A proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas no Brasil – Por Ricardo Antonio Andreucci

21/07/2016

No dia 09 de setembro de 2011 foi publicada no DOU e entrou em vigor a Lei nº 12.483, que acresceu o art. 19-A à Lei no 9.807/99, que estabeleceu normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas.

Referida norma trouxe notável incremento ao sistema de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas no Brasil, contribuindo para a efetiva implementação das disposições já constantes da lei respectiva, que prevê níveis estruturais de coordenação administrativa e leva em conta vários fatores que envolvem a inclusão de uma pessoa no programa.

Antes, porém, de analisarmos o sistema brasileiro, é de bom sabor tomar em conta alguns aspectos históricos internacionais.

Sem dúvida alguma, em nível mundial, os Estados Unidos foram pioneiros na instituição de um programa efetivamente sério de proteção a testemunhas, já no início dos anos 60, a partir de algumas iniciativas isoladas do “Organized Crime Racketeerng Section”, do Departamento de Justiça, culminando com o “Organized Crime Control Act” de 1970, que instituiu o “Witness Security Program (Witsec)”, a cargo do “U.S. Marshals Service”.

Até os dias de hoje, o programa de proteção a testemunhas nos Estados Unidos, que inclui também e principalmente a proteção a vítimas, é uma iniciativa exclusivamente estatal, embora conte, em alguns estados, com o auxílio de entidades da sociedade civil que sigilosamente colaboram com a reinserção do protegido e seus familiares na comunidade local. Nesse aspecto, o Estado provê transporte, recolocação em local seguro, mudança de identidade, pagamento mensal de valor determinado, além de assistência social e psicológica ao protegido. O custo é alto – milhões de dólares anualmente destinados ao programa – inseridos no orçamento, garantindo efetiva segurança e apoio não apenas às vítimas e testemunhas em situação de risco, mas também a seus familiares e conviventes.

Na Inglaterra há o “Victim Support”, quase nos mesmos moldes do sistema americano, contando, entretanto, com maior participação da sociedade civil. Na Itália, a proteção a testemunhas fica a cargo da “Direzione Nazionale Antimafia”, restrita, entretanto, à criminalidade organizada.

É bem verdade que o panorama brasileiro sofreu modesta, mas louvável, modificação sob a égide da Lei nº 11.690/08, que alterou dispositivos da lei processual penal, prevendo, no art. 201, § 2º, a obrigatoriedade de comunicação ao ofendido dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem. Faltou apenas instituir, no Brasil, um sistema semelhante ao americano – “Victim Notification System VNS”, programa do “Federal Bureau os Prisons”.

Outras providências salutares também foram instituídas pela mini reforma processual penal de 2008, como a destinação de espaço reservado a vítimas e testemunhas antes da audiência, inquirição por videoconferência, retirada do acusado da sala, além da preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem da vítima, podendo o juiz, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos seus dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito, tudo com o fim de evitar sua exposição aos meios de comunicação.

Já com relação ao implemento de serviços específicos para o atendimento de vítimas e testemunhas ameaçadas, havia previsão no Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996, no capítulo “Luta contra a Impunidade”, da meta de "apoiar a criação nos Estados de programas de proteção de vítimas e testemunhas de crimes, expostas a grave e atual perigo em virtude de colaboração ou declarações prestadas em investigação ou processo penal".

Esse processo culminou com a promulgação, em 13 de julho de 1999, da Lei nº 9.807, que inovou ao estabelecer normas para a organização de programas (federal e estaduais) destinados a vítimas e testemunhas de crimes "que estejam coagidas ou expostas a grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou processo criminal", e instituiu, no âmbito da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas.

Nesse aspecto, o Sistema Nacional de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas é composto pelo Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, regulamentado pelo Decreto nº 3.518/00, sendo gerenciado pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. No âmbito local, o Sistema é gerenciado pelos programas estaduais de proteção.

