ABORTO LEGAL E A NOVA PORTARIA 2.282/20-GM/MS

03/09/2020

Foi publicada no Diário Oficial da União , em 28 de agosto de 2020, a Portaria nº 2.282, do Ministério da Saúde/Gabinete do Ministro, dispondo sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Essa portaria revogou a anterior, de nº 1.508/GM, de 1º de setembro de 2005, que tratava do mesmo assunto.

Como é cediço, o aborto pode ser conceituado como a interrupção da gravidez com a consequente destruição do produto da concepção.

Existem várias espécies de aborto:

  1. a) aborto natural, também chamado de aborto espontâneo, onde há a interrupção espontânea da gravidez, como no caso, por exemplo, de problemas de saúde da gestante;
  2. b) aborto acidental, que ocorre geralmente em consequência de traumatismo, como nos casos de queda e atropelamento da gestante;
  3. c) aborto criminoso, também chamado de aborto provocado, punido pela lei penal;
  4. d) aborto legal, que é aquele tolerado pela lei penal, que se divide em: aborto terapêutico, também chamado de aborto necessário, empregado para salvar a vida da gestante ou para afastá-la de mal sério e iminente, em decorrência de gravidez anormal, e aborto sentimental, também chamado de aborto ético, humanitário ou piedoso, que ocorre no caso de gravidez resultante de estupro;
  5. e) aborto eugenésico, também chamado de aborto eugênico, que visa impedir a continuação da gravidez quando há possibilidade de que a criança nasça com anomalias graves.
  6. f) aborto social, também chamado de aborto econômico, realizado para impedir que se agrave a situação de penúria ou miséria da gestante e de sua família;
  7. g) aborto “honoris causa”, praticado em decorrência de gravidez “extra matrimonium”.

O aborto eugenésico, o aborto social e o aborto “honoris causa” não são admitidos pela nossa lei penal e, na sua ocorrência, são tratados como aborto criminoso.

O foco da nossa análise, neste artigo, reside justamente nos procedimentos que devem ser adotados para a prática do denominado “aborto legal”, previsto no art. 128 do Código Penal, especificamente no caso de gravidez resultante de estupro (violência sexual).

Inicialmente, urge salientar que não se pode dizer, a rigor, que o Código Penal “permite” o aborto nessas hipóteses, que consistiriam, segundo alguns doutrinadores, verdadeiras causas excludentes da antijuridicidade.

Cremos que a melhor solução seja a de considerar essas hipóteses previstas em lei como causas de exclusão de culpabilidade, em que persistiria o crime, ausente apenas a punibilidade.

O primeiro ponto importante que deve ser salientado é o de que essas modalidades de aborto previstas no art. 128 do Código Penal, por impositivo legal, para gozarem de tolerância, devem ser praticadas por médico. Até se tem admitido que enfermeira(o) ou outro profissional da saúde auxilie o médico nesses procedimentos legais, prevalecendo o entendimento de que a causa de exclusão de culpabilidade a eles também se estenderia.

Os questionamentos que se fazem, entretanto, são os seguintes: para a prática do aborto, no caso de gravidez resultante de estupro, é necessária autorização judicial? É necessário boletim de ocorrência policial? É necessário que se apure a autoria do estupro? É necessário aguardar o fim das investigações do crime de estupro ou a condenação judicial do estuprador?

A resposta a todas essas indagações é não!

Não há necessidade de autorização judicial para a prática de aborto no caso de gravidez resultante de estupro, não havendo qualquer diploma legal em que essa exigência esteja estampada, sendo de todo indevida e ilegal a exigência, por parte do médico ou do estabelecimento hospitalar, de alvará judicial ou qualquer tipo de autorização por parte de que autoridade seja.

Também não é necessário boletim de ocorrência, não se exigindo nem tampouco que o estupro tenha sido reportado à autoridade policial, ou ainda que haja investigação ou persecução penal contra o suposto estuprador.

A dúvida que se estabelece, então, é a seguinte: e se a gestante estiver mentindo? E se a mulher não foi estuprada e pretende se aproveitar de uma falsa comunicação de crime sexual para realizar o procedimento de aborto legalmente? Como ficaria a responsabilidade do médico nessa situação?

Em razão de todos esses questionamentos, o Ministério da Saúde já estabelecia, na revogada Portaria nº 1.508/GM, de 1º de setembro de 2005, o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez, trazendo regramentos que pudessem assegurar a transparência e a lisura dos procedimentos médicos, preservando a dignidade e a integridade física e mental da gestante, além de conferir retaguarda ao profissional da saúde.

A recente Portaria nº 2.282-GM, de 27 de agosto de 2020, do Ministério da Saúde, aperfeiçoou o procedimento, acrescentando algumas diretrizes que visam permitir a investigação do crime de estupro, do qual foi vítima a gestante, além da produção e preservação de vestígios que permitam a sua eficaz investigação e a responsabilização do criminoso nos termos da lei.

Vale lembrar que o crime de estupro, em qualquer de suas modalidades, é de ação penal pública incondicionada, de acordo com o disposto no art. 225 do Código Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 13.718/18.

Nesse aspecto, o art. 1º da nova portaria estabelece que é obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro. Referidos profissionais, inclusive, deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime, nos termos da Lei Federal nº 12.654/12.

Ao contrário de algumas opiniões, a nosso ver equivocadas, cremos que se trata de providência extremamente pertinente e necessária, que visa auxiliar as autoridades na elucidação do crime de estupro e na eventual punição do increpado, sem qualquer detrimento à gestante, já que o crime que se visa apurar é de ação penal pública incondicionada, havendo evidente interesse público na identificação e persecução penal do criminoso.

A nova portaria ainda estabelece que o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei é composto de quatro fases, as quais deverão ser registradas no formato de termos, arquivados anexos ao prontuário médico, garantida a confidencialidade.

A primeira fase será constituída pelo relato circunstanciado do evento, realizado pela própria gestante, perante dois profissionais de saúde do serviço. O Termo de Relato Circunstanciado deverá ser assinado pela gestante ou, quando incapaz, também por seu representante legal, bem como por dois profissionais de saúde do serviço, e deverá conter o local, dia e hora aproximada do fato, o tipo e forma de violência, a descrição dos agentes da conduta, se possível, e identificação de testemunhas, se houver.

A segunda fase se dará com a intervenção do médico responsável que emitirá parecer técnico após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares que porventura houver. Nesta fase, a gestante receberá atenção e avaliação especializada por parte da equipe de saúde multiprofissional, que anotará suas avaliações em documentos específicos. Três integrantes, no mínimo, da equipe de saúde multiprofissional subscreverão o Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, não podendo haver desconformidade com a conclusão do parecer técnico. A equipe de saúde multiprofissional deve ser composta, no mínimo, por obstetra, anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo. Nesta fase, a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.

A terceira fase se verifica com a assinatura da gestante no Termo de Responsabilidade ou, se for incapaz, também de seu representante legal, e esse termo conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima do crime de estupro. Esse aspecto é de extrema importância, solucionando o questionamento que fizemos acima, acerca da preocupação com eventual inverdade narrada pela gestante com relação à ocorrência do crime de estupro.

A quarta fase se encerra com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual os esclarecimentos à mulher deverão ser realizados em linguagem acessível, especialmente sobre os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde, os procedimentos que serão adotados quando da realização da intervenção médica, a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis, e a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de compartilhamento em caso de requisição judicial.

Esse Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá ser assinado ou identificado por impressão datiloscópica, pela gestante ou, se for incapaz, também por seu representante legal e deverá conter declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente de interromper a gravidez.

Vale ressaltar que a portaria exige que todos os documentos que integram o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei deverão ser assinados pela gestante, ou, se for incapaz, também por seu representante legal, e elaborados em duas vias, sendo uma fornecida à gestante.

Portanto, a nosso ver, a nova Portaria 2.282 modernizou e atualizou o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, preservando a dignidade e a privacidade da gestante, além da confidencialidade dos dados colhidos, e conferindo às autoridades a possibilidade de eficaz apuração do crime de estupro e consequente persecução criminal do acusado pelo Ministério Público.

 

Imagem Ilustrativa do Post: justice // Foto de: openDemocracy // Sem alterações

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