Por João Paulo Orsini Martinelli – 17/10/2016
Que o Brasil é um país tomado pela corrupção, em todos os setores da vida pública e privada, não restam dúvidas. Do aluno que “cola” na prova ao político que desvia verbas públicas, a corrupção está infiltrada nos atos cotidianos, muitas vezes sem que percebamos o prejuízo causado à sociedade como um todo. As causas da corrupção são muitas e complexas, o que torna seu combate algo extremamente difícil. Apesar dos entraves, a repressão e a prevenção de qualquer ato ilícito não pode ferir a ordem constitucional, pois, se assim for, o Estado torna-se tão criminoso quanto o corrupto e, como consequência, perde sua legitimidade para punir. O problema da corrupção não está nas leis, portanto, seu enfretamento não pode estar baseado numa reforma legislativa violadora da Constituição e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. O pragmatismo não pode superar a essência.
As famosas “dez medidas contra a corrupção” foram apresentadas pelo Ministério Público Federal como instrumento para acabar com a corrupção pública e privada e estão previstas no PL 4850/2016. Dentre as medidas, destacam-se algumas barbaridades como o teste de integridade dos agentes públicos da Administração Pública (e, aparentemente, são excluídos os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público), a redução do prazo prescricional para certos crimes (ignorando-se, completamente, os próprios fundamentos da prescrição), a restrição do uso do habeas corpus (nessa, Pontes de Miranda remexe-se no túmulo) e a execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação.
Curiosamente, não se encontram, entre as medidas, a indenização automática para quem cumprir pena antes do trânsito em julgado e for absolvido pelos tribunais superiores, o estabelecimento da duração razoável do processo (prevista na Constituição Federal e no Pacto de São José da Costa Rica) e de punição à autoridade que não cumpri-la, a menção expressa aos membros do Ministério Público como destinatários do teste de integridade, instrumentos que possam conter eventual abuso das autoridades envolvidas, a imposição de responsabilidade para quem fazer uso imoderado da privação de liberdade. Enfim, não há o contrapeso necessário para se estabelecer a paridade de armas e garantir a eficácia das investigações e persecuções dentro dos limites estabelecidos pela Carta Magna. Isso é resultado de um movimento messiânico de combate ao crime no qual há um lado bom, perfeito e casto, e, do outro, os maus, presumidamente culpados.
Não se trata de apoiar a corrupção, mas deve haver respeito aos preceitos constitucionais, assim como o próprio Ministério Público deve ser respeitado. Não se pode partir da premissa de que a busca por um resultado, por mais digno que seja, pode passar por cima dos princípios iluministas elementares, pelos quais milhares de pessoas lutaram, e até morreram, ao longo da história. Efetividade se busca com reformas profundas, por isso é incorreto jogar nas costas do direito penal – a ultima ratio – a solução de todos os problemas. Já não basta o Supremo Tribunal Federal distorcer um dos poucos textos claros e precisos da Constituição Federal, ao permitir a execução provisória da pena, e ainda restam as “dez medidas” que enxergam apenas um lado do conflito: a falta de punição. Esquecem os autores das medidas que a falta de efetividade também é um problema interno das instituições e, sobre este, calam-se, numa atitude arrogante de “autoendeusamento”. Não podemos esquecer que uma das causas do excesso de processos criminais são as denúncias contra crimes de pouco ou nenhum impacto social, como furtos – muitos tentados – de pequeno valor, “tráfico” de drogas (normalmente o acusado é traficante tão “perigoso” que precisa ser assistido por Defensor Público porque não pode pagar advogado particular) ou desacato (crime que deveria ter sido revogado, segundo recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos). Crimes dos quais o titular da ação é o próprio Ministério Público.
Os depoimentos dos Procuradores da República a respeito dos “dez mandamentos”, digo, “dez medidas” lembram os discursos dos técnicos de futebol. Quando o time vence, o mérito é de quem escalou os jogadores e armou a tática correta; quando perde, a culpa é dos jogadores. Se o time não faz uma boa campanha, a culpa é da diretoria, que não contratou os jogadores indicados pelos técnicos. Um certo treinador chegou a dizer, em entrevista coletiva, que só se ganha campeonato com “camarões”, não com “bagres”; assim, a diretoria do clube deveria ser responsabilizada pela fraca campanha, pois os “camarões” indicados não chegaram. Há, inclusive, treinadores que adotam o discurso “eu ganho, vocês perdem”, ou seja, a vitória é minha, mas a derrota é dos outros.
No mesmo sentido, e sem plagiar o amigo Alexandre Morais da Rosa e sua teoria dos jogos no processo penal, a culpa pela corrupção no Brasil parece ser das leis “fracas” manejadas pelas pessoas perfeitas, que só são derrotadas porque o sistema jurídico é favorável ao criminoso. Quando há condenação, o trabalho da acusação foi bem feito; quando há absolvição, a lei não presta e o sistema é podre. Até eventuais nulidades devem ser ignoradas, mesmo que provocadas por falta de técnica processual da acusação ou por violação dolosa da lei. O discurso para a aprovação das “dez medidas” é esse: dêem-me as leis que eu escolhi e o trabalho será bem feito; caso contrário, a culpa pela impunidade nunca será minha. Aí está o dilema. Se as “dez medidas” forem aprovadas, o que é bem provável, os “técnicos” terão os “jogadores” escolhidos por eles; e a questão que surge é: a culpa pela eventual vitória da corrupção no futuro será dos “técnicos”? Em outras palavras, quando alguém praticar ato de corrupção a culpa será do Ministério Público, que não soube fazer uso das próprias leis inconstitucionais à sua disposição? No futebol, quando o técnico tem tudo o que pede e não obtém o resultado esperado, é demitido. E na política criminal, o que aconteceria?
. João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro. .
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