A pandemia da COVID-19 e a proteção de crianças e adolescentes: análises sobre as recomendações do CONANDA

14/04/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

 

O coronavírus é uma amarga e persistente realidade entre nós. A cada dia vivemos uma situação de aumento de pessoas infectadas e de mortes em decorrência da COVID-19, além do necessário isolamento social e das incertezas quanto a sua duração e seus impactos sociais, econômicos e psicológicos, seja os já vivenciados ou os por vir.

Dentro desta crise sanitária mundial, temos, no Brasil, um universo de milhões de crianças, adolescentes e jovens que vivenciam esta pandemia, certamente em condições desiguais de vivenciá-la a depender de suas diferenças de geração, classe, raça e gênero, entre outros marcadores. Apesar de não serem considerados como parte do grupo de risco, é importante discutir as medidas necessárias para a proteção dessas pessoas que estão em condição peculiar de desenvolvimento e sofreram uma mudança abrupta de suas rotinas e, em muitos casos, precarização de suas condições de vida individuais e coletivas.

Tomo por fio condutor as recomendações elaboradas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) para a proteção integral de crianças e adolescentes durante a pandemia da COVID-19, elaborada no dia 25 de março de 2020[1]. Com isso, penso que passamos por um período crucial para rediscutir os rumos que estamos tomando no campo dos direitos e das políticas para crianças, adolescentes e jovens, não somente para traçar medidas de prevenção e enfrentamento à disseminação do coronavírus, mas igualmente para discutir os impactos que a decretação de isolamento social tem trazido para as condições de vida e os direitos de crianças e adolescentes, além de um terceiro elemento, que trato simplesmente pela disputa do projeto de Estado e de sociedade que queremos e nos quais crianças e adolescentes devem ser, cada vez mais, cidadãos e cidadãs participes da construção e do exercício democrático de convivência.

Assim, farei a análise de algumas medidas contidas nas recomendações do CONANDA e que fomentam um debate mais aprofundado para compreender as formas de operacionalização e as implicações para os direitos, as políticas, os serviços e os sujeitos diretamente implicados nas recomendações propostas.

 

Destravar o Estado das amarras neoliberais para garantir investimentos emergenciais e continuados em prol dos direitos de crianças e adolescentes

As duas primeiras recomendações do CONANDA são proposições que transcendem o campo de atendimento às crianças e aos adolescentes, e alojam-se diretamente na necessidade de refundar as referências ideológicas que organizam o Estado brasileiro, para que, de fato, venha a garantir melhores condições de vida ao povo. O texto das duas medidas é o seguinte:

A implementação de medidas emergenciais no âmbito econômico e social que, além de mitigar a transmissão comunitária do COVID-19, também garantam o direito à vida e à saúde da criança e do adolescente, expressos no artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio da aplicação dos recursos orçamentários necessários, sendo necessária inclusive a suspensão ou revogação da Emenda Constitucional 95/2016.

Que as ações em relação às crianças e adolescentes reconheça que a garantia de seus direitos depende também da proteção dos direitos deseus cuidadores primários, vez que o ambiente doméstico deve ser seguro, tanto na perspectiva da saúde física quanto emocional. Famílias em condição de vulnerabilidade social devem receber apoio governamental, com medidas de subsídio financeiro e serviços públicos, que incluem:

  1. A instauração de um plano de renda básica universal, garantindo que todos as famílias brasileiras estejam amparadas pelas políticas de assistência social de garantia do mínimo necessário para sobrevivência e convívio social, assim como condições de saúde e educação;
  2. A isenção ou o desconto em contas de água, gás e eletricidade para as famílias em situação de risco e vulnerabilidade social em todo o território nacional, com recomendação adicional de que em nenhuma hipótese, incluindo o inadimplemento, esses serviços deixem de ser oferecidos;
  3. Evitar demissões e manter os salários dos trabalhadores domésticos e informais que se ocupam do cuidado de crianças e adolescentes; para que possam garantir condições dignas de alimentação, moradia e preservação da saúde das crianças e adolescentes sob seu cuidado;
  4. A distribuição de alimentos e produtos de higiene, como sabonetes e álcool em gel, principalmente para população mais vulneráveis (CONANDA, 2020, p. 1).

A primeira recomendação apresenta de maneira ampla a necessidade de estruturação de medidas emergências voltadas à mitigação da transmissão comunitária da COVID-19 e à garantia do direito à saúde de crianças e adolescentes, isto respeitando a prioridade absoluta dos direitos deste segmento da população.

Mas o que sobressai é a parte final em que se aponta a necessidade de revogar a Emenda Constitucional (EC) n. 95/2016 que implantou o chamado teto do gasto no orçamento público da União, não possibilitando a ampliação de investimