Alguns eventos históricos reativam o sentimento de que todos os indivíduos estão interconectados[1]. Com feito, não é possível negar que há uma unidade na coletividade, com consequente dependência mútua, em nível mais ou menos elevado. É dizer, não é possível pensar o sujeito tão somente a partir de sua individualidade, sem consideração a um grupo, a uma comunidade ou a uma sociedade ao qual se liga. A pandemia causada pela disseminação do coronavírus (CODIV-19) parece ser um exemplo desses acontecimentos históricos.
Como escreveu Juan Antonio Molina, escritor e jornalista espanhol, em notícia veicula em maio de 2020, o pós-coronavírus será como sair de uma guerra; tudo estará em escombros. “A propagação do individualismo radical e da insolidariedade social criou um sistema que tornou os indivíduos frágeis”[2]. Esta forma de pensar o mundo foi resultado de um processo histórico que vem desde o surgimento do Estado Moderno, com a consideração do ser humano enquanto indivíduo livre e autônomo, levado a consequências extremas. Em algum momento, afastou-se da ideia kantiniana de que a definição do homem como elemento central e sua liberdade tinham como pano de fundo o bem comum e universal, “para o que não vale apenas para mim, mas também para os outros”, nas palavras do filósofo francês Luc Ferry[3].
Se em tempos de pré-modernidade havia a desconsideração do sujeito, reconhecido tão somente enquanto parte de um grupo ou categoria, isso veio acompanhado, nos anos que sucederam, de um movimento de inversão, com supervalorização do indivíduo, muitas vezes em detrimento do aspecto coletivo, em tempos pós-modernos. Urge considerar o caminho do meio, onde haja a consideração desde indivíduo ao coletivo, em seus diversos níveis (sujeito, comunidades, grupos, sociedades, Estados, humanidade), de modo que um não subjugue os outros, mas, ao inverso, atuem em processo de cooperação.
O homem é um animal social, já advertia a lição de Aristóteles, que veio a se tornar mundialmente famosa e repetida. Isto justifica a necessidade que tem o indivíduo de, necessariamente, se inserir em algum tipo de coletividade. Como escreveu Hannah Arendt “[n]enhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos”[4]. Neste mesmo texto, ela demonstra, através especialmente das origens da expressão socialis, que somente com a ulterior ideia de uma “sociedade da espécie humana” (societas generis humani), já com seu uso latino, o termo adquiriu a significação de condição fundamental do homem. A definição aristotélica, mais antiga e ligada à concepção original grega, estava diretamente relacionada com o ser político, sendo necessário, para entender aquele sentido de homem como um animal político (zoon politikon), compreendê-lo como um ser vivo dotado de fala (zoon logon ekhon). Aqueles que viviam fora da polis (escravos e bárbaros) eram, naturalmente, destituídos de lugar de fala, afastados do campo do discurso.
Arendt segue seu texto afirmando que o surgimento da cidade-estado significava que o homem possuía, além da sua esfera de vida privada, um ambiente político (bios politikus). Nesta perspectiva, pode (no sentido de faculdade, mas também como um dever) um sujeito atuar em benefício do todo, da mesma forma na qual pode uma coletividade beneficiar o indivíduo. O campo por excelência onde isto deve ser desenvolvido e estimulado é o público. O fortalecimento deste espaço e a participação pública, vale advertir, não equivale a “Estados totais”, totalitários e nem se confunde com paixões ideológicas.
A participação na construção da vontade pública deve ser estimulada e exercitada, garantindo-se a todos igualdade para influenciar na tomada de decisões na esfera pública (seja no campo legislativo, executivo ou mesmo judiciário). Sem a possibilidade de participar das esferas decisórias não há igualdade.
A unidade pós-moderna, como afirma Bauman, emerge da realização conjunta de agentes na busca de autodeterminação, sendo um resultado da vida compartilhada e não uma condição dada a priori[5]. Ela também não afasta o pluralismo, senão exige a conciliação de interesses dos membros e dos diversos grupos sociais que se apresentam.
A mera previsão formal de direitos não é suficiente para que se complete um ciclo que há muito vem sendo adiado e que diz respeito a um Estado Social Democrático e Solidário de Direito. Sua concretização depende da efetiva participação democrática na construção das decisões públicas, especialmente por parte de indivíduos e grupos vulneráveis, historicamente colocados à margem das esferas decisórias.
Notas e Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt; DONKIS, Leonidas. Cegueira moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
________________. Teoria da democracia participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma Nova Hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001.
FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
GONÇALVES FILHO, Edilson; MAIA, Maurílio Casas; ROCHA, Jorge Bheron. Custos vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: CEI, 2020.
MOLINA, Juan Antonio. A pandemia e o fim do neoliberalismo pós-moderno. São Paulo: Outras palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/a-pandemia-e-o-fim-do-neoliberalismo-pos-moderno/. Acesso em 21/03/2020.
PIHLAJAMÄKI, Heikki. Comparative Contexts in Legal History: are we all comparatists now? Florianópolis: Sequência, n. 70, p. 57-75, jun. 2015.
[1] Este texto faz parte de pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Direito (mestrado) junto à Universidade Federal do Ceará, ainda em curso.
[2] A pandemia e o fim do neoliberalismo pós-moderno. São Paulo: Outras palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/a-pandemia-e-o-fim-do-neoliberalismo-pos-moderno/. Acesso em 21/03/2020.
[3] FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 146.
[4] ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 31.
[5] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 222.
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