, “oportunistas”. Isso não é recente. Historicamente a zombaria foi utilizada como arma contra os movimentos feministas[18]. Utiliza-se de tais representações com vistas à conservação do status quo. Só nos resta resistir. Conquistas foram alcançadas ao longo do tempo, mas precisamos de mais. É necessário cada vez mais fortalecer a luta em prol da reconstrução da democracia e a ampliação da cidadania das mulheres, em toda sua diversidade. Só assim conseguiremos enfrentar a violência.


Notas e Referências:

[1] Disponível em: http://g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2016/10/adolescente-sofre-estupro-coletivo-dentro-da-casem-em-pe-diz-policia.html. Acesso em 27 dez. 2016.

[2] Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/decisao-de-afastamento-de-delegado-do-caso-de-estupro-no-rio-e-adiada.html. Acesso em 27 dez. 2016.

[3] Disponível em: http://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2016/12/ele-nao-merece-perdao-diz-mulher-agredida-por-marido-de-delegada.html. Acesso em 27 dez. 2016.

[4] Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/vin-diesel-assedia-youtuber-brasileira-durante-entrevista-em-sp.ghtml. Acesso em 27 dez. 2016.

[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f-L2Krs1cW0. Acesso em 27 dez. 2016.

[6] Disponível em: http://www.ilisp.org/noticias/farsa-do-assedio-carol-moreira-e-seu-aproveitamento-pelas-feministas/. Acesso em 27 dez. 2016.

[7] Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,uma-mulher-e-violentada-a-cada-11-minutos-no-pais,10000053690. Acesso em 27 dez. 2016.

[8] Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2017/01/01/internas_polbraeco,563244/autor-da-chacina-em-campinas-enviou-carta-a-amigos-sobre-intencoes-de.shtml. Acesso em: 01 jan. 2017.

[9] Disponível em: http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2017/01/familia-e-morta-em-chacina-durante-festa-de-reveillon-em-campinas.html. Acesso em 01 jan. 2017.

[10] BRANDÃO, Cristiane. Violência contra a mulher e as práticas institucionais. Série Pensando o Direito. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, 2015.

[11]  SOUZA, Luanna Tomaz. Da expectativa à realidade: a aplicação de sanções na Lei Maria da Penha. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2016.

[12] Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/datasenado/pdf/datasenado/DataSenado-Pesquisa-Violencia_Domestica_contra_a_Mulher_2013.pdf. Acesso em 20 fev. 2016.

[13] Larrauri, Elena. Mujeres y sistema penal: violência doméstica. Montevideo: Euros Editores, 2008.

[14] MELLO, Adriana Ramos de. “A Importância da formação dos operadores do Direito em Violência de Gênero e Direitos Humanos, como instrumento de acesso à Justiça” Revista EMERJ, Rio de Janeiro. 57(15), 43-58, 2012.

[15] Disponível em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/09/declaracoes-de-promotor-contra-vitima-de-estupro-causam-polemica.html. Acesso em 27 dez. 2016.

[16] Art. 8º  A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes:  (...) VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

[17] Disponível em: http://www.clebertoledo.com.br/n82582. Acesso em 27 dez. 2016.

[18] SOIHET, Rachel. Mockery as a conservative instrument among libertarians: Pasquim's antifeminism. Rev. Estud. Fem., Florianópolis,  v. 13,  n. 3,  2005.  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000300008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22  Apr  2012.


luanna-tomaz-de-souza. Luanna Tomaz de Souza é Doutora em Direito (Universidade de Coimbra). Professora de Direito Penal da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia e da Clínica da Atenção à Violência da UFPA. Autora do livro: “Da expectativa à realidade: a aplicação de sanções na Lei Maria da Penha”.


Imagem Ilustrativa do Post: This plane is definitely crashing. // Foto de: Devanny // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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