Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz
E então? Vencemos o crime?
Já ninguém mais nos oprime
Pastores, pais, lei e algoz?
Que bom voltar pra família!
Viver a vidinha à pilha!
Yuppies sabor baunilha
Era uma vez todos nós!
(Os profissionais, Belchior)
Diante de fatos que revelam as mazelas do funcionamento dos órgãos estatais e da atuação agentes públicos, elementos que desafiam a “fé” popular nesses atores, dando margem para que sejam repensados, esses agentes tem apresentando um comportamento reiterado: albergam-se no mantra: “as instituições estão funcionando”, em seguida lançam suspeitas sobre aqueles que apontam a necessidade de mudança. Como o que é demais repetido geralmente quer ocultar algo, a reiteração da frase “as instituições estão funcionando” deve provocar os seguintes questionamentos: basta as instituições funcionarem? Como elas estão funcionando? Para quem elas funcionam? Qual a sua razão de ser?
As instituições apresentam-se ambíguas, é preciso combater constantemente a sua fetichização. A autonomia das instituições precisa combinar com a heteronomia da sua legitimidade, elas necessitam ser postas diante do povo para sua legitimação por meio do consenso. Quando o consenso se converte em norma, firma-se a legitimidade dos estatutos jurídicos, os quais não podem permanecer fechados em uma legitimidade procedimental. Assim, apresenta-se um importante instrumento para a construção da legitimidade do Direito, principalmente da Constituição.
Diante disso, cumpre recobrar o povo como ator de transformação da história[1], e assim desafiar as instituições, de modo a resignificá-las. Ao sustentar o povo como agente político supremo e incondicionado, seu protagonismo não pode ser diminuído ante o indivíduo, do mesmo modo que ele não é apenas a soma de individualidades.
O fetichismo é uma afirmação e uma negação ao mesmo tempo. Da mesma forma que nega reposta às interpelações feitas pelo povo, à medida que o sistema se fecha sobre si, afirma uma forma de absolutização que termina em uma relação de totalidade; é a dialética como uma relação fechada. Do mesmo modo que trabalho e valor se convertem em preço, absolutizando o valor e ocultando o trabalho, na política isso ocorre quando a potentia, o poder da comunidade política, produz a potestas, a objetivação do poder popular. No entanto, o fato típico da fetichização é negar que existem dois elementos distintos em uma relação.
Para Dussel o poder se apresenta em duas formas, como Potentia[2], fonte originária das energias políticas de uma comunidade, e como Potestas[3],a qual representa a dimensão institucional. Duas dimensões que possuem caráter complementar e vinculativo, mas que, com frequência, encontram-se em tensão e agindo de forma dissociada. Tem-se o poder fetichizado[4] quando a Potestas, cuja razão de ser é expressar e materializar a Potentia, não realiza sua função, desvinculando-se do povo, sendo apropriada pelo interesse individual daqueles que ascendem ao poder, fato típico das sociedades capitalistas, nas quais, via de regra, quem tem o poder econômico tem também o político.
Neste caso, as instituições se voltam contra a comunidade política, origem, fundamento e razão de todo poder político. Em uma ordem fetichizada, os agentes públicos não prestam contas a população, mas ao Estado controlado por eles próprios.
Assim, surgem fenômenos como a corrupção e os demais desmandos de autoridade, os quais também tendem a ser vistos como faltas individuais, no entanto eles são antecedidos de uma corrosão primordial: o distanciamento das instituições da comunidade política, fator causador da corrupção e da sedimentação das relações de opressão no âmbito estatal. O combate à corrupção e aos abusos do poder também são corrompidos, à medida que buscam punir as faltas individuais, sem uma reflexão sobre a causa primária destas práticas, mais ainda, sem perceber que elas se repetem porque as instituições e o Estado se encontram em uma condição crônica de corrupção, oriunda da infidelidade e do distanciamento do povo, quadro que favorece a ocorrência de faltas individuais cometidas por agentes públicos. Fator mais grave que acaba servindo ainda para a naturalização das estruturas de dominação.
