Argumentação inexistente e decisão judicial: “quem no mundo irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração”

26/01/2016

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 26/01/2016

Olá a todos!!!

A estrofe inicial da canção “Eduardo e Mônica” de autoria de Renato Russo parece estar mais atual do que nunca em nosso cenário decisório brasileiro. Não há qualquer novidade em dizer que o vocábulo “sentença” advém de “sentir”, isto é, da apreciação subjetiva do juiz a respeito da causa em debate e para a qual prestará jurisdição. Isso não é novo; ao contrário, por demais vetusto, mas parece estar sofrendo uma releitura bem brasileira...

Na semana que passou, foi amplamente divulgado o teor da sentença proferida pelo juiz Vilson Fontana, do 2º Juizado Especial Cível da Comarca de Florianópolis que, após salientar que o Autor pretendia lhe “dar um migué”, assim desabafou: “Confesso que fiquei triste com este processo, com o autor, com os advogados, com o Judiciário, comigo mesmo. Numa sexta-feira à tarde, 16 horas, sol forte lá fora, pergunto se eu mereço realmente estar ‘julgando’ este processo. Acho que não”[1].

O desabafo não é engraçado; longe disso. É, como dito pelo próprio juiz, triste. E o pior, não é a única vez em que manifestações de linhas similares se verificaram em sentenças. Há algum tempo também ficou bem conhecida a sentença proferida pelo juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas, que, considerando inconstitucional a Lei Maria da Penha, assim explicitou: “Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (...) O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!", salientando, ainda, que a lei em questão, o “monstrengo tinhoso” como qualificou, consistiria em um “conjunto de regras diabólicas”[2].

Algumas outras “coisas feitas pelo coração” podem ser encontradas por aí, seja como desabafos, seja como manifestações religiosas, ou de outras naturezas[3]. É bom lembrar, contudo, que, a despeito de se situarem em sentenças, nada representam em termos argumentativos. Repiso: conquanto inseridas no corpo da fundamentação, essas subjetivas e “judicialiformes” formatações de decisões não podem ser qualificadas sequer como argumentos.

Enrique Haba e Manuel Atienza protagonizaram, em Doxa, edição nº. 33, debate teórico a respeito do que ficou conhecido como “teoria standard” da argumentação em confronto com a “teoria realista”[4]. Haba salientava que a chamada “teoria standard” padecia do que denominou de “síndrome normativista”, representada principalmente pela inserção de sinais argumentativos pseudocientíficos que se divorciam em completo dos elementos que realmente importam no dia-a-dia do contexto decisório, tais como a quantidade de processos, número de juízes, pressão pela célere prestação jurisdicional, pressões midiáticas, ou, no caso do Judiciário brasileiro, metas impensáveis. Ao contrário, a teoria padrão, ou standard apenas se preocupa, na visão do Autor, com manifestações analíticas que aparentemente trariam mais racionalidade ao julgamento do caso, mas que, em realidade, traduzem subjetivismos, ou ideologias implícitas adotadas pelo julgador.

Manuel Atienza, seu contendor imediato, posicionou-se em sentido diametralmente oposto, trazendo à colação argumentos que confrontavam Haba e a sua visão realista. Observou que não se tratava de ignorar o dia-a-dia e as questões afetas à pragmática do cotidiano (se é que se pode chamar assim), mas que modelos argumentativos, ou critérios para a prolação de decisão devem ser estudados e, quiçá, utilizados para que se possa garantir um mínimo de racionalidade no contexto decisório. Outros autores participaram do debate, tais como Óscar Sarlo, Juan Antonio García Amado e Roque Carrió W. , cada qual apresentando a sua própria versão do debate[5].

Ainda que se adotasse a visão realista sugerida por Haba (o máximo que se poderia cogitar no caso em tema), isso não passaria nem perto do tipo de narrativa judicialiforme utilizada. Fundamentar com a pragmática (em seu sentido mais raso) em absoluto significa desabafar, emitir posições religiosas, ou seja lá o que for. Tampouco a corrente emotivista filosófica poderia lastrear a linha argumentativa utilizada. Estamos diante, em realidade, de uma narrativa no ambiente decisório que nada acrescenta em termos argumentativos às Partes, advogados, jurisdicionados e ao direito em geral.

Ao tempo em que o Novo Código de Processo Civil, no artigo 489, apresenta – de maneira insuficiente, mas essa é outra história – diretrizes argumentativas aptas a aperfeiçoar a decisão judicial no tocante à racionalidade, vemos por vezes o caminho reverso na prática, estando a decisão a trazer luzes para algo que nada interessa ao litígio.

Esta não é uma crítica ao posicionamento pessoal dos prolatores das decisões mencionadas, mas apenas uma observação no sentido de que este tipo de manifestação não se coaduna com o contexto decisório, com a argumentação, com a prestação jurisdicional e muito menos com o direito, já que nada traz de evolução ou debate quer à controvérsia, aos operadores do direito, ou à ciência jurídica. Parece, de fato, algo proveniente do coração, mas que, infelizmente, não encontra guarida no ambiente judicante.

A narrativa utilizada não se apresenta defeituosa; antes disso, é inexistente, mas apresenta um aspecto interessante a ser examinado. Um estudo da PUC-Campinas, que contou com 75 magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região, abordou pontos como níveis de qualidade de vida, fontes de estresse e suas estratégias de enfrentamento, demonstrando que a qualidade de vida dos juízes ficou comprometida nas áreas social, afetiva, profissional e de saúde como decorrência da sobrecarga de trabalho e sua interferência na vida familiar[6].

Também em ambiente acadêmico já se examinou o assunto. O Juiz Franklin Vieira dos Santos, Titular da 3ª Vara Cível da comarca de Ariquemes/RO, apresentou dissertação de mestrado em que abordou especificamente esta temática, destacando que “Ao buscar obedecer aos padrões idealizados, os juízes deixam de lado seus próprios desejos, em razão da pressão social ou até mesmo pelo peso do cargo. O resultado disto acaba sendo a depressão, ou outro adoecimento emocional que possa advir deste sofrimento”[7].

Concordo com o problema. Realmente, metas e quantidades de processos, entre outros fatores, dificultam em muito a vida do Magistrado, mas, de qualquer forma, esta circunstância faz parte da carreira e, por isso, não pode qualificada como escusa para utilizar a sentença como desabafo, ainda que proveniente do coração, ambiente em que, se não impera a razão, que ao menos se imponha a alteridade.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Relato da sentença pode ser acessado em http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI232761,11049-Juiz+lamenta+migue+de+autor+e+questiona+se+merece+estar+julgando. Acesso em 24 janeiro de 2016.

[2]http://gutecabral.blogspot.com.br/2010/04/juiz-chama-lei-maria-da-penha-de.html. Acesso em 24 janeiro de 2016.

[3] Apenas para relembrar: http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/20070803-caso_richarlysson.pdf. Acesso em 24 janeiro de 2016.

[4] Não confundir essa última com a escola realista do direito. Ambas têm elementos em comum, mas não são exatamente a mesma coisa. Este, contudo, é um assunto para outra oportunidade.

[5] Toda o debate encontra-se compilado em: HABA, Enrique P. Un debate sobre las teorías de la argumentación jurídica. Lima-Bogotá: Palestra, Temis, Pensamiento jurídico contemporâneo, 2014.

[6] Íntegra da pesquisa pode ser visualizada em http://unisite.com.br/saude/juizestrabalho.shtml. Acesso em 24 janeiro de 2016.

[7] A íntegra do trabalho, que, aliás, é muito interessante, pode ser acessada em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/4224/DMPPJ%20-%20FRANKLIN%20VIEIRA%20DOS%20SANTOS.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 24 janeiro de 2016.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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