A proteção internacional dos direitos humanos e o referencial de subsidiariedade

09/01/2017

Por Emerson Garcia – 09/01/2017

1. Aspectos gerais. O neologismo subsidiariedade, do latim subsidiarius, subsidiarii,[1] é nitidamente polissêmico. Em sua expressão mais simples, pode significar suplemento ou indicar que algo é secundário em relação a um objeto tido como principal. No tecnicismo jurídico, reflete a relação entre duas instituições ou normas, em que uma suplementa a outra em certas circunstâncias.[2]

Lars Döring[3] ressalta que a subsidiariedade pode ser vista como uma especificação do princípio da solidariedade, indicando quando (Wann) e como (Wie) certos mecanismos de auxílio tornam-se operativos.

Com os olhos voltados à proteção dos direitos humanos, manifesta-se em distintos níveis de intensidade, tanto no direito internacional convencional como no não convencional. O manejo da subsidiariedade nesses planos de análise indica que certas instituições ou normas internacionais somente se tornam operativas se as instituições ou normas nacionais forem ineficazes ou insuficientes à realização de certos fins.

O principal objetivo a ser alcançado nesse modo de inter-relação entre os sistemas é o de assegurar, até o limite do possível, que o centro de decisões esteja o mais próximo possível do ambiente em que projetará os seus efeitos. Ao dispor que normas e instituições nacionais ocupam o plano principal, a subsidiariedade limita a incidência dos congêneres internacionais. Atua, portanto, como mecanismo de ordenação do exercício de competências paralelas, o que significa dizer que não se aplica aos domínios ocupados exclusivamente por normas e instituições internacionais.[4]

2. O exemplo da União Europeia. O Tratado de Maastricht, de 1992, instituiu a União Europeia sob os auspícios da subsidiariedade, de modo que a União somente poderia valer-se de certos poderes quando a ação do Estado-membro fosse insuficiente. O objetivo era o de conter o receio generalizado de que a União pudesse intervir nos mais variados domínios, comprimindo, cada vez mais, a esfera de competência de cada Estado-membro.[5] Com o advento do Tratado de Lisboa, de 2007, o art. 5º, 3, o Tratado da União Europeia passou a dispor que a atuação da União seria justificável não só em virtude da insuficiência como quando pudesse alcançar melhores resultados que os obtidos a nível central, regional ou local.[6]

Vale lembrar que a União Europeia é uma organização internacional de integração, o que lhe permite rever atos praticados pelos Estados-membros, isso sem contar que muitas de suas deliberações possuem aplicabilidade e eficácia direta na ordem jurídica dos respectivos Estados. A respeito do necessário redimensionamento da noção clássica de soberania, remetemos às considerações que realizamos na obra Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Breves Reflexões sobre os Sistemas Convencional e Não Convencional.[7]

No âmbito da União Europeia, o controle da subsidiariedade pode ser feito a priori ou a posteriori. O primeiro é realizado por meio de um “mecanismo de alerta precoce”, [8] em que a Comissão Europeia comunica aos parlamentos nacionais seus projetos de atos legislativos, acompanhados de uma detalhada exposição dos elementos circunstanciais que justificam a sua atuação, de modo a permitir a aferição da observância da subsidiariedade. No controle a posteriori, por sua vez, a aferição é realizada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao analisar um caso concreto.[9] 

3. O Sistema Convencional de Proteção dos Direitos Humanos 

Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos tiveram notável desenvolvimento a partir do segundo pós-guerra. Em suas feições embrionárias, buscavam reconhecer direitos mínimos a serem assegurados aos seres humanos e estabelecer mecanismos de orientação, assistência e monitoramento de sua observância, o que, naturalmente, não afastava de cada pactuante o munus de principal ou, mesmo, exclusivo garantidor no âmbito do respectivo território. A inobservância desses direitos, quando muito, poderia dar ensejo a uma censura internacional, mas inexistiam mecanismos que permitissem assegurar a sua efetividade.