Isso ocorre devido a uma irradiação da fetichização, e por que, seja no macro ou no micropoder, acentuam-se os desvios daqueles que mandam-mandando, pois em maior ou menor escala se exerce o poder sem sujeitar-se a nada, a não ser à hierarquia interna estatal, nela o autêntico titular (povo) é submetido ao Estado, estando exposto a sua violência, posta como legítima.
Como a participação política é condicionada pelas instituições, nela os seus agentes tendem a formação de um consenso tácito em nome da manutenção do estado das coisas. Os procedimentos de funcionamento da democracia, que deveriam produzir formas de tornar cada vez mais racional e eficiente o seu processo, convertem-se em mecanismos de defesa daqueles que se apropriam do espaço público e exercem o poder em nome próprio.
A projeção do reconhecimento alteritário no âmbito da ação política tem como mote a denúncia do poder fetichizado, feito só realizável na prática de uma política fundada em outras bases, tendo o propósito de desaguar em outra percepção do poder, no qual as instituições sejam apropriadas pelo povo, de modo a superar o poder fetichizado pelo poder obediencial. [5] Evento exequível por meio da ação política desencadeada por uma comunidade crítica, a qual “deve desconstruir efetivamente no sistema sua negatividade e transformá-lo (ou produzir outro novo), para que as vítimas possam viver, participando simetricamente nas decisões.”[6]
Notas e Referências
[1]“Assim, povo é o ‘bloco comunitário’ dos oprimidos de uma nação. O povo é constituído pelas classes dominadas (classe operário-industrial, camponesa, etc.), mas além disso por grupos humanos que não são classe capitalista ou exercem práticas de classe esporadicamente (marginais, etnias, tribos, etc.). Todo este ‘bloco’ – no sentido de Gramsci– é o povo como ‘sujeito’ histórico da formação social, do país ou nação”, ou seja, “o povo como dominado é massa; como exterioridade é reserva escatológica; como revolucionário é construtor da história”. DUSSEL, Enrique Domingo. Ética comunitária: liberta o pobre! Tradução de Jaime Clasen. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 97.
[2]“Potentia é o poder do povo ou da comunidade. Na instância da comunidade há uma “vontade-de-vida” ou uma potência que pode impulsioná-la para grandes ações perante a ameaça da reprodução da vida e a necessidade de sobrevivência. Essa essência positiva é o que determina o conteúdo do poder e representa o fundamento material da definição de poder político”. DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p.26.
[3]“o processo de passagem de um poder fundamental (potentia) a sua constituição como poder organizado (potestas) começa quando a comunidade política se afirma a si mesma como poder instituinte (...) decide-se dar uma organização homogênea de suas funções para alcançar fins diferenciados. (...) a necessária insituicionalização do poder da comunidade, do ovo, constitui o que denominaremos a potestas. A comunidade institucionalizada, ou seja, tendo criado mediações para seu exercício possível, cinde-se da mera comunidade indiferenciada” DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 32.
[4]O poder fetichizado, é a concepção de poder da Modernidade colonialista e do Império. Resulta da “vontade-de-poder” como domínio sobre opovo, sobre os mais fracos, sobre os pobres. A política submete-se à vontade das instituições fetichizadas, em favor de alguns membros particulares da comunidade, ou no caso dos países pós-coloniais, como os latino-americanos, em favor dos Estados metropolitanos. Fetichizado é o poder auto-referente, e por isso repressor e antidemocrático. Fetichizado é o poder para benefício do governante, do seu grupo, da classe burguesa. DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 34.
[5]“o poder obedencial seria, assim, o exercício delegado poder de toda autoridade que cumpre com a pretensão política de justiça, de outra maneira, do político reto que pode aspirar ao exercício do poder por ter a posição subjetiva necessária para lutar em favor da felicidade empiricamente possível de uma comunidade política, de um povo.” DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 40.
[6] DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 129.
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