Esse programa federal consiste no conjunto de medidas adotadas pela União com o fim de proporcionar proteção e assistência a pessoas ameaçadas ou coagidas em virtude de colaborarem com a investigação ou o processo criminal. As medidas, aplicadas isolada ou cumulativamente, objetivam garantir a integridade física e psicológica das pessoas indicadas, bem como a cooperação com o sistema de justiça, valorizando a segurança e o bem-estar dos beneficiários. Dentre outras, essas medidas consistem em segurança nos deslocamentos; transferência de residência ou acomodação provisória em local sigiloso, compatível com a proteção; preservação da identidade, imagens e dados pessoais; ajuda financeira mensal; suspensão temporária das atividades funcionais; assistência social, médica e psicológica; apoio para o cumprimento de obrigações civis e administrativas que exijam comparecimento pessoal; e alteração de nome completo, em casos excepcionais.

Integram o programa um Conselho Deliberativo Federal (a quem compete, dentre outras providências, decidir sobre os pedidos de admissão e exclusão do programa), um Órgão Executor Federal (a quem compete, primordialmente, adotar as providências necessárias à aplicação das medidas do programa, com vistas a garantir a integridade física e psicológica das pessoas ameaçadas, fornecendo subsídios ao Conselho e possibilitando o cumprimento de suas decisões) e uma Rede Voluntária de Proteção. Esta última é o conjunto de associações civis, entidades e demais organizações não-governamentais que se dispõem a receber, sem auferir lucros ou benefícios, as pessoas admitidas ao programa, proporcionando-lhes moradia e oportunidades de inserção social em local diverso de sua residência, sendo integrada por organizações sem fins lucrativos que gozem de reconhecida atuação na área de assistência e desenvolvimento social, na defesa de direitos humanos ou na promoção da segurança pública e que tenham firmado com o Órgão Executor, ou com entidade com ele conveniada, termo de compromisso para o cumprimento dos procedimentos e das normas estabelecidos no programa.

A mola-mestra do programa, entretanto, é o sigilo de todos os atos praticados pelos órgãos envolvidos na proteção das vítimas e testemunhas. Nesse sentido, a preservação da segurança e da privacidade dos indivíduos protegidos conta com capítulo próprio no Decreto nº 3.518/00, que determina a utilização de mecanismos que garantam a segurança e o sigilo das comunicações decorrentes das atividades de assistência e proteção. Os deslocamentos de pessoas protegidas para o cumprimento de atos decorrentes da investigação ou do processo criminal, assim como para compromissos que impliquem exposição pública, deverão ser precedidos das providências necessárias à proteção, incluindo, conforme o caso, escolta policial, uso de colete à prova de balas, disfarces e outros artifícios capazes de dificultar sua identificação. A gestão dos dados pessoais sigilosos, inclusive, deve obedecer às medidas de salvaguarda estabelecidas pelo Decreto nº 2.910/98.

Assim, cremos que o grande desafio do programa de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas no Brasil seja a destinação de recursos suficientes à efetiva implementação do sistema, nos moldes do que determina a lei – o que demanda, acima de tudo, vontade política dos governantes – criando e qualificando unidades especializadas nos órgãos de segurança e desenvolvendo mecanismos que promovam maior agilidade aos procedimentos policiais e judiciais. Um passo importante já foi dado com a promulgação da Lei nº 12.483, de 08 de setembro de 2011, que determinou prioridade na tramitação do inquérito e do processo criminal em que figure indiciado, acusado, vítima ou réu colaboradores, vítima ou testemunha protegidas pelos programas de que trata a Lei nº 9.807/99, impondo que o juiz, qualquer que seja o rito processual criminal, após a citação, deverá tomar antecipadamente o depoimento das pessoas incluídas nos programas de proteção, devendo justificar a eventual impossibilidade de fazê-lo no caso concreto ou o possível prejuízo que a oitiva antecipada traria para a instrução criminal.

Somente assim, com medidas concretas e postura séria no enfrentamento da ameaça às vítimas e testemunhas no Brasil, é que serão efetivamente respeitados os Direitos Humanos, com a consequente diminuição da impunidade e com o resgate, perante a opinião pública e à sociedade, da autoridade da Lei, como corolário de um Estado Democrático de Direito.


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