A “ubertização” do táxi

05/04/2016

Por Alberto Sampaio Júnior - 05/04/2016

Enquanto isso, no engarrafamento...

Ainda era manhã do dia primeiro de abril – sem mentiras, aliás –, quando cariocas e demais fluminenses presenciaram mais uma manifestação promovida pela classe de taxistas, contrária ao aplicativo UBER. De um lado, taxistas se veem injustiçados, uma vez que a rigidez das fiscalizações e regulamentações recaem apenas sobre eles. Ao lado oposto, motoristas vinculados ao aplicativo reivindicam o direito ao trabalho. Em meio ao conflito e congestionamentos, quem padece é a própria população.

A popularidade dos aplicativos (Wappa, Easy Táxi, 99Táxi etc.) fomentaram mudanças significativas no serviço de táxi, fechando as portas de muitas cooperativas/associações e obrigando as remanescentes a se adequarem as novas exigências do mercado — rapidez e qualidade. As atuais divergências surgem porque, enquanto os demais aplicativos apenas viabilizam a comunicação entre consumidores e taxistas, o UBER, por meio de frota previamente cadastrada, oferece o próprio serviço em si, ou seja, oferece uma nova opção de transporte [público] individual remunerado de passageiros — eis o ponto fulcral da questão.

Em meio às conversas de botequim e aos desabafos em redes sociais, as opiniões acerca da [in]compatibilidade do UBER ao sistema normativo se dividem. Sob a ótica jurídica, há argumentos para todo tipo de “paladar epistemológico” e níveis de paixões. Em síntese, os que defendem a legalidade do UBER entendem que o serviço oferecido pelo aplicativo está em consonância aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, alicerçados aos contornos da Lei 12.587/12, que versa a respeito de diretrizes da política nacional de mobilidade urbana. Por sua vez, a classe de taxistas compreende que o transporte remunerado individual de passageiros é atividade privativa da categoria, tendo como principal fundamento a Lei 12.468/11 (Lei do Taxista).

Afinal, o que diz a lei? 

Inicialmente, é preciso se distanciar daquilo que chamamos de "direito fofinho", ou seja, aquele "direito" que se revela nobre, bom e agradável aos contornos da subjetividade, independente do que determina a lei. Não podemos nos levar pelas paixões. É inegável que o serviço prestado pelo aplicativo é bom. Por outro lado, sabemos que o serviço de táxi é deficiente em muitos aspectos. Contudo, não cabe a moral corrigir o direito. Pior: não pode a lei ceder lugar de eficácia em face de quem melhor maneja técnicas de marketing. É preciso levar o direito a sério.

A primeira regulamentação carioca a respeito do serviço de aluguel de veículo a taxímetro surgiu por meio do Decreto “E” — n.º 3.878/70, com as respectivas alterações introduzidas pelo Decreto “E” — n.º 7.716/75, ambos editados sob a égide do extinto Estado da Guanabara.

Passado mais de 40 (quarenta) anos desde a edição do primeiro decreto [E – 3.878/70], a Lei Federal n.º 12.468/11 reconheceu a profissão de taxista e esclarece: 

“Art. 2.º - É atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros”.

Ou seja, onde está escrito “é atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros (...), leia-se: é atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros (...).

Com efeito, aqueles que defendem a legalidade do UBER fundamentam seus posicionamentos sob os termos da Lei nº 12.587/11, que versa a respeito da Política Nacional de Mobilidade Urbana, mais especificamente no art. 4.º, inciso X, que define: 

Transporte motorizado privado: meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares”. (Grifamos)

Com efeito, acredita-se que a coadunação entre o referido inciso e as demais disposições da Lei de Mobilidade Urbana demonstra a conformidade do UBER ao ordenamento jurídico. Respeitosamente, acreditamos que essa interpretação é quase um “contorcionismo hermenêutico”, uma vez que o inciso “X” apenas descreve o transporte privado, a exemplo do automóvel de qualquer cidadão, sem a especificidade de transporte remunerado. Agora, vejamos o inciso VIII:

Transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas”. (Grifamos)

É nítida a distinção que a Lei de Mobilidade Urbana fez entre o transporte privado individual (não remunerado/ “automóveis de passeio”) e o serviço de transporte remunerado público individual (táxi).

Materialmente, o UBER não é outra coisa senão uma espécie de serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas. O embargo surge quando nos deparamos com a referida “Lei do Taxista”, que é clara ao estabelecer que é atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros.

Mesmo que nos apropriássemos do vocábulo “taxista” e o concebêssemos apenas como um adjetivo atribuível a qualquer motorista que explora o serviço de transporte público individual remunerado, independentemente da natureza da pessoa jurídica (público ou privado) que gerisse a atividade profissional, esbarraríamos em outras definições legais, a exemplo do Regulamento e o Código Disciplinar do Serviço de Transporte Individual de Passageiros em Veículos de Aluguel a Taxímetro do Município do Rio de Janeiro[1], sancionado em 2013, que define: 

“Art. 3º. Para os fins deste Regulamento, consideram-se: I – Serviço de Táxi: o serviço de utilidade pública de transporte individual de passageiros com veículo de aluguel a taxímetro, organizado, disciplinado e fiscalizado pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobrada. ” (Grifamos) 

O efeito UBER no “mercado do taxímetro” carioca.

