A prova, a verdade e o “tapinha retórico e metafísico nas costas do intérprete”

06/09/2016

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto – 06/09/2016

Você, operador do direito, já passou por alguma situação assim? Autor e Réu não produzem qualquer tipo de prova, quer do pretenso fato constitutivo, quer do impeditivo do direito vindicado; ônus da prova direcionado legalmente à Parte Autora, ou, por força de inversão ope legis ou ope judicis, à Parte Ré; o juiz, posicionando-se no sentido de que não considera adequado iniciar fase instrutória não requerida, opta por julgar o feito levando em conta apenas as regras processuais de distribuição do ônus probatório, porque, afinal de contas, embasadas em conhecimento milenar a respeito do tema[1].

Acaso questionado a respeito da verdade produzida (ou reconhecida) por meio da decisão jurisdicional, decerto o juiz responderia que o que se produziu fora a tal (e malsinada) verdade processual, ou formal, que pode ou não coincidir com a verdade material, ou substancial. Esse o motivo pelo qual, de consciência tranquila, adjudicaria, ou não, o direito postulado.

Este quadro, que soa tão comum e rotineiro, ainda poderia ser lido da mesma maneira, diante do atual contexto teórico e jurídico que se verifica com tantas novas teorias e outras eventualmente não tão novas, mas repensadas, que podem auxiliar diretamente no processo de tomada de decisão? Ou existe algo de falacioso ao considerar que a verdade comporta na decisão judicial algum tipo de elemento constitutivo? Há verdade lá fora, ou seja, fora do processo judicial, ou, mais genericamente, da tomada de decisão em quaisquer questões?

Richard Rorty, filósofo norte-americano, acredita que não. Embasado em Quine, Sellars, W. James e principalmente J. Dewey, considera que a tentativa de descoberta da moralidade e da verdade consubstanciam, quando muito, inofensivas pancadinhas (tapinhas) retóricas nas costas do investigador ou do agente bem-sucedido, juiz ou não. A sua compreensão de verdade, enquanto neo-pragmatista, é convencional, isto é, somente existirá uma verdade se e na medida em que a sociedade, em constante movimento, compreender consensualmente que tal se verifica, independentemente do objeto em si, a verdade[2].

Susan Haack, qualificando-se como uma moderada apaixonada, posiciona-se em sentido diametralmente oposto, compreendendo que a verdade existe por si e independentemente de qualquer trato ou consenso social. Observa, em relação à proposta de Rorty, que a conclusão de que o predicado “verdadeiro” é semanticamente supérfluo, “tendo somente o papel retórico de dar um tapinha metafísico nas costas”, é bizarra[3].

Existem, claro, outras linhas de pesquisa epistemológicas a respeito da verdade, mas, por ora, bastam estas mencionadas a fim de que possa desenvolver a linha argumentativa que pretendo ao correlacioná-la com a apreciação da prova no contexto processual civil.

No processo civil brasileiro, adotamos, ex vi legis, o denominado “método da probabilidade prevalecente”, isto é: a tese que deverá prevalecer deverá ser aquela mais provável a partir de um raciocínio indutivo de reconstrução. Dito de outra forma: o juiz deverá reconstruir a dinâmica fática pertinente ao alegado e, com base em raciocínio indutivo (que no máximo induz à probabilidade de ocorrência do aventado e não à sua certeza), chegará ao que compreende como verdadeiro e apto a escudar a solução decisória final.

Há, em ambientes processuais civis alienígenas, outras propostas: i) no direito norte-americano, há uma regra federal que determina a relevância, em tese, da prova: “ RULE 401 DA FEDERAL RULES OF EVIDENCE (EUA): a prova é relevante se apresenta “any tendence to make the existence of any fact more probable or less probable”; ii) o denominado “método da discricionariedade guiada”, segundo o qual haverá discricionariedade na valoração da prova sem, contudo, desconsiderar aspectos científicos e epistêmicos; iii) o método “mais provável que não”, que empreende valoração negativa (e decerto subjetiva) acerca do que reputa ter ocorrido nos meandros fáticos correlacionados ao fato.

