AS ILEGALIDADES PROCESSUAIS DOS EXCLUDENTES DE ILICITUDE E DAS TENTATIVAS DE DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

26/03/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Na atualidade do Brasil, as abordagens acerca sobre a descriminalização ou não do aborto são deveras intensos e beligerantes, ignorando-se ou a realidade das mulheres, ou a realidade dos nascituros, ou a própria legislação externa ao âmbito penal que torna processualmente inviável e ilegal qualquer tentativa de descriminalização do aborto no cenário brasileiro. Para se defender a vida, e vida em plenitude e abundância, e dialogar de forma sensível e coerente acerca de tal problemática, é preciso, primeiramente, refletir acerca do processo legislativo e das questões processuais que impedem a descriminalização do aborto (senão causando uma balbúrdia processual ao desrespeitar toda a normativa jurídica e a Constituição Federal), bem como observar as possíveis saídas para que o Estado brasileiro não assine seu atestado de incompetência no que tange à garantia dos direitos fundamentais às mães e aos nascituros.

Primeiramente, deve-se ressaltar que a descriminalização do aborto não está restrita ao âmbito da legislação penal. Para que sejam revogados os tipos penais descritos nos arts. 124 e 126 do Código Penal nos adequados moldes legais, o Poder Legislativo Federal deve votar pela revogação ou pela não-revogação, haja vista que, segundo o art. 22 da Constituição Federal de 1988 (Brasil), compete privativamente à união legislar, dentre outras matérias, sobre direito civil e penal. De qualquer forma, essa revogação, em consonância com a legislação atual, ainda seria ilegal mesmo que fosse encaminhada para votação no Congresso, tendo em vista que viola as garantias fundamentais estabelecidas na Constituição: segundo o caput do art. 5º, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, estando garantida a inviolabilidade do direito à vida (Brasil, 1988), e em consonância com o art. 203, é direito do cidadão brasileiro a assistência social visando à proteção da família, da infância e da maternidade (Brasil, 1988).

Dessa forma, estando as garantias fundamentais protegidas por cláusula pétrea, para que fosse descriminalizado o aborto, precisar-se-ia de uma nova Constituinte, contra os quais já se posicionaram os próprios movimentos de esquerda e movimentos feministas. Uma nova Assembleia Nacional Constituinte e a elaboração de uma nova Constituição Federal que tornasse processualmente viável a descriminalização do aborto representariam um grande retrocesso no que tange às garantias fundamentais e à cidadania dos indivíduos. Independentemente da concordância dos movimentos feministas ou de sua discordância, proteger a cidadania da pessoa humana significa proteger, primeiramente e acima de tudo, o seu direito de existir desde o ventre materno. O Pacto de San José de Costa Rica (Brasil, 1992), do qual o Brasil é signatário, traz em seu art. 4º com clareza a afirmação de que “ninguém pode ser privado do seu direito à vida arbitrariamente” e que “a vida deve ser respeitada e protegida por lei desde o momento de sua concepção”. Dessa forma, torna-se evidente que a Constituição e o Pacto de San José de Costa Rica são complementares entre si: enquanto a Constituição afirma que a vida é inviolável, o Pacto descreve a partir de quando a vida é iniciada e, por conseguinte, torna-se inviolável, ou seja, desde o seu primeiro milésimo de segundo, ainda que em estágio germinativo.

Outrossim, o Código Civil (Brasil, 2002) ainda que considere o início da personalidade humana a partir do nascimento com vida, resguarda claramente os direitos do nascituro: vida, saúde, honra, imagem, herança, pensão alimentícia e integridade física. Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) declara vários direitos tangentes aos pequenos infantes intrauterinos que não somente tangem à vida, mas também à plenitude do exercício deste direito, como o atendimento pré-natal, a saúde e bem-estar tanto da criança quanto da mãe, o atendimento psicológico gratuito às gestantes, parturientes e puérperas pelo Sistema Único de Saúde. Por fim, o Marco Legal da Primeira Infância (Brasil, 2016) reafirma os direitos do nascituro e da criança com até seis anos de vida, resguardando o direito ao nascimento, à saúde, à alimentação, dentre outros.