Novos aperfeiçoamentos foram obtidos com a criação de órgãos com competência para identificar as situações de inobservância dos direitos humanos e, se fosse o caso, determinar a adoção das providências necessárias pelos Estados, desde que tenham decidido, voluntariamente, sujeitar-se  a esses mecanismos de controle. O grande desenvolvimento desses mecanismos ocorreu a nível regional, o que certamente decorre da proximidade física entre os Estados e da maior zona de convergência dos valores que prestigiam.

Merecem referência específica o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Corte Interamericana dos Direitos do Homem, previstos, respectivamente, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na Convenção Americana dos Direitos do Homem. A principal distinção entre esses órgãos reside no fato de o primeiro deles admitir o acesso direto de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação dos direitos assegurados na Convenção. Essa possibilidade surgiu com o Protocolo nº 11 à Convenção Europeia, de 11 de maio de 1994, pois, até então, as irresignações eram inicialmente encaminhadas à Comissão Europeia e, se entendesse conveniente, desta ao Tribunal. Essa sistemática ainda é adotada no âmbito da Convenção Americana, que não admite o acesso direto de particulares à Corte Interamericana.[10]

Uma característica comum a todos os sistemas regionais é a necessidade de exaustão das vias internas. Em outras palavras, um caso somente pode ser submetido à apreciação da instância internacional após as autoridades nacionais terem tido a oportunidade de corrigir a injuridicidade praticada. Essa oportunidade há de ser exercida em tempo razoável, sob pena de a omissão ser interpretada como negativa de reparação. Estará igualmente caracterizada a exaustão das vias internas quando a violação aos direitos humanos for contínua, indicando que a sua institucionalização torna infrutífera a formulação de qualquer requerimento aos poderes constituídos ou quando pretensões similares já tiverem sido indeferidas.[11] Com isso, é reconhecida a responsabilidade primária de cada Estado e o caráter subsidiário da proteção internacional.

Outra manifestação evidente da subsidiariedade decorre do fato de os órgãos de controle, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Corte Interamericana dos Direitos do Homem, ao determinarem o respeito aos direitos humanos, conferirem a cada Estado um substancioso grau de discrição na forma de cumprimento de sua obrigação. 

4. O Sistema Não Convencional de Proteção dos Direitos Humanos

O reconhecimento de que o ser humano é fim, não meio à disposição das estruturas estatais de poder, tendo uma dignidade a ser protegida e que não pode ser aviltada, acarretou uma sensível releitura do voluntarismo que tradicionalmente caracterizava as relações internacionais.

Graves violações aos direitos humanos tendem a gerar um sentimento de indignação relativamente generalizado e podem ensejar reações da sociedade internacional, ainda que o Estado responsável por essas violações não tenha expressamente anuído com qualquer intervenção em situações outrora enquadradas como de domínio reservado de jurisdição interna. É o que ocorre quando o Estado viola os direitos humanos dos seus próprios nacionais, no interior do seu território. A esse respeito, merece referência, dentre os mecanismos, o papel desempenhado pela Organização das Nações Unidas.

Quando as violações aos direitos humanos atingem tamanha intensidade, sendo consideradas atentatórias à paz e à segurança internacionais, tem sido invocado o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas para permitir a adoção de medidas coercitivas, por parte dessa organização internacional de cooperação, a partir de deliberação do Conselho de Segurança. Foi justamente essa interpretação que embasou a decisão de instalar os Tribunais Internacionais ad hoc da antiga Iugoslávia e do Ruanda, com o objetivo de julgar os criminosos de guerra pelas atrocidades ali praticadas. É importante ressaltar que esses Tribunais não tiveram a sua jurisdição reconhecida pelos referidos Estados, sendo imposta pelas Nações Unidas.[12]

O sistema não convencional de proteção dos direitos humanos também rende homenagem ao princípio da subsidiariedade. Afinal, as medidas coercitivas que venham a ser adotadas somente serão justificadas pela não adoção, por parte das autoridades locais, das medidas necessárias à cessação das violações aos direitos humanos e à responsabilização dos infratores.  

