A SAÚDE MENTAL DOS PROFISSIONAIS DA SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL: DESAFIOS E SOLUÇÕES

15/11/2023

A atuação na área de segurança pública é uma tarefa desafiadora e complexa, repleta de situações de risco e estresse que podem afetar profundamente a saúde mental dos profissionais envolvidos. Policiais civis, policiais militares, guardas civis e outros profissionais da segurança pública enfrentam diariamente uma série de pressões psicológicas e emocionais, levando a um aumento significativo no número de distúrbios psíquicos nessa população.

No início do ano, foi promulgada a Lei nº 14.531/23, que representa um avanço significativo na proteção da saúde mental e dos direitos humanos dos profissionais de segurança pública e defesa social no Brasil. Essa lei alterou a Lei nº 13.675/18, que criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), e a Lei nº 13.819/19, que instituiu a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, para dispor sobre a implementação de ações de assistência social, a promoção da saúde mental e a prevenção do suicídio entre profissionais de segurança pública e defesa social e para instituir as diretrizes nacionais de promoção e defesa dos direitos humanos dos profissionais de segurança pública e defesa social, além de outras providências.

Dentre os principais desafios enfrentados pelos profissionais da segurança pública, capazes de afetar sensivelmente a sua saúde mental, podem ser citados os seguintes:

- Exposição à violência: a rotina de trabalho dos profissionais da segurança pública envolve lidar diretamente com situações violentas, crimes muitas vezes hediondos e acidentes de graves consequências. A exposição frequente a essas situações pode causar traumas psicológicos e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

- Pressão emocional: os profissionais da segurança pública estão sujeitos a uma carga emocional intensa, devido à necessidade de lidar com conflitos, agressões, tragédias e mortes. A constante exposição a esses eventos pode levar ao desenvolvimento de ansiedade, depressão e transtornos relacionados ao estresse.

- Sobrecarga de trabalho: a demanda por serviços de segurança pública muitas vezes excede a capacidade de atendimento. A escassez de recursos humanos e a sobrecarga de trabalho podem gerar estresse crônico, exaustão emocional e distúrbios do sono.

- Estigma e falta de apoio: profissionais da segurança pública enfrentam o estigma social relacionado à violência institucional e às ações individuais de alguns membros da corporação. Além disso, a falta de apoio emocional e de estrutura adequada para lidar com as demandas psicológicas pode dificultar a busca de ajuda e a recuperação.

Isso tudo sem mencionar a ausência de uma política remuneratória justa, ensejando baixos salários, desestímulo ou embaraço à ascensão funcional, contribuindo para o agravamento do quadro psíquico muitas vezes já debilitado.

Alguns dos principais distúrbios mentais apresentados por policiais civis, por policiais militares, por guardas civis e profissionais da segurança pública em geral incluem:

- Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT): o TEPT é um distúrbio psiquiátrico que ocorre após a exposição a um evento traumático. Policiais podem desenvolver TEPT em resposta a experiências como tiroteios, acidentes graves, confrontos violentos ou testemunho de cenas de crime perturbadoras. Os sintomas incluem “flashbacks”, pesadelos, hipervigilância, evitamento de estímulos relacionados ao trauma e alterações no humor e no sono.

- Depressão: a depressão é um distúrbio de humor caracterizado por uma sensação persistente de tristeza, perda de interesse e prazer nas atividades diárias. A exposição constante a situações estressantes, traumáticas e às dificuldades enfrentadas no trabalho podem aumentar o risco de depressão nos profissionais da segurança pública. Os sintomas podem incluir tristeza profunda, perda de energia, alterações no sono e apetite, dificuldade de concentração e pensamentos de morte ou suicídio.

- Ansiedade: a ansiedade é um distúrbio mental caracterizado por preocupação excessiva, medo irracional e sintomas físicos, como taquicardia, sudorese e dificuldade de concentração. Os profissionais da segurança pública podem desenvolver ansiedade devido ao estresse crônico, à pressão constante e à incerteza em suas atividades. A ansiedade pode interferir no desempenho profissional e nas relações pessoais.

- Síndrome de Burnout: a síndrome de burnout é uma resposta ao estresse crônico e prolongado no trabalho. Caracteriza-se por exaustão emocional, despersonalização (sentimentos de cinismo e distanciamento em relação aos outros) e diminuição da realização pessoal. Policiais frequentemente enfrentam altos níveis de estresse e demandas emocionais, o que aumenta o risco de desenvolvimento da síndrome de burnout.

