Aborto: esse desconhecido

14/06/2018

Bárbara Bastos[1] 

Neste ano de 2018, cidadãs e cidadãos brasileiros elegerão candidatos e candidatas que ocuparão cargos legislativos (no Congresso Nacional e nas Assembleias dos respectivos estados) e executivos (Presidência do país e Governo dos respectivos estados). 

Todos apresentarão, em alguma medida, suas pautas e projetos políticos de poder, enviesados pelo cunho notadamente ideológico que acompanha, invariavelmente, qualquer candidatura a um cargo eletivo.

Embora as incertezas e inseguranças políticas e jurídicas que conferem um contorno peculiar às eleições deste ano, cumpre destacar que temas do campo conservador, especialmente aqueles que apelam ao punitivismo, moralismo, sexismo e fundamentalismo religioso, terão, sobremaneira, destaque nos debates e campanhas veiculadas nas redes sociais e em outros meios de comunicação. 

Na era da propagação das fake news, da polarização acéfala e do populismo penal, imperam a pirotecnia argumentativa e os malabarismos retóricos, que, associados a motivos escusos, má-fé, hipocrisia ou ingenuidade, esgarçam a insuperada intolerância à alteridade. 

Portanto, considerando o cenário que inevitavelmente se apresentará, ante sua pertinência social, fática e histórica, a singela digressão aqui apresentada intenta desanuviar tema recorrentemente suscitado por indivíduos de diferentes orientações: o aborto.

Frequentemente, o aborto é considerado um dos grandes males da sociedade, eis que representa, segundo o discurso de alguns, a interrupção da vida intrauterina. Apoiadas pela grande mídia, algumas vozes dissonantes em relação à pujante literatura sobre o tema, escamoteiam ou ignoram o fato de que, dentre as inúmeras discussões que realmente orbitam em torno da questão, cujo pano de fundo é simploriamente denominado aborto, destacam-se a necessidade de descriminalização ou legalização[2] de uma prática voluntária. 

Ressalvadas as exceções legais e, apesar de algumas recentes e limitadas decisões do Supremo Tribunal Federal, o aborto ainda é considerado crime no Brasil, na contramão da tendência mundial de legalização da conduta voluntária. Recentemente, inclusive, a Irlanda - um dos países mais católicos da Europa - aprovou, mediante voto popular, a legalização do aborto[3].

Atualmente, tramita no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Anis - Instituto de Bioética na data de 08 de março de 2018. Conforme fundamentado na petição incial[4]

“A tese desta Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é que as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, porque violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas (Constituição Federal, art. 1o , incisos I e II; art. 3o , inciso IV; art. 5o, caput e incisos I, III; art. 6o , caput; art. 196; art. 226, § 7º).” 

Apesar da honrosa e necessária iniciativa apresentada, incumbe tipicamente à função legislativa, em virtude de determinação constitucional, legislar sobre a matéria. Vale destacar, nessa toada, o Projeto de Lei nº 882/2015, de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys (PSOL), atualmente em trâmite perante a Câmara dos Deputados, que "Estabelece as políticas públicas no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências"[5]

Entretanto, insiste-se em perguntar a candidatas e candidatos seus posicionamentos a respeito do aborto, relegando a segundo plano o fato de que

“A cada minuto, uma mulher brasileira toma a decisão reprodutiva de não seguir com uma gestação e, em função da criminalização, o procedimento de interrupção potencialmente ocorre em condições insalubres e sob ameaça de persecução criminal, agravadas ainda pela desigualdade racial, econômica e regional. Se é evidente que a persecução criminal por aborto é altamente seletiva e arbitrária, ela é real e frequentemente decorre da violação de sigilo médico por profissionais de saúde ao atender mulheres que estão enfrentando as consequências de morbimortalidade impostas pela criminalização. Mulheres jovens, negras e indígenas, pobres e pouco escolarizadas são algemadas em macas, saem do hospital direto para delegacias, possuem sua intimidade de saúde devassada por investigações policiais e midiáticas e enfrentam a possibilidade de serem levadas a júri popular, conforme se observa em decisões judiciais de tribunais de todo o país.”[6]

Ou seja, merece ser abordada e desvelada uma questão que resvala, inexoravelmente, no direito penal, e se apresenta como a causa principal de mais uma violência de gênero imposta, dentre as existentes. 

Assim, a princípio, não importa a opinião da candidata ou candidato a respeito do aborto em si, mas, ganham maiores contornos e relevos os argumentos lançados que se alinham ou não à premência de descriminalização ou legalização do aborto voluntário. Mais relevante do que saber se aquela ou aquele postulante ao cargo eletivo é a favor do aborto, é saber se elas e eles são ou não a favor da criminalização da conduta da pessoa que decide interromper voluntariamente, de maneira consentida, uma gravidez. 

Conforme afirmado por Márcia Tiburi[7],

“A discussão sobre a abstrata questão da vida do embrião presente no corpo de uma mulher que não deseja desenvolver um feto não passa de elemento acobertador do controle biopolítico sobre corpos de mulheres. Do mesmo modo, não podemos mais nos ocupar da discussão que corre no senso comum e que divide a população entre ser a favor ou contra o aborto quando na verdade se trata no Brasil de hoje de ser a favor da legalização do aborto ou contra a legalização do aborto. A questão da legalização é jurídica e como tal, problema de poder, de saber quem comanda, quem decide, quem detém a verdade a seu próprio favor.”

Portanto, é necessário manter a honestidade intelectual quando se discute tema tão caro para uma sociedade que pretende se intitular democrática. Caso contrário, seguiremos assistindo ao aprofundamento de idiossincracias políticas (ser liberal na economia e conservador nos costumes, por exemplo) que conferem azo apenas à desinformação e à perpetuação de um sistema que produz e reproduz a violência dissimulada, exercida em detrimento de uma parcela da população diuturnamente vulnerabilizada e invisibilizada.

Notas e Referências

[1] Advogada criminalista. Pós graduanda pelo Consejo Latinoamericano de ciencias sociales. (CLACSO)

[2] Em linhas gerais, descriminalizar é tornar atípica determinada conduta prevista na lei penal, enquanto legalizar seria regulamentar, por intermédio da lei, a matéria penalmente atípica.

[3] Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/irlanda-aprova-legalizacao-do-aborto-com-664-de-votacao-popular-22720890> Acesso em: 06 de junho de 2018.

[4] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/psol-stf-descriminalize-aborto-meses.pdf> Acesso em: 06 de junho de 2018.

[5]Disponível em:<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050889> Acesso em: 06 de junho de 2018.

[6] Ibidem.

[7] Disponível em: <http://www.marciatiburi.com.br/textos/oabortodosoutros.htm> Acesso em: 06 de junho de 2018.

 

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