A precária instituição dos institutos republicanos no Brasil: o papel do STF frente aos demais Poderes

17/12/2016

Por Igor Domingos do Altíssimo – 17/12/2016

Neste ano de 2016 assistiu-se a uma conturbada atuação dos Três Poderes. O procedimento do impeachment exige dos Poderes Republicanos que atuem fora das suas funções típicas, diríamos até fora da sua “zona de conforto”. Exige da Câmara dos Deputados que seja órgão acusador que dá início ao procedimento de julgamento do Presidente da República e do Senado Federal que atue como órgão julgador do crime que é imputado ao chefe do Poder Executivo. Ao Judiciário incumbe garantir a observância dos preceitos Constitucionais, contrabalanceando o político e o jurídico, em uma boa aplicação do princípio dos freios e contrapesos da separação dos poderes.

Essa experiência relativamente rara a que o Brasil é submetida pela segunda vez desde a redemocratização deve servir como um teste de força para as instituições republicanas e um momento de reflexão acerca de suas funções constitucionais. A problemática que gostaria de desenvolver neste texto é a de que uma precária instituição dos institutos republicanos no Brasil levou e leva a constantes rupturas na ordem democrática.

Entre República e democracia subjaz um tensionamento que se relaciona diretamente à interação entre os Poderes. República é fundamentalmente diferente de democracia. A República tem como fundamento a constante contenção do desejo das massas, a constante contenção do exercício de poder. É um governo de cunho aristocrático, fundado em uma virtude aristocrática de contenção do desejo individual em prol do interesse comum (RIBEIRO, 2000).

Democracia, por outro lado, é um regime fundado no princípio anárquico, subversivo e é, consequentemente, ingovernável. Como afirma Rancière (2014, p. 15) “a democracia, diziam os relatores, significa o aumento irresistível de demandas que pressiona os governos, acarreta o declínio da autoridade e torna os indivíduos e os grupos rebeldes à disciplina e aos sacrifícios exigidos pelo interesse comum”.

Desse tensionamento decorre que é necessário pensar democracia e república juntos. Como afirma Ribeiro (2000, p. 22-23) “o problema da democracia, quando ela se efetiva – e ela só pode se efetivar sendo republicana -, é que, ao mesmo tempo que ela nasce de um desejo que clama por realizar-se, ela também só pode conservar-se e expandir-se contendo e educando os desejos”.

Dentro de uma ordem constitucional, cabe à Constituição guardar os limites políticos da interação social, evitando que a degeneração democrática, regida pelos voláteis desejos da maioria, destrua a própria essência da democracia. O objetivo é, em termos claro, que se evite que os anseios das massas provoque que se jogue os cristãos aos leões. Essa função primordial é, em última instância, reservada à jurisdição constitucional, como observa Barroso (2009, p. 87-88): “Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais da Constituição. Em princípio, cabe à jurisdição constitucional efetuar esse controle e garantir que a deliberação majoritária observe o procedimento prescrito e não vulnere os consensos mínimos estabelecidos na Constituição”.

Como primeira análise da problemática proposta neste ensaio, observa-se que o constitucionalismo teve pouca tradição histórica no Brasil. Trafegamos de um regime constitucional a outro, alterações sempre representativas das conturbações políticas e da supremacia dos interesses políticos momentâneos, pretensamente majoritários, em detrimento da limitação do exercício de poder político, próprio das Repúblicas. Em outras palavras, a cada mudança dos interesses políticos dominantes procedia-se a uma alteração constitucional, sem mesmo garantir que a ordem constitucional anterior se efetivasse de fato.

Dessa precária instituição do constitucionalismo decorreu também uma igual precária instituição dos institutos republicanos. Como observa Rocha (1996), diversas constituições brasileiras reproduziram que o Brasil instituía-se como uma República Federativa sem que, contudo, o contexto político apresentasse características de República ou Federação. À guisa de exemplo, pode-se observar que a Constituição de 1937 previa em seus artigos 1º e 3º que o regime adotado era, formalmente, uma república federal. Contudo, o que se observou no período de sua vigência foi que o Executivo deteve exclusivamente o poder legislativo, por força do artigo 180 daquele texto constitucional, e que a autonomia estadual foi limitada pela nomeação de interventores federais nos estados-membros.