Ao considerar essa gama imensa de direitos garantidos aos nascituros e às gestantes, pode-se observar que a revogação dos tipos penais do aborto induzido só seria possível com a revogação de todos esses dispositivos legais que garantem todos os direitos da criança desde a concepção. Uma nova Constituição precisaria ser elaborada, um novo Estatuto da Criança e do Adolescente, um novo Código Civil, além de que o Brasil seria retirado do Pacto de San José de Costa Rica, o que representaria um grande retrocesso em matéria de cidadania, garantias fundamentais e proteção à infância e à maternidade. A Constituição Cidadã, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e o Código Civil de 2002, ainda que com suas necessidades de aperfeiçoamento gradual, representaram um avanço no que tange a esses elementos tão cruciais para a manutenção do bem-estar e da democracia, bem como da boa formação da pessoa humana em sua dignidade e integridade física e moral. O processo de aperfeiçoamento da lei é completamente normal, haja vista que, na medida em que a sociedade se transforma, novos direitos também surgem. Entretanto, as transformações jurídicas são normais, aceitáveis e desejáveis quando caminham no sentido de progresso, e não de retrocesso. No Direito Romano, a partir da Lei das XII Tábuas, o pai de família tinha direito sobre a vida e a morte dos seus filhos (Alves apud Crisóstomo e Cazotte, 2022). É certo que não é a isso que desejamos retornar. Por isso, é inadmissível a apologia ao aborto, bem como o clamor de determinados movimentos em prol do atentado à vida da criança, e maior ainda é a selvageria que moldou e ainda molda as tentativas ilegais de descriminalização do aborto, bem como o ativismo judicial que estabelece os excludentes de ilicitude para o crime de aborto induzido e para o aborto induzido por terceiro com consentimento da mulher.

Iniciemos a abordagem pelas questões do ativismo judicial e dos atropelos ilegais para determinação dos excludentes de ilicitude do aborto. Os excludentes de ilicitude estão dispostos no art. 23 do Código Penal (Brasil, 1940) que afirma não haver crime quando o agente pratica a conduta por estado de necessidade, legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal, ou em exercício regular do direito. Nesse sentido, convém esmiuçar de forma detalhada o que significam esses excludentes de ilicitude. No que tange ao estado de necessidade, disposto no art. 24 (Brasil, 1940), é necessário que haja perigo atual a direito próprio ou alheio, sacrificando um direito menor em relação a outro maior, ao exigir-se razoabilidade no que concerne ao direito ameaçado. Uma criança no ventre não causa perigo atual ao direito da mãe para que se torne razoável excluir a ilicitude do aborto. Da mesma forma, ao observar o art. 25, considera-se legítima defesa o uso moderado dos meios necessários, com a finalidade de repelir injusta agressão atual ou iminente. Mais uma vez, além de representar uma imoderação, uma criança no ventre não oferece nenhuma agressão injusta, nem atual nem iminente, haja vista que a criança no ventre não tem capacidade de agredir a mãe, e está somente existindo.

No que concerne aos casos de violência sexual, não é a criança no ventre que oferece risco ou agride injustamente a gestante, mas o pretérito agressor. Por mais que o crime de estupro seja uma atrocidade lamentável e que seja crucial oferecer cuidado, apoio, proteção e defesa às vítimas desse crime, não foi a criança no ventre que o cometeu, não sendo razoável, portanto, condená-la à morte por crime alheio. No art. 5º, XLVII, da Constituição Federal (Brasil, 1988), é vedada a pena de morte no Brasil, assim como as penas corporais. No inciso XLV do mesmo artigo, declara-se que a pena não passará da pessoa do condenado, não havendo legitimidade para se condenar, menos ainda à morte, uma criança no ventre pelo crime de seu progenitor.