Todos esses métodos, ou metodologias, no entanto, não afastam a principal dúvida: considerando que a verdade, enquanto tal, pode ser questionada acerca de sua própria existência, estaria legitimado o provimento que decida tão somente à conta de regras de incumbência do ônus probatório? Ou, assim o fazendo, o juiz estaria tão somente dando um tapinha retórico e metafísico nas costas do jurisdicionado?

Vou colocar essa indagação de outra maneira, mais direta: está correto, sob o ponto de vista da verdade, julgar tão somente conforme a regra de distribuição de ônus probatório?

Se você for um partidário da teoria de Rorty, sem dúvida. Afinal, o consenso teria sido atingido com a mera elaboração e aprovação da regra processual de distribuição de ônus probatório, estático ou dinâmico. Isso seria suficiente a garantir que a sua decisão, ademais de processualmente adequada à sistemática prevista pela legislação, ainda esteja consentânea à verdade que pode ser extraída dos elementos existentes nos autos; ora: quod non est in actis, non est in mundus, não é mesmo?

Mas... pergunto: seria mesmo isso que o deixaria com a consciência tranquila de ter adjudicado o direito a quem realmente o titularize? A solução meramente processual, ainda que prevista em lei, não estaria representando uma espécie de jurisdição defensiva, na medida em que relega a verdade aos quadrantes processuais, consensualmente aprovados; e, ao tempo em que também a aprisiona, limita o juiz no exercício da jurisdição ao processualmente admissível, sob o olhar atento do positivismo metodológico?

Uma opção para afastar esse quadro seria considerar seriamente a inconstitucionalidade de qualquer dispositivo legal que pretenda delimitar a distribuição de ônus probatório no ambiente judicial. Entrementes, tal alternativa com certeza estaria afastada quer pela inexistência de fundamento constitucional substantivo relevante para obstar a lei processual em disciplinar tal quadro, quer pela regra do “sempre foi assim”, que, acaso lida pelo olhar a epistemologia, poderia ser bem representada pelo “mito do Dado” sugerido por Sellars, isto, é, o correto e verdadeiro é aquilo que descritivamente se pode considerar como tal, como realidade dada.

Bem, mas considerando que as soluções binárias (viável/inviável) não andam em alta após a virada linguística que, no âmbito da teoria da decisão judicial, direcionou as atenções às construções de argumentos em movimento racionalista, gostaria de apresentar sugestão do tratamento da verdade enquanto correlacionada com a análise probatória.

E se, ao se dar conta de que o julgamento redundará na incidência de uma regra de distribuição de ônus como decorrência de uma ineficiência probatória verificada nos autos, o juiz simplesmente optasse por não julgar, ainda, a lide? Algumas alternativas seriam interessantes: a) a prolação de decisão indicando a possibilidade de julgamento consoante o material probatório existente nos autos e, conquanto não se esteja diante de uma questão de ordem pública ou qualquer outra situação que, nos moldes do artigo 10 do CPC/15, reclamem manifestação prévia das Partes, ainda assim sejam elas indagadas acerca das provas aptas a construir o raciocínio jurídico que delineará o resultado decisório final; b) designação de audiência visando o debate acerca da real ausência de interesse probatório.

Essas são apenas algumas opções que pretendem contrabalancear (ou harmonizar) a verdade e a regra processual que determina a distribuição de ônus probatório. Não é um posicionamento definitivo a respeito, mas, em verdade, um trabalho em andamento. A discussão, por si só, já vale a pena, a fim de que não prossigamos aceitando tapinhas retóricos e processuais nas costas, sem verticalizar o estudo da legitimidade da decisão que o realiza.

E você, o que acha?

Um grande abraço a todos. Compartilhem a paz!


Notas e Referências:

[1] Vale lembrar, a este respeito, o topoi allegatio non probatio quasi non allegatio e onus probandi incumbit ei qui dicit.

[2] Entre outras obras: RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Tradução de Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. RORTY, Richard. Consequências do Pragmatismo. Tradução de João Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1982.

[3] Entre outras obras e uma infinidade de artigos: HAACK, Susan. Manifesto de uma moderada apaixonada. Ensaios contra a mora irracionalista. Tradução de Rachel Herdy. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio-edições Loyola, 2011. HAACK, Susan. Evidencia y investigación. Hacia la reconstrucción en epistemología. Traducción de Mª Ángeles Martínez García. Madrid: editorial Tecnos S.A., 1997.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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