- Abuso de substâncias: devido às pressões e aos desafios enfrentados no trabalho, alguns profissionais da segurança pública recorrem ao abuso de substâncias como álcool e drogas como mecanismo de enfrentamento. O abuso de substâncias pode ser uma tentativa de lidar com o estresse e os traumas vivenciados, mas pode levar a problemas de saúde mental mais graves e impactar negativamente a vida pessoal e profissional.

Vale ressaltar que esses distúrbios podem ter impactos significativos na vida pessoal, no desempenho profissional, nas relações interpessoais e na saúde geral dos profissionais da segurança pública, que podem enfrentar dificuldades em lidar com suas emoções, apresentar problemas de relacionamento, ter um aumento no risco de suicídio, experimentar um declínio na qualidade de vida e ter um maior absenteísmo no trabalho.

Não se pode olvidar, e esse é um dos mais graves problemas, que os distúrbios mentais podem afetar negativamente a capacidade de tomar decisões adequadas e responder efetivamente a situações de emergência, colocando em risco tanto a segurança desses profissionais quanto a da população a quem eles servem.

Muitos casos de abuso de autoridade, de excessos praticados no cumprimento do dever, de violência desnecessária, podem, não raras vezes, ter como fator desencadeante um distúrbio mental latente, incipiente ou não percebido ou inadequadamente diagnosticado ou tratado.

É importante ressaltar, outrossim, que esses distúrbios não afetam apenas os profissionais da segurança pública individualmente, mas também têm um impacto nas instituições e na sociedade como um todo. O alto índice de distúrbios mentais nessa população pode levar a um esgotamento do quadro de pessoal, diminuição da eficiência no combate ao crime, aumento da violência institucional e uma maior desconfiança da população em relação às forças de segurança.

Sensível a essa problemática, a Lei nº 14.531/23, dentre outras inovações, incrementou o Pró-Vida, Programa Nacional de Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública, tendo por objetivo elaborar, implementar, apoiar, monitorar e avaliar, entre outros, os projetos de programas de atenção psicossocial e de saúde no trabalho dos profissionais de segurança pública e defesa social, bem como a integração sistêmica das unidades de saúde dos órgãos que compõem o Sistema Único de Segurança Pública.

Por força da nova lei, o Pró-Vida deverá desenvolver, durante todo o ano, ações direcionadas à saúde biopsicossocial, à saúde ocupacional e à segurança do trabalho e mecanismos de proteção e de valorização dos profissionais de segurança pública e defesa social, além de desenvolver, também, ações de prevenção e de enfrentamento a todas as formas de violência sofrida pelos profissionais de segurança pública e defesa social, a fim de promover uma cultura de respeito aos seus direitos humanos.

Além disso, o Pró-Vida deverá produzir diretrizes voltadas à prevenção da violência autoprovocada e do suicídio.

Nesse aspecto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública deve divulgar, no âmbito do Pró-Vida, em conjunto com a Rede Nacional de Qualidade de Vida para os Profissionais de Segurança Pública (Rede Pró-Vida), diretrizes de prevenção e de atendimento dos casos de emergência psiquiátrica que envolvam violência autoprovocada e comportamento suicida dos profissionais de segurança pública e defesa social, a ser adaptadas aos contextos e às competências de cada órgão.

Essas políticas e ações de prevenção da violência autoprovocada e do comportamento suicida dos profissionais de segurança pública e defesa social, desenvolvidas pelas instituições de segurança pública e defesa social, deverão observar importantes diretrizes, como: I - perspectiva multiprofissional na abordagem; II - atendimento e escuta multidisciplinar e de proximidade; III - discrição e respeito à intimidade nos atendimentos; IV - integração e intersetorialidade das ações; V - ações baseadas em evidências científicas; VI - atendimento não compulsório; VII - respeito à dignidade humana; VIII - ações de sensibilização dos agentes; IX - articulação com a rede de saúde pública e outros parceiros; X - realização de ações diversificadas ou cumprimento de disciplinas curriculares específicas durante os cursos de formação; XI - desenvolvimento de ações integradas de assistência social e promoção da saúde mental de forma preventiva e inclusiva para a família; XII - melhoria da infraestrutura das unidades; XIII - incentivo ao estabelecimento de carga horária de trabalho humanizada; XIV - incentivo ao estabelecimento de política remuneratória condizente com a responsabilidade do trabalho policial; e XV - incentivo à gestão administrativa humanizada.