Neste momento de conturbação institucional, imperiosa é a reflexão sobre o papel destas instituições, a começar pelo Judiciário, Legislativo e Executivo. A Constituição da República de 1988 adotou no seu artigo 2º o princípio da separação dos poderes, estabelecendo que são três poderes da União, independentes e harmônicos entre si. A independência decorre do fato de que cada um deles possuem funções típicas próprias, enquanto que a harmonia decorre de que, apesar de estar dividido em três funções, o poder estatal é uno e visa precipuamente a efetivação e garantia da Ordem Constitucional estabelecida.

O fato de serem os Poderes seres instituídos e não instituidores é de crucial relevância, principalmente para o Supremo Tribunal Federal, a quem a Constituição conferiu o papel de “guardião da Constituição” (art. 102 da CR/88). Guardião da Constituição não pode significar “dono” da Constituição, sob risco de no lugar de termos uma jurisdição constitucional termos uma legislação constitucional permanente, fora do controle de legitimidade democrática. Nas palavras de Streck (2016a, s.p, grifos acrescidos), “em face de tudo isso, o que se espera é uma postura de humildade da Suprema Corte diante da Constituição e da legislação democraticamente aprovada. O STF não pode mais do que os limites semânticos do seu texto”.

Essa humildade institucional é o primeiro passo para uma compreensão da função de guardião da Constituição. O Judiciário só é capaz de exercer um controle de constitucionalidade sobre os atos dos demais Poderes se compreender que pré-existe uma Constituição que estabelece a atuação de cada um dos Poderes, até mesmo do próprio Judiciário. Os contorcionismos semânticos para se fazer o texto constitucional significar o que quiser não são próprios de um regime republicano.

É verdade que o Judiciário guarda relevante função em uma Ordem Constitucional, mas, como afirma Schwartz (apud BONAVIDES, 2013, p. 326-327) ele “é incomparavelmente o mais fraco dos três ramos do poder (...) não exerce nenhuma influência sobre a espada ou sobre a bolsa; falece-lhe a direção da força ou da riqueza da sociedade; e nenhuma resolução ativa pode tomar qualquer que seja. Em verdade, é possível dizer que não possui nem a força nem a vontade, mas um mero julgamento”. Essa relativa fraqueza institucional é, por outro lado, contrabalanceada com prerrogativas que garantem a imparcialidade e afastam as influências políticas de suas decisões. Ou pelo menos assim deveria ser.

Em 1803 a Suprema Corte dos Estados Unidos decide o histórico caso Marbury v. Madison. Diante de um Congresso e um Presidente hostil ao fato da Corte está revendo uma decisão administrativa do Poder Executivo, Chief Justice John Marshall defende a posição de que acima dos atos dos demais Poderes existe uma Constituição e que uma Lei inconstitucional não pode ser válida e, portanto, obrigar o Judiciário a aplicá-la (BONAVIDES, 2013). A Suprema Corte proferiu essa decisão a uma administração que nem se fez presente para defender seu caso perante o Tribunal porque não reconhecia a autoridade deste para decidir sobre seus atos.

Em 2016, o Supremo Tribunal Federal ainda oscila na tentativa de conformar a Constituição aos atos dos demais Poderes, enquanto deveria ser o inverso. Streck (2016b, s.p) já apontou esse equívoco no voto do Ministro Edson Fachin em que o Ministro parece interpretar a Constituição conforme o CPC. O constitucionalismo não será instituído se não se observar que a Constituição tem prevalência sobre as vontades políticas momentâneas, bem como alterações no contexto econômico e social do país.

A precária instituição dos institutos republicanos, importados irrefletida e acriticamente do modelo norte-americano, torna as instituições brasileiras frágeis para enfrentar as conturbações políticas. Este pode ser o momento de refletirmos sobre o papel dessas instituições e mudar essa tradição de rupturas das ordens constitucionais.


Notas e Referências: 

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. 

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros Editores ltda, 2013. 

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014.

RIBEIRO, Renato Janine. Democracia versus república: a questão do desejo nas lutas sociais. In: BIGNOTTO, Newton. Pensar a república. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

ROCHA, Carmén Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

STRECK, Lênio Luiz. O STF se curvará à CF e à lei no caso da presunção de inocência?. 2016a. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-set-01/senso-incomum-stf-curvara-cf-lei-presuncao-inocencia ISSN 1809-2829. Acessado em: 11/12/2016.

________________. Presunção de inocência: Fachin interpreta a Constituição conforme o CPC?. 2016b. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jun-30/senso-incomum-presuncao-inocencia-fachin-interpreta-constituicao-conforme-cpc ISSN 1809-2829. Acessado em: 11/12/2016.


Igor Domingos Altíssimo. . Igor Domingos do Altíssimo é acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário de Sete Lagoas, cursando o sexto período. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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