Aborto: descriminalizar é salvar vidas

11/08/2018

A audiência pública convocada pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), para elaborar relatório do julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que visa declarar inconstitucionais os art. 124 e 126 do Código Penal (CP) - “aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento” e “provocar aborto com o consentimento da gestante” - , terminou na noite  do último dia 06 (segunda-feira). A ADPF 442 que foi apresentada pelo PSOL busca a descriminalização da interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana da gravidez.

“A tese desta Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é que as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, porque violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas (Constituição Federal, art. 1o , incisos I e II; art. 3o , inciso IV; art. 5o, caput e incisos I, III; art. 6o , caput; art. 196; art. 226, § 7º).” [1]

Como é sabido, a interrupção voluntária da gravidez (aborto) é crime de acordo com o Código Penal brasileiro. Contudo, segundo a lei penal (art. 128 do CP) não se pune o aborto praticado por médico: I- se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário) e, II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (aborto sentimental).

Em abril de 2012, ao julgar a ADPF nº 54 - proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde - o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional a interpretação dada aos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal para considerar como crime a antecipação do parto em casos de fetos anencéfalos. Contudo, entendeu-se, entre outros fundamentos, que no caso dos anencéfalos não há bem jurídico a ser tutelado nessas hipóteses, já que, nesses casos, o feto não tem potencialidade de vida. Devendo em tais situações ser preservado o direito a saúde física e psicológica da mulher, principalmente diante da ausência de outro direito fundamental a ser ponderado, posto que o feto anencéfalo terá no máximo sobrevida vegetativa.[2]

Sem adentrar na discussão da “competência” ou não do STF para tratar do assunto – ideal que a matéria fosse tratada e discutida no âmbito próprio, no caso, o Poder Legislativo[3] – é certo que não é mais possível esperar e aceitar que mulheres morram ou sejam criminalizadas em razão da pratica do aborto.

Não se pode discutir o aborto desprezando os dados trazidos pela mais importante realizada sobre o tema: a Pesquisa Nacional do Aborto (publicada em 2016).[4] Segundo dados da PNA “o aborto é comum entre as mulheres brasileiras”.

“Das 2.002 mulheres alfabetizadas entre 18 e 39 anos entrevistadas pela PNA 2016, 13% (251) já fez ao menos um aborto. Considerando-se intervalos de confiança, trata-se de uma proporção semelhante à da PNA 2010 (15%). A pequena divergência não é relevante, pode derivar de fatores aleatórios e está dentro da margem de erro. Como a pergunta é sobre realizar aborto ao longo da vida, as taxas tendem a ser maiores entre mulheres mais velhas. Na faixa etária de 35 a 39 anos, aproximadamente 18% das mulheres já abortou. Entre as de 38 e 39 anos a taxa sobe a quase 19%. A predição por regressão linear das taxas de aborto pelas idades é de que a taxa a 40 anos é de cerca de 19%. Por aproximação é possível dizer que, em 2016, aos 40 anos de idade, quase uma em cada cinco mulheres já fez aborto (1 em cada 5,4)”.

Débora Diniz, antropóloga da Universidade de Brasília, ativista pela descriminalização do aborto  e uma das autoras da pesquisa, após destacar os dados obtidos pela Pesquisa Nacional do Aborto (publicada em 2016), salientou que,  quando se fala de aborto, o que mais interessa não é a resposta à pergunta “você é a favor ou contra o aborto?”, mas a prática real das mulheres. [5]

A médica Maria de Fátima Marinho, do Ministério da Saúde, reafirmou a origem socioeconômica das mulheres que morrem em decorrência de aborto: “são negras, jovens, solteiras”. Qualquer semelhança com as encarceradas não é mera coincidência. Já o médico José Gomes Temporão avaliou que, negar o aborto a uma mulher que dele necessita não é usar critérios médicos, mas, sim,” exercer um juízo estritamente moral”.