Ao contrário do que se imagina, o principal conflito de interesses não está entre motoristas do UBER e taxistas autônomos, e sim na ameaça que o aplicativo oferece aos interesses da Administração Pública e a determinados grupos empresariais. Isso porque, além do potencial eleitorado, o ‘mundo’ do táxi é um negócio muito lucrativo.

Na Capital Carioca, o serviço de táxi é formalizado por meio de uma figura jurídica híbrida: “autorização-permissão” — ou vice-versa, se preferir. A propósito, como estamos na “terra do carnaval”, a opção pelo referido “mix jurídico” é proposital. Isso porque, quando vozes questionam a obrigatoriedade de licitação para a exploração do serviço, a [in]definição jurídica do serviço de táxi serve justamente para mantê-lo como uma espécie de patrimônio privado, onde quem não tem padrinho padece pagão. Ademais, a promoção de formas igualitárias de obtenção ao direito de exploração do serviço de táxi prejudicaria os grandes “senhores feudais do táxi” — o ranço da colônia!

Em meio a tamanha esculhambação administrativa, as ditas “autonomias de táxi” se transformaram em um grande balcão de negócios. Por meio de “contratos de gaveta”, o “permissionário-vendedor” cede, “gratuitamente”, ao “permissionário-comprador” o direito de exploração do serviço táxi. É bem verdade que as negociatas são de pleno conhecimento da Administração, que se omite em combater tamanha ilegalidade. Realmente não é novidade para ninguém: em qualquer jornal de beira de esquina é possível encontrar classificados com ofertas de “autonomias”, com preços superiores a R$ 100.000,00. Aliás, há empresas que possuem frotas com centenas de carros.

Nesse contexto, surge um outro mercado: as “diárias”. Assim funciona o esquema: um indivíduo, detentor do direito de exploração do serviço táxi (permissionário), permite que um outro indivíduo também explore o serviço (auxiliar), condicionando-o ao pagamento de diárias, geralmente com valores que exigem horas e mais horas de trabalho do profissional. A fim de extinguir a prática das diárias, a Câmara de Vereadores do Rio, em 2000, editou a Lei n.º 3.123, denominada “lei da diária nunca mais”. Na prática, a referida lei extinguiu a figura do “motorista auxiliar”, indivíduo pagador de “diária”, transformando-o em “motorista-permissionário”. Contudo, infelizmente, com a edição da lei municipal n.º 4.000/2005, ressurge a figura do motorista auxiliar, fomentando o retorno ao antigo modelo escravagista das diárias — sim, retrocedemos.

Atualmente, no Rio, o serviço de táxi está disciplinado pela Lei n.º 5.492/12, que estabelece normas e condições à permissão de veículos de aluguel a taxímetro, entre outras providências. A propósito, alguns dispositivos da referida lei foram declarados inconstitucionais pela 2.ª Vara de Fazenda Pública do Estado do Rio de Janeiro.[2]

A “ubertização” do serviço de táxi.

O surgimento do UBER como uma nova opção de transporte público individual remunerado tende a redesenhar o serviço de táxi carioca, extinguindo o atual modelo escravagista de diárias e as negociatas de “autonomias”. Muitos taxistas-auxiliares, a fim de conquistarem a tão sonhada alforria, desbandaram-se para o aplicativo ora vilão da própria categoria. Justo, aliás.

Há anos o poder público municipal tem se omitido a respeito da situação vivida por milhares de taxistas-auxiliares. Não obstante, muitos motoristas-permissionários, motivados pela falsa impressão de serem os “donos da bola”, deixaram de se importar com a qualidade da prestação do serviço. Não raros são as denúncias de desrespeito e abuso com usuários. Em contrapartida, os profissionais taxistas se tornam reféns nas mãos da truculenta e autoritária fiscalização da SMTR-RJ. O excesso de burocratização também é foco de inúmeros esquemas de corrupção: constroem-se os muros, mas há sempre alguém para oferecer as escadas. Viva o jeitinho brasileiro.

A deficiente prestação do serviço de táxi e as poucas opções de transporte público de qualidade se tornaram um campo fértil ao sucesso do aplicativo UBER e demais aplicativos que estão por vir, e não há caminho de volta.

Portanto, em prestígio ao art. 170 da Constituição de 88, acreditamos que a livre concorrência é o melhor caminho para o aperfeiçoamento do serviço de táxi. Mas é preciso que se faça dentro da legalidade, sem “puxadinhos” interpretativos.

Pelo fim das “diárias”.

Pela melhoria do serviço.

Pelo respeito ao Direito.


Notas e Referências:

[1] Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4526520/4114541/Regulamento_Taxi_e_Codigo_Disciplinar.pdf

[2] Processo n.º 0304289-75.2012.8.19.0001


Alberto Sampaio Júnior. . Alberto Sampaio Júnior é advogado. . . .


Imagem Ilustrativa do Post: Uber e táxis em São Paulo // Foto de: Núcleo Editorial // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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