A “Rosa” e a “porquería”: qual a face da Justiça?

19/08/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 19/08/2015

“Tu és, divina e graciosa Estátua majestosa do amor Por Deus esculturada E formada com ardor Da alma da mais linda flor De mais ativo olor Que na vida é preferida pelo beija-flor (...)”.

(...)

“Que el mundo fue y será una porquería,

Ya lo sé;

En el quinientos seis

Y en el dos mil también (...)”.

Olá a todos!!!

Em epígrafe, inseri duas letras de canções com narrativas bem diversas: a primeira é a música “Rosa”, de autoria de Pixinguinha[1], consagrado artista brasileiro, em cujos belos versos presta homenagem direta à sua esposa e indireta a todas as mulheres; a segunda é o tango “Cambalache”, de Enrique Santos Discépolo[2], cuja letra pretende ser um diagnóstico da “porquería” que representa a sociedade quanto aos valores e objetivos propugnados e os meios para alcançá-los.

Na semana passada, tratei do tema da justiça, ou melhor, da plenitude da justiça baseada na alteridade e coerência. Mencionei a discussão sobre o bom, o certo e o efetivo, observando que se, por um lado, podemos criticar com folga casos-limite como os outrora mencionados, igualmente folgado o assentimento às pequenas corrupções do dia-dia, vantagens imediatas e comportamentos egoístas.

O sentimento de Justiça, sendo esta a trilha a percorrer, estaria mais para a “Rosa”, ou a “porquería”?

Ronald Dworkin sempre confinou nos juízes para definir parâmetros de justiça a partir do direito. Em iterativas obras, desde o famoso “Levando os direitos a sério”[3], até a não menos famosa obra anterior ao seu falecimento, “A raposa e o porco-espinho: Justiça e valor”[4], destacou que os juízes estão legitimados a declarar direitos pré-existentes oriundos, sobretudo, das facetas principiológicas extraídas da ordem normativa posta[5]. Uma das formas aptas a viabilizar esse intento, segundo Dworkin, é a teoria do romance em cadeia (“chain novel”), segundo a qual cada juiz escreve uma parte do encadeamento jurisprudencial sem, contudo, olvidar o capítulo previamente existente; e assim por diante.

Não discordo da concepção de Dowrkin no que toca à intenção de extrair a justiça da coerência, embora não compactue com a ideia da atividade de descoberta de direitos pré-existentes no âmbito de um ordenamento pré-constituído. Esta forma de ver a atividade judicante é deveras controvertida e encontra manancial na discussão da legitimidade decisória. Não gostaria de explorar este ponto, por ora.

Na presente oportunidade, prefiro tratar do romance em cadeia como forma de busca da coerência e plenitude da justiça; e, ainda, da caracterização do telos da justiça.

A Justiça como “Rosa” não se satisfaz com posicionamentos díspares no seio da mesma instituição; não procura particularidades que não possam ser assinaladas como sinais característicos aptos a ensejar decisão particularista que se afaste de posicionamentos consolidados; não se contenta com subjetivismos, ineditismos, ou decisões ad hoc; ao contrário, procura estabilidade, em primeiro lugar de posicionamentos para, em seguida, viabilizar a quietude de expectativas comportamentais, quer em seara pública, quer particular. A Justiça como “Rosa” não cede a voluntarismos, revanches, ou a modismos; não busca a estética como valor em si, senão como metodologia que auxilie a substância analisada.

A Justiça como “porquería”, de outro lado, cede passo a casuísmos, pouco se importa com estabilidade, satisfaz-se com os efeitos imediatos, descurando do contexto geral que se pode obter a partir de consequências consideradas sob o ângulo argumentativo; posiciona-se de maneira refratária à técnica, visualizando nas emoções e na ideologia pura e simplesmente consideradas o mecanismo apto a deixar fluir a intuição que entende primordial. A Justiça como “porquería” não se atualiza: para quê, se já temos leis e jurisprudência? Por igual, não busca em outros cenários, eventualmente interdisciplinares, visões que possam contribuir para a solução do litígio, preferindo a forma ao conteúdo; antes protege-se do cidadão, dando primazia à estética da forma à estética metodológica e de conteúdo; prefere a disputa institucional, ao movimento dialógico de cooperação.

Estas parcas linhas demonstram a vantagem da Justiça como “Rosa”, não é mesmo? Então, deixem-me dizer algo: ambas são péssimas!

Tanto a Justiça como “Rosa” como a Justiça como “porquería” não passam de formas apriorísticas de ver um modelo ideal. E o modelo ideal, porque existente apenas na gramática do que se compreende bom[6], não encontra os suportes fático e social necessários a sustentar a distribuição do justo, agora sim, enquanto mote a ser perseguido aprioristicamente.

A Justiça não é “Rosa” ou “porquería”; antes de ser algo, faz-se diariamente, contextualiza-se de maneira ponderada[7]; está em permanente construção, qual o romance em cadeia; busca incessantemente o certo, o bom e o efetivo; não é um modelo, senão uma roupagem. Não há um telos a buscar, senão o resultado de uma praxis diariamente alimentada pela sociedade e capaz de alimentá-la.

Evidentemente, há que se ter método, já que o mundo das fórmulas é uma realidade. Neste contexto ressai a argumentação. A plenitude da justiça é, neste ponto, equiparada à plenitude da argumentação, de modo que princípios, diretrizes e comportamentos institucionais são permanentemente reavaliados por intermédio da argumentação.

Temos na argumentação o limite dos limites; a ponderação contextualizada do telos; a praxis domada; a coerência firmada e a estabilidade propugnada. Não se trata de um objetivo a perseguir, uma forma a procurar, ou um modelo a buscar. Antes, trata-se do reconhecimento do fluido[8], do dinâmico[9], do líquido[10]. Constrói-se dia-a-dia a fala da Justiça a partir de alicerces argumentativos bem vincados no solo da sociedade e no arcabouço do ordenamento. De uma “porquería” de solo, não se pode esperar uma “Rosa”.

Não se deve fazer Justiça, senão praticá-la. Linguagem, argumentação e condições de fala operam em conjunto neste cenário para propiciar não apenas a técnica, mas a legitimidade. Melhor nutrir constantemente o solo, do que esperar o nascimento da incerta rosa.

O assunto demanda maior digressão. Avançarei na próxima semana.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Íntegra da letra pode ser encontrada em http://letras.mus.br/pixinguinha/30843/. Acesso em 16 agosto de 2015.

[2] Íntegra da letra pode ser encontrada em http://letras.mus.br/enrique-santos-discepolo/345435/. Acesso em 16 agosto de 2015.

[3] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

[4] DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: Justiça e valor. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[5] Este não é o espaço para discussões a respeito do conceito “ordem normativa”, sistemas normativos, ou ordem posta ou pressuposta. A literatura é farta na descrição desta discussão, podendo ser lembrados alguns autores que trabalham o tema e para os quais remeto o leitor: RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico. Uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos. Tradução de Maria Cecília Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Introduccíon a la metodologia de las ciéncias jurídicas y sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1987.

[6] MÈLICH, Joan-Carles. Lógica de la crueldad. Barcelona: Herder Editorial, 2014.

[7] PECZENICK, Aleksander. Derecho y razón. Versión castellana de Ernesto Garzón Valdes. México: Distribuciones Fontamara S.A., 2003.

[8] STRAUSS, David. The living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010.

[9] ZAGREBELSKY, Gustav. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Traducción de Marina Gascón. Madrid: Editorial Trotta, 2011.

[10] BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.


thiago galiano

Tiago Gagliano Pinto Alberto é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.”


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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