De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) 

“A frequência de abortos é alta e, a julgar pelos dados de diferentes grupos etários de mulheres, permanece assim há muitos anos. Entre a PNA 2010 e a PNA 2016, por exemplo, a proporção de mulheres que realizaram ao menos um aborto não se alterou de forma relevante. Ou seja, o problema de saúde pública chama a atenção não só por sua magnitude, mas também por sua persistência. As políticas brasileiras, inclusive as de saúde, tratam o aborto sob uma perspectiva religiosa e moral e respondem à questão com a criminalização e a repressão policial. A julgar pela persistência da alta magnitude, e pelo fato do aborto ser comum em mulheres de todos os grupos sociais, a resposta fundamentada na criminalização e repressão tem se mostrado não apenas inefetiva, mas nociva. Não reduz nem cuida: por um lado, não é capaz de diminuir o número de abortos e, por outro, impede que mulheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde necessários para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reprodutiva a fim de evitar um segundo evento desse tipo”.

Note-se que de acordo com a PNA – como sói acontece em matéria penal – a criminalização e a repressão se mostram totalmente inadequadas, impróprias e desnecessárias. Não é demais martelar que o direito penal e a pena criminal – em razão do princípio da intervenção mínima e de seu caráter fragmentário e subsidiário – somente deve ser utilizada como um “remédio sancionador extremo”, como ultima ratio, e quando não há outras formas menos danosas para proteção do bem jurídico. 

A criminalização do aborto provoca impactos negativos na vida das mulheres. São elas expostas a riscos clínicos – inclusive de morte[6] -, à marginalização e a estigmatização que, conforme destacado em respeitáveis pesquisas, tem “empurrado a mulher para fora dos serviços de saúde” (Fiocruz), onde elas poderiam e deveriam receber atendimento adequado.

Ao invés da criminalização e de todos os malefícios que dela decorrem, necessita-se, como bem observou Ezilda Melo, “tirar da abrangência do Estado a vigilância e a punição sobre os corpos femininos, assim, que o debate sobre o aborto saia do campo da legalidade e entre no campo social. Precisam-se de políticas públicas, de programas de educação sexual e da defesa da autonomia reprodutiva da mulher, com base em princípios da bioética (...)”.[7]

Por fim, é necessário que a sociedade compreenda que ser favorável a descriminalização do aborto não implica, necessariamente, em ser favorável a pratica do aborto. Descriminalizar significa, tão somente, retirar da esfera penal uma questão que deve ser tratada no âmbito da saúde. Trata-se de acolher a mulher e preservar sua vida ao invés de mandá-la para o cárcere e estigmatizá-la. A manutenção da criminalização reforça, ainda mais, o caráter seletivo e desumano do sistema penal.

 

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/aborto-esse-desconhecido> Acesso em: 09/8/2018.

[2] PRADO, Luiz Régis. Comentários ao Código Penal: jurisprudência, conexões lógicas com os vários ramos do direito. !0ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[3] Para Bárbara Bastos, “Apesar da honrosa e necessária iniciativa apresentada, incumbe tipicamente à função legislativa, em virtude de determinação constitucional, legislar sobre a matéria. Vale destacar, nessa toada, o Projeto de Lei nº 882/2015, de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys (PSOL), atualmente em trâmite perante a Câmara dos Deputados, que "Estabelece as políticas públicas no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências" (Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/aborto-esse-desconhecido> Acesso em: 09/8/2018).

[4] Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232017000200653&lng=en&nrm=iso&tlng=pt Acesso em: 09/8/2018.

[5] Disponível em:< http://justificando.cartacapital.com.br/2018/08/06/aborto-veja-as-falas-no-stf-de-debora-diniz-e-outros-especialistas-pela-descriminalizacao/ Acesso em: 07/8/2018

[6] A Defensora do RJ pediu que o STF julgue procedente o pedido da ADPF. Iniciando com o relato de uma jovem que tentou fazer um aborto caseiro e morreu por causa de uma infecção generalizada. A jovem tentou fazer o aborto com um talo de mamona, que se perdeu no útero.

[7] MELO, Ezilda. “Aborto não é crime e o julgamento, pelo tribunal do júri, da mulher que o cometeu é uma ficção”, in Estudos Feministas por um direito menos machista. Orgs. Aline Gostinski e Fernanda Martins. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Minnesotans Unite Against the War on Women Rally // Foto de: Fibonacci Blue // Sem alterações

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