Epílogo 

A subsidiariedade pode ser vista como um princípio indissociável das relações internacionais, que tende a apresentar sensíveis variações conforme transitemos do plano não convencional para o convencional. Ainda que o conceito de soberania tenha passado por realinhamentos com o surgimento das organizações internacionais de integração e o correlato fortalecimento das Nações Unidas, organização internacional de cooperação voltada à preservação da paz e da segurança internacionais, é evidente que cada Estado de Direito forma uma unidade existencial, que não pode despir-se por completo do poder de mando de que se acha investido em sua ordem interna ou das responsabilidades que dele decorrem. A subsidiariedade, ao reconhecer essas características, diminui as zonas de tensão entre instituições e normas internacionais e os congêneres nacionais, contribuindo, intensamente, para a sua harmônica coexistência.


Notas e Referências:

[1] A Encíclica do Quadragesimo anno, do Papa Pio XI, editada em 1931, em comemoração do quadragésimo aniversário da Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, que consagrou a doutrina    social e econômica da Igreja Católica, fazia menção ao subsidiarii officii principio (princípio das funções subsidiárias). Essa doutrina defendeu a proteção da autonomia de pequenos grupos, incluindo a família, da intervenção desnecessária de grupos maiores, dentre os quais incluiu o Estado. Cf. NEUMAN, Gerald L.. Subsidiarity, in SHELTON, Dinah (org.). The Oxford Handbook of International Human Rights Law. New York: Oxford University Press, p. 360 (361).

[2] Cf. NEUMAN. Subsidiarity..., p. 360 (361).

[3] Fundament für Europa. Subsidiarität, Föderalismus und Regionalismus. Münster: Lit Verlag, 2004, p. 23.

[4] Cf. MARTINS, Margarida Salema D’Oliveira. O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-política. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 183 e ss..

[5] Cf. DONY, Marianne. Droit de l’Union européenne. 3ª ed. Bruxelles: Editions de L`Université de bruxelles, 2010, p. 89.

[6] Essa visão da subsidiariedade já tinha sido encampada pelo então Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no Caso British American Tobacco, de 10/12/2002, C-491/01, nº 179.

[7] 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 10-16.

[8] Cf. DONY. Droit de l’Union..., p. 91.

[9] Cf. TJCE, Alemanha vs. Parlamento e Conselho, j. em 13/05/1997, C-233/1994.

[10] Cf. GARCIA. Proteção Internacional..., p. 85-95.

[11] HILLIER, Timothy. Principles of public international law. 2ª ed. London: Cavendish Publishing Limites, 1999, p. 177.

[12] Cf. GARCIA. Proteção Internacional..., p. 127 e ss.

DONY, Marianne. Droit de l’Union européenne. 3ª ed. Bruxelles: Editions de L`Université de bruxelles, 2010.

DÖRING, Lars. Fundament für Europa. Subsidiarität, Föderalismus und Regionalismus. Münster: Lit Verlag, 2004.

GARCIA, Emerson. Proteção Internacional dos Direitos Humanos. 3ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015.

HILLIER, Timothy. Principles of public international law. 2ª ed. London: Cavendish Publishing Limites, 1999.

MARTINS, Margarida Salema D’Oliveira. O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-política. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

NEUMAN, Gerald L.. Subsidiarity, in SHELTON, Dinah (org.). The Oxford Handbook of International Human Rights Law. New York: Oxford University Press, p. 360-378.


emerson-garciaEmerson Garcia é Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça e Diretor da Revista de Direito. Consultor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Publicou, como autor, coautor, coordenador ou tradutor, mais de quatro dezenas de obras jurídicas. Foi examinador em quase uma centena de concursos públicos, sendo Coordenador da Banca de Direito Constitucional em diversos exames nacionais da Ordem dos Advogados do Brasil. É membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), participando, ainda, da American Society of International Law e da International Association of Prosecutors. Facebook: emersongarcia / Fanpage: professoremersongarcia / Instagram: professoremersongarcia


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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