Publicado no dia 21 de julho de 2023, em edição extra do Diário Oficial da União, o novo Decreto nº 11.615/23 regulamenta a Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), para estabelecer regras e procedimentos relativos à aquisição, ao registro, à posse, ao porte, ao cadastro e à comercialização nacional de armas de fogo, munições e acessórios, disciplinar as atividades de caça excepcional, de caça de subsistência, de tiro desportivo e de colecionamento de armas de fogo, munições e acessórios, disciplinar o funcionamento das entidades de tiro desportivo e dispor sobre a estruturação do Sistema Nacional de Armas - SINARM.
Já de início, no art. 2º, o novo Decreto estabelece uma longa relação de definições, indo desde “airsoft” e “paintball” até o que se considera arma de fogo (de diversas espécies), certificados (de todo tipo), porte de arma (de várias espécies), passando por colecionadores, caçadores, armeiros, instrutores e insumos, dentre outras definições.
Vale ressaltar que o mencionado Decreto revoga expressamente vários dispositivos do Decreto nº 9.847/19 e dos Decretos nº 10.030/19, nº 10.627/21 e nº 10.630/21, revogando, ainda, integralmente os Decretos nº 9.981/19, nº 11.035/22, nº 11.366/23 e nº 11.455/23, os dois últimos mais recentes, do início do ano. Curioso notar que o revogado Decreto nº 11.366/23 foi aquele editado já no primeiro dia do novo governo federal, em 1º de janeiro de 2023, que suspendeu os registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito por caçadores, colecionadores, atiradores e particulares, restringiu os quantitativos de aquisição de armas e de munições de uso permitido, suspendeu a concessão de novos registros de clubes e de escolas de tiro, suspendeu a concessão de novos registros de colecionadores, de atiradores e de caçadores, e instituiu grupo de trabalho para apresentar nova regulamentação à Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), nova regulamentação essa que desembocou justamente no novo Decreto nº 11.615/23, ora em análise.
Estabelecendo as finalidades do SINARM (Sistema Nacional de Armas) no art. 3º, o novo Decreto fixa a competência da Polícia Federal no art. 4º, passando a esta instituição a competência, dentre outras, para definir, padronizar, sistematizar, normatizar e fiscalizar o registro de armas de fogo e cadastro de munições e acessórios, exceto as armas, as munições e os acessórios das instituições a que se refere o § 1º do art. 3º; a concessão de porte de arma de fogo pessoal e de suas renovações; a transferência de propriedade, registro de perda, de furto, de roubo, de extravio e de outras ocorrências relativas às armas de fogo, às munições e aos acessórios suscetíveis de alterar os dados cadastrais, inclusive as decorrentes do encerramento das atividades de empresas de segurança privada e de transporte de valores; a atividade de armeiro e seu vínculo com as entidades de tiro; a instrução em armamento e tiro e comprovação de capacidade técnica e aptidão psicológica; e a concessão e emissão da guia de tráfego. Incumbe também à Polícia Federal estabelecer as quantidades de armas de fogo, de munições, de insumos e de acessórios passíveis de aquisição pelas pessoas físicas e jurídicas autorizadas a adquirir ou portar arma de fogo, vinculadas ao SINARM, observados os limites estabelecidos no decreto, além do cadastramento das apreensões de armas de fogo, por meio eletrônico, inclusive as vinculadas a procedimentos policiais e judiciais.
Ao Comando do Exército, por intermédio do Ministério da Defesa, competirá apresentar proposta ao Presidente da República para tratar da classificação legal, técnica e geral dos produtos controlados, além de proposta de definição e de classificação legal, técnica e geral das armas de fogo, das munições, dos componentes e dos acessórios de uso proibido, restrito ou permitido ou obsoletos e de valor histórico, mediante referenda do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Uma das grandes novidades trazidas pelo novo decreto foi a retirada da atribuição do Comando do Exército de autorizar e fiscalizar a produção, exportação, importação, desembaraço alfandegário e o comércio de armas de fogo e demais produtos controlados, inclusive o registro e o porte de trânsito de arma de fogo de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs), prevista no art. 24 do Estatuto do Desarmamento, atribuição que passa a ser da Polícia Federal. Em princípio, nos parece que a retirada dessas atribuições do Comando do Exército, conferindo-as à Polícia Federal, é inconstitucional, uma vez que a norma estampada no art. 24 da Lei nº 10.826/03, votada e aprovada pelo Congresso Nacional, não poderia ser modificada por um decreto regulamentador. Isso porque, segundo as regras constitucionais, princípio da legalidade e hierarquia das leis, um decreto, como ato normativo infralegal, hierarquicamente inferior ao estatuto normativo de que trata, não pode suplantar os limites já delineados e revogar a lei, devendo se restringir a auxiliar o correto alcance da norma legal.
Inclusive, no prazo de sessenta dias, contado da data de publicação do novo decreto, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública e o Ministério da Defesa deverão celebrar acordo de cooperação para estabelecer os termos da migração da competência para a Polícia Federal. Esse acordo de cooperação estabelecerá a forma como ocorrerá a migração de competência do Comando do Exército para a Polícia Federal das atribuições relativas à autorização e ao registro das atividades de caça excepcional, tiro desportivo e colecionamento, do porte de trânsito, do controle e da fiscalização de armas, munições e acessórios de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores excepcionais, previstas no já mencionado art. 24 do Estatuto do Desarmamento.
Outrossim, o novo Decreto estabeleceu expressamente o que se entende por “armas e munições de uso permitido”, “armas e munições de uso restrito” e “armas e munições de uso proibido”, nos arts. 11, 12 e 14.
Assim, são de uso permitido as armas de fogo e munições cujo uso seja autorizado a pessoas físicas e a pessoas jurídicas, especificadas em ato conjunto do Comando do Exército e da Polícia Federal, incluídas: I - armas de fogo de porte, de repetição ou semiautomáticas, cuja munição comum tenha, na saída do cano de prova, energia de até trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules, e suas munições; II - armas de fogo portáteis, longas, de alma raiada, de repetição, cuja munição comum não atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules; e III - armas de fogo portáteis, longas, de alma lisa, de repetição, de calibre doze ou inferior.
São de uso restrito as armas de fogo e munições especificadas em ato conjunto do Comando do Exército e da Polícia Federal, incluídas: I - armas de fogo automáticas, independentemente do tipo ou calibre; II - armas de pressão por gás comprimido ou por ação de mola, com calibre superior a seis milímetros, que disparem projéteis de qualquer natureza, exceto as que lancem esferas de plástico com tinta, como os lançadores de paintball; III - armas de fogo de porte, cuja munição comum tenha, na saída do cano de prova, energia superior a trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules, e suas munições; IV - armas de fogo portáteis, longas, de alma raiada, cuja munição comum tenha, na saída do cano de prova, energia superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules, e suas munições; V - armas de fogo portáteis, longas, de alma lisa: a) de calibre superior a doze; e b) semiautomáticas de qualquer calibre; e VI - armas de fogo não portáteis. Passaram a ser de uso restrito, portanto, as pistolas semiautomáticas de calibres 9mm, .40 e .45 ACP.
Por sua vez, são de uso proibido: I - as armas de fogo classificadas como de uso proibido em acordos ou tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja signatária; II - os brinquedos, as réplicas e os simulacros de armas de fogo que com estas possam se confundir, exceto as classificadas como armas de pressão e as réplicas e os simulacros destinados à instrução, ao adestramento ou à coleção de usuário autorizado, nas condições estabelecidas pela Polícia Federal; III - as armas de fogo dissimuladas, com aparência de objetos inofensivos; e IV - as munições: a) classificadas como de uso proibido em acordos ou tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja signatária; ou b) incendiárias ou químicas.