Além disso, a lei estabelece, no § 3º do art. 42-A, que as políticas e as ações de prevenção institucional da violência autoprovocada serão executadas por meio de estratégias de prevenção primária (§ 4º), secundária (§ 5º) e terciária (§ 6º), conferindo importância fundamental e nunca antes conferida a este tríplice vetor de atenção e cuidado.

A prevenção primária se destina a todos os profissionais da segurança pública e defesa social e deve ser executada por meio de diversas estratégias previstas em lei. A prevenção secundária, por seu turno, se destina aos profissionais de segurança pública e defesa social que já se encontram em situação de risco de prática de violência autoprovocada. Já a prevenção terciária se destina aos cuidados dos profissionais de segurança pública e defesa social que tenham comunicado ideação suicida ou que tenham histórico de violência autoprovocada.

Cumpre ressaltar que esse cuidado com a saúde mental dos profissionais de segurança vai além do aspecto clínico, abrangendo também a criação de condições adequadas de trabalho, a valorização profissional e o fortalecimento das relações interpessoais no ambiente de trabalho, podendo ser elencadas, como exemplos, as seguintes soluções:

- Conscientização e educação: é fundamental implementar programas de conscientização e educação sobre saúde mental nas instituições de segurança pública. Treinamentos regulares podem ajudar os profissionais a reconhecerem os sinais precoces de problemas de saúde mental em si mesmos e em seus colegas.

- Suporte psicológico e emocional: é necessário garantir o acesso a serviços de suporte psicológico e emocional, como a disponibilidade de psicólogos e psiquiatras especializados, tanto em atendimentos individuais quanto em grupos terapêuticos. Esses serviços devem ser confidenciais e sem estigma, permitindo que os profissionais procurem ajuda sem medo de represálias.

- Criação de ambientes de trabalho saudáveis: as instituições de segurança pública devem se esforçar para criar ambientes de trabalho saudáveis, que promovam o bem-estar dos profissionais. Isso pode incluir a implementação de medidas para reduzir a sobrecarga de trabalho, como o aumento do quadro de pessoal e a distribuição equitativa das tarefas. Além disso, é importante oferecer pausas regulares, horários flexíveis e programas de promoção da saúde, como atividades físicas e técnicas de gerenciamento do estresse.

- Programas de prevenção e intervenção precoce: o poder público e as instituições devem investir em programas de prevenção e intervenção precoce para lidar com os distúrbios psíquicos. Isso pode incluir a implementação de avaliações periódicas da saúde mental dos policiais, a fim de identificar sinais precoces de problemas e oferecer intervenções adequadas. Além disso, é importante promover a resiliência emocional por meio de programas de treinamento e apoio psicológico contínuo.

 - Políticas de valorização e reconhecimento: é essencial que os profissionais da segurança pública sejam valorizados e reconhecidos por seu trabalho. Isso pode ser feito por meio de políticas que incentivem o reconhecimento público, recompensas e benefícios adicionais para aqueles que se dedicam ao cuidado de sua saúde mental e ajudam a criar ambientes de trabalho saudáveis.

- Parcerias com instituições de saúde mental: o poder público deve estabelecer e incrementar parcerias com instituições de saúde mental, visando fornecer suporte especializado e recursos para os profissionais da segurança pública. Essas parcerias podem incluir a criação de centros de atendimento especializados, linhas diretas de apoio emocional e a facilitação do acesso aos serviços de saúde mental disponíveis na comunidade.

Isso tudo requer, evidentemente, a destinação de recursos adequados para a criação e manutenção de programas e serviços específicos, bem como a capacitação dos profissionais envolvidos na implementação dessas ações.

Em conclusão, reconhecer e abordar a problemática da saúde mental dos profissionais da segurança pública no Brasil é de extrema importância para garantir não apenas um ambiente de trabalho saudável, mas também para promover o bem-estar desses profissionais e assegurar a eficácia das forças de segurança na proteção da sociedade. É necessário um esforço conjunto do poder público, das instituições e da sociedade como um todo para enfrentar essa questão de forma abrangente e eficaz.

 

Imagem Ilustrativa do Post: violet bloom // Foto de: Mike W. // Sem alterações

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