Não se trata aqui de obrigar a gestante a viver a maternidade de uma criança fruto de estupro: o direito à entrega da criança para adoção é legítimo e incontestável, e no Brasil ainda não se vê o potencial da adoção para salvar vidas. Uma mulher jamais deve ser obrigada a viver a maternidade de bom grado após ser vítima de violência, a menos que, ao receber suporte e preparo psicológico, julgue-se capaz de assumir a missão linda e nobre da maternidade. O Estado brasileiro, no que concerne às últimas mudanças legislativas promissoras em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), assumiu o compromisso de prestação de apoio e atendimento psicológico às gestantes, parturientes e puérperas. Uma mulher gestante, ainda que traumatizada por uma violência atroz, pode contar com o apoio e o atendimento de saúde mental, para conseguir manter a criança viva até o parto, viabilizando a entrega para adoção, e assim, evitar-se-á mais um trauma doloroso para a mulher, e a perda da vida da criança que, gerada numa situação problemática de dor, sofrimento e truculência, não pode ser condenada somente por existir.

Outrossim, no que tange ao feto anencéfalo, a ADPF 54 (Supremo Tribunal Federal, 2012) descriminalizou o aborto eugenésico, que como o próprio nome já diz, visa à eugenia da criança com deficiência cerebral grave, como é o caso da ausência de telencéfalo altamente desenvolvido. Os votos favoráveis ao aborto eugenésico argumentaram não existir possibilidade de vida em crianças anencéfalo, informação que foi desmentida pelo Conselho Federal de Medicina, visto que a criança anencéfala pode viver desde minutos até anos. Este é um caso evidente de ativismo judicial que não possui validade científica ou legal, haja vista que não é competência do Supremo Tribunal Federal decidir se uma criança com anencefalia possui ou não direito à vida, ou mesmo sua possibilidade, tampouco decidir acerca de sua dignidade de usufruir desse direito ou possibilidade, assim como, nos moldes processuais indicados, não convém ao Supremo Tribunal Federal descriminalizar ou excluir ilicitudes. O Supremo Tribunal Federal não possui competência para legislar sobre a matéria penal. A competência do Poder Judiciário Brasileiro é julgar a constitucionalidade das normas, ou seja, a consonância entre a norma infraconstitucional e a Constituição Federal, da qual o Supremo Tribunal Federal, não é dono, nem guardião, ainda que se porte como tal, mas possui função de escravo e servo absoluto da Constituição e da dignidade da pessoa humana.

No que tange ao último excludente de ilicitude, referente ao risco de morte para a mãe, é preocupante, primeiramente, a vagueza do dispositivo em não estabelecer critério científico para definir as circunstâncias do risco de morte, tampouco estabelecer prazo gestacional, deixando todas essas decisões nas mãos de um magistrado que poderá decidir discricionariamente ou até mesmo de forma arbitrária. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), bem como o Marco Legal da Primeira Infância (Brasil, 2016), garantem o pré-natal de qualidade pelo Sistema Único de Saúde para as gestantes a fim de garantir a possibilidade de que as duas vidas sejam salvas. Nesse sentido, é correto, legal, moral e adequado da parte do Estado, garantir o bom funcionamento e as melhorias do Sistema Único de Saúde, com enfoque no pré-natal e na proteção à saúde da gestante, assim como investir na capacitação médica e no aumento dos recursos humanos da área da saúde obstétrica, além de investir em terapias, medicamentos e tratamentos para problemas graves de saúde que sejam adequados para a gestante, tendo por finalidade salvar as duas vidas, garantindo-lhes o seu merecido bem-estar biopsicossocial que lhes é devido.  Por fim, o investimento tanto em política pública de saúde quanto no desenvolvimento da pesquisa e da ciência é crucial, a fim de desenvolver suporte para as gestantes e para as crianças, de forma a lhes garantir a qualidade de vida durante e após a gestação.