Vale ressaltar que ficou expressamente permitido o uso de armas de pressão por ação de gás comprimido ou por ação de mola, com calibre igual ou inferior a seis milímetros (tais como as “espingardas de chumbinho”), e das que lançam esferas de plástico com tinta, como os lançadores de “paintball”.
Nesse sentido, a prática de tiro desportivo com “airsoft” ou “paintball” é permitida aos maiores de quatorze anos de idade, independentemente de concessão de CR (Certificado de Registro), de acordo com o disposto no novo Decreto e em normas complementares editadas pelo Comando do Exército. Entretanto, as entidades de tiro desportivo que ofereçam a prática na modalidade “airsoft” ou “paintball” deverão requerer o correspondente apostilamento no CR.
Sempre lembrando que o novo Decreto considera “airsoft” o desporto individual ou coletivo, praticado ao ar livre ou em ambiente fechado, de forma coordenada, em que se utilizam marcadores de esferas de pressão leve com finalidade exclusivamente esportiva ou recreativa; e “paintball” o desporto individual ou coletivo, praticado ao ar livre ou em ambiente fechado, de forma coordenada, em que se utilizam marcadores de cápsulas de tinta com finalidade exclusivamente esportiva.
Tratou o novo Decreto, também, da aquisição, do registro e da posse de arma de fogo.
Para tanto, a aquisição de arma de fogo de uso permitido dependerá de autorização prévia da Polícia Federal e o interessado deverá: I - ter, no mínimo, vinte e cinco anos de idade; II - apresentar documentação de identificação pessoal; III - comprovar a efetiva necessidade da posse ou do porte de arma de fogo; IV - comprovar idoneidade e inexistência de inquérito policial ou processo criminal, por meio de certidões de antecedentes criminais das Justiças Federal, Estadual ou Distrital, Militar e Eleitoral; V - apresentar documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa; VI - comprovar capacidade técnica para o manuseio de arma de fogo; VII - comprovar aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestada em laudo conclusivo fornecido por psicólogo do quadro da Polícia Federal ou por esta credenciado; e VIII - apresentar declaração de que a sua residência possui cofre ou lugar seguro, com tranca, para armazenamento das armas de fogo desmuniciadas de que seja proprietário, e de que adotará as medidas necessárias para impedir que menor de dezoito anos de idade ou pessoa civilmente incapaz se apodere de arma de fogo sob sua posse ou de sua propriedade, observado o disposto no art. 13 da Lei nº 10.826/03.
Os caçadores excepcionais, atiradores desportivos e colecionadores também deverão cumprir os requisitos acima mencionados, sendo certo que a comprovação da “efetiva necessidade” não é presumida e deverá demonstrar os fatos e as circunstâncias concretas justificadoras do pedido, como as atividades exercidas e os critérios pessoais, especialmente os que demonstrem indícios de riscos potenciais à vida, à incolumidade ou à integridade física, própria ou de terceiros.
No que se refere à quantidade, o interessado poderá adquirir até duas armas de fogo para defesa pessoal, desde que comprove a “efetiva necessidade” para cada aquisição, e até cinquenta munições por arma, por ano.
Para a comprovação da idoneidade exigida pelo Decreto, o interessado deverá apresentar certidões negativas específicas, referentes aos locais de domicílio dos últimos cinco anos, em que constem os registros de ações penais com sentença condenatória transitada em julgado, de execuções penais e de procedimentos investigatórios e processos criminais em trâmite.
Já o comprovante de capacitação técnica deverá ser expedido por instrutor de armamento credenciado na Polícia Federal e atestará o conhecimento da conceituação e das normas de segurança pertinentes à arma de fogo, o conhecimento básico dos componentes e das partes da arma de fogo e a habilidade de uso da arma de fogo, demonstrada pelo interessado em avaliação realizada por instrutor de armamento e tiro credenciado pela Polícia Federal.
Somente após a apresentação dessa documentação, na hipótese de manifestação favorável, é que será expedida, pela Polícia Federal, em nome do interessado, a autorização para a aquisição da arma de fogo indicada. Após a aquisição, o interessado requererá à Polícia Federal a expedição do CRAF (Certificado de Registro de Arma de Fogo), sem o qual a arma de fogo não poderá ser entregue ao adquirente.
O CRAF tem validade no território nacional e autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou dependências desta, ou, ainda, de seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou responsável legal pelo estabelecimento ou pela empresa, sob pena de incidir no crime previsto no art. 12 do Estatuto do Desarmamento.
Nesse sentido, o Decreto estabelece que se considera: I - interior da residência ou dependências desta - toda a extensão da área particular registrada do imóvel, edificada ou não, em que resida o titular do registro, inclusive quando se tratar de imóvel rural; II - interior do local de trabalho - toda a extensão da área particular registrada do imóvel, edificada ou não, em que esteja instalada a pessoa jurídica, registrada como sua sede ou filial; III - titular do estabelecimento ou da empresa - aquele indicado em seu instrumento de constituição; e IV - responsável legal pelo estabelecimento ou pela empresa - aquele designado em contrato individual de trabalho, com poderes de gerência.
Vale mencionar que o CRAF terá validade de: três anos para colecionador, atirador desportivo ou caçador excepcional; cinco anos para fins de posse de arma de fogo ou de caça de subsistência; cinco anos para empresa de segurança privada; e prazo indeterminado para os integrantes da ativa das instituições a que se refere o inciso IV do § 1º do art. 7º do Decreto, tais como integrantes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, das polícias penais, das polícias civis e dos órgãos oficiais de perícia criminal dos Estados e do Distrito Federal, dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, dentre outros.
Por fim, com relação ao porte de arma de fogo de uso permitido, deverá ser ele vinculado à prévia expedição de CRAF e ao cadastro nas plataformas de gerenciamento de armas do SINARM, sendo expedido pela Polícia Federal, no território nacional, em caráter excepcional, desde que atendidos os requisitos previstos no § 1º do art. 10 do Estatuto do Desarmamento (I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física; II – atender às exigências previstas no art. 4º do Estatuto; e III – apresentar documentação de propriedade de arma de fogo, bem como o seu devido registro no órgão competente).
O porte de arma de fogo é documento obrigatório para a condução da arma e conterá abrangência territorial, eficácia temporal, características da arma, número do cadastro da arma no SINARM, identificação do proprietário da arma e assinatura, cargo e função da autoridade concedente. A ausência de porte poderá sujeitar o condutor da arma de fogo às sanções previstas nos arts. 14 ou 16 do Estatuto do Desarmamento, a depender da espécie de arma. Além disso, o porte de arma de fogo é pessoal, intransferível e revogável a qualquer tempo, sendo válido apenas em relação à arma nele especificada, mediante a apresentação do documento de identificação do portador.
Vale lembrar que o titular de porte de arma de fogo para defesa pessoal não poderá conduzi-la ostensivamente ou com ela adentrar ou permanecer em locais públicos, como igrejas, escolas, estádios desportivos, clubes, agências bancárias ou outros locais onde haja aglomeração de pessoas em decorrência de eventos de qualquer natureza. A inobservância ao disposto neste artigo implicará a cassação do porte de arma de fogo e a apreensão da arma pela autoridade competente, que adotará as medidas legais pertinentes. O mesmo ocorre na hipótese de o titular do porte de arma de fogo portar o armamento em estado de embriaguez ou sob o efeito de drogas ou de medicamentos que provoquem alteração do desempenho intelectual ou motor.
São essas, portanto, em linhas gerais, as disposições que julgamos mais relevantes do novo Decreto nº 11.615/23, sendo certo que outras há de igual importância que serão, oportunamente, abordadas pela doutrina especializada e pela jurisprudência de nossos tribunais.
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