A RETROATIVIDADE DA REPRESENTAÇÃO NO CRIME DE ESTELIONATO

24/02/2022

Em recente decisão proferida no AgRg no HC 613.247/SC, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça pacificou a controvérsia e decidiu pela irretroatividade da norma que instituiu representação como condição de procedibilidade no delito previsto no art. 171 do Código Penal, quando já oferecida a denúncia.

A relatoria do acórdão esteve a cargo no Ministro Olindo Menezes, desembargador convocado do TRF 1ª Região.

No julgamento, foi seguida a orientação já adotada pelo Supremo Tribunal Federal e pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (no julgamento do HC 610.201/SP, em 24.03.2021), no sentido da irretroatividade da norma que instituiu a condição de procedibilidade no delito de estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal, quando já oferecida a denúncia.

Apenas a título de recordação, a Lei nº 13.964/19 (Lei Anticrime), que alterou vários dispositivos penais e processuais penais, acrescentou o §5º ao art. 171 do Código Penal, estabelecendo como regra a ação penal pública condicionada a representação do ofendido. O citado parágrafo, a par de estabelecer a regra, trouxe exceções, nos casos em que a vítima é a Administração Pública, direta ou indireta, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.

Como é cediço, a ação penal nada mais é que o direito de se invocar o Poder Judiciário, no sentido de aplicar o Direito Penal objetivo.

O direito de punir do Estado, denominado “jus puniendi”, somente pode ser realizado por meio do direito de ação, que é, nesse caso, o “jus persequendi”. O exercício do direito de ação (“jus accusationis”), entretanto, é que será deferido por lei ao Ministério Público, nas ações penais públicas, ou ao ofendido, nas ações penais privadas.

A ação penal tem como critério de classificação, basicamente, o objeto jurídico do delito e o interesse da vítima na persecução criminal. Assim, determinadas objetividades jurídicas de delitos fazem com que o Estado reserve para si a iniciativa da ação penal, tal a importância que apresentam. Nesse caso, estamos diante da ação penal pública. Em outros casos, o Estado reserva ao ofendido a iniciativa do procedimento policial e da ação penal. Nesse caso, estamos diante da ação penal privada.

Na ação penal pública, a conduta do agente lesa um interesse jurídico de acentuada importância, fazendo com que caiba ao Estado a titularidade da ação. Assim, ocorrido o delito, deve a autoridade policial, em regra, proceder de ofício, tomando as medidas cabíveis. Em juízo, a ação penal pública deve ser exercida privativamente pelo Ministério Público (art. 129, I, da CF).

A ação penal pública apresenta duas espécies: a) ação penal pública incondicionada, quando o seu exercício não se subordina a qualquer requisito, podendo ser iniciada sem manifestação de vontade de qualquer pessoa; e b) ação penal pública condicionada, quando o seu exercício depende do preenchimento de condições, que podem ser a representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça. Assim, temos a ação penal pública condicionada a representação do ofendido e a ação penal pública condicionada a requisição do Ministro da Justiça.

O crime de estelionato, desde a vigência da parte especial do Código Penal de 1940, sempre foi um crime de ação penal pública incondicionada, não obstante as tentativas, já ocorrentes em projetos de lei anteriores, de tornar a ação penal condicionada a representação do ofendido, invocando-se a natureza patrimonial do delito e a disponibilidade do bem jurídico violado.

Entretanto, com a vigência da nova regra estampada no § 5º do art. 171 do Código Penal, exigindo a representação como condição de procedibilidade da ação penal nos crimes de estelionato, instalou-se interessante celeuma acerca da retroatividade ou não da nova disposição para alcançar os casos já ocorridos e que se encontram em fase de investigação ou já com ação penal em andamento.

Em diversos precedentes, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça vinha decidindo pela retroatividade do §5º do art. 171 em relação a todos os processos em curso, que ainda não tenham transitado em julgado, estabelecendo a obrigatoriedade de intimação da vítima para manifestar interesse na continuidade da persecução penal, representando, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 91 da Lei n. 9.099/95. O entendimento era o de que as normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, seriam de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva.

Essa posição favorável à retroatividade da norma do § 5º do art. 171 a todos os casos de estelionato, inclusive após o oferecimento da denúncia, durante a persecução penal em juízo, já encontrava eco em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal, como no caso do ARE 1.289.175/PR, da relatoria do Ministro Edson Fachin, em que a Segunda Turma, em 21.09.2021, decidiu que a nova norma reguladora da ação penal no crime de estelionato deveria ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado.

Mas no próprio Supremo Tribunal Federal esse entendimento foi superado em julgamentos posteriores, como no caso do RHC 208.320/SP, tendo como relatora a Ministra Cármen Lúcia, julgado em 29.11.2021, em que a Primeira Turma entendeu pela irretroatividade da citada norma, fazendo referência, inclusive, ao julgamento do HC 187.341, da relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, em que a mesma Primeira Turma, por votação unânime, considerou de natureza mista a norma descrita no § 5º do art. 171 do Código Penal, decidindo que a sua aplicação retroativa seria obrigatória “em todas as hipóteses onde ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Ministério Público, independentemente do momento da prática da infração penal”.

Em suma, a posição pacificada nos Tribunais Superiores é no sentido da irretroatividade da norma estampada no §5º do art. 171 do Código Penal, acrescentada pela Lei n. 13.964/19 (Lei Anticrime), nos casos em que já tiver sido oferecida a denúncia. A retroatividade, de outra banda, considerada a nova norma de caráter misto (de conteúdo processual-penal ou híbrido), somente se opera nos casos ocorridos antes da vigência da Lei n. 13.964/19, quando ainda não oferecida a denúncia pelo Ministério Público.

 

 

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