Acerca da ADPF 442, o Supremo Tribunal Federal também não possui competência para descriminalizar o aborto, haja vista que a revogação dos arts. 124 e 126 do Código Penal são de competência do Poder Legislativo, e exigem todo o arcabouço de revogações da Constituição, do Código Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Marco Legal da Primeira Infância e da consequente retirada do Brasil do Pacto de San José de Costa Rica, tornando a tentativa de se descriminalizar o aborto por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental uma ilegalidade estapafúrdia, causadora de uma balbúrdia estarrecedora entre os três poderes constitucionalmente divididos cada qual para suas respectivas funções, e de um pavoroso retrocesso no que tange ao direito à vida, à cidadania e à proteção das infâncias, da família e da maternidade.

Por fim, a recente Nota elaborada pelo atual Ministério da Saúde, revogada logo após as críticas e polêmicas beligerantemente levantadas em torno dessa questão delicada e digna de toda a nossa sensibilidade, também atenta em questões materiais e processuais contra o direito da criança intrauterina: primeiramente, não compete ao Poder Executivo interpretar prazo legal para excludentes de ilicitude, os quais, no caso do aborto, já são violadores e completamente descabidos, fruto de ativismo judicial e de um processo totalmente fugitivo aos moldes legais adequados. Além disso, o Ministério da Saúde atenta contra o direito à vida e à dignidade humana das crianças intrauterinas com anencefalia ou geradas por violência, deixando de garantir a saúde física, psicológica e a integridade da mulher e da criança conforme as diretrizes do Estatuto da Criança, bem como abstendo-se de estabelecer políticas públicas dissuasórias, ao assinar, por fim, o seu atestado de incompetência no que tange à garantia do direito à vida, do bem-estar social, das políticas públicas de proteção à infância e à maternidade, e à dignidade humana, assistência social e qualidade de vida de mulheres, gestantes, mães e crianças que já existem e já vivem, mas não nasceram.

Por isso, é preciso reafirmar a posição de defesa da vida desde o seu primeiro milésimo de segundo pós-concepção e das políticas públicas com a finalidade de proteção da infância, da maternidade, do trabalho de cuidado, que garantam a dignidade humana, o pleno emprego das mulheres e seu respectivo acesso e permanência tangente à formação intelectual, acadêmica e profissional, a acessibilidade e inclusão, a erradicação da fome, da miséria e da pobreza, o combate ao racismo e a qualidade de vida em todos os âmbitos descritos na Constituição Federal, a fim de que sejam salvas todas as vidas, e que o Estado brasileiro não assine sentenças de morte contra mulheres e crianças inocentes, nem sucumba à assinatura de seu atestado de incompetência no asseguramento de direitos básicos e mínimos dos seus cidadãos.

 

Notas e referências

BRASIL. Constituição Federal de 1988, promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 11 mar 2024.

BRASIL. Decreto nº 678, instituído em 6 de novembro de 1992. Pacto de San José de Costa Rica. Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. Acesso em: 11 mar 2024.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2848, instituído em 7 de dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro. Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 11 mar 2024.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído em 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em: 11 mar 2024.

BRASIL. Lei nº 10.406, instituída em 10 janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 11 mar 2024.

CRISÓSTOMO, Mateus Ramos. CAZOTTE, Thiago Canholato. Direito Romano: origem do código Brasileiro. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 12, Vol. 05, pp. 102-112. Dezembro de 2022. ISSN: 2448- 0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/codigo-brasileiro. Acesso em: 11 mar 2024.

BRASIL. Lei nº 13.257, instituída em 8 de março de 2016. Marco Legal da Primeira Infância. Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm. Acesso em: 11 mar 2024.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 54, julgada em 12 de abril de 2012. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF54.pdf. Acesso em: 11 mar 2024.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 442, voto da Ministra Rosa Weber em 22 de setembro de 2023. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Voto.ADPF442.Versa771oFinal.pdf. Acesso em: 11 mar 2024.

 

Imagem Ilustrativa do Post: 2560px still from the 'Monkaa' Creative Commons Attribution 'open movie'. // Foto de: Futurilla // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/futurilla/35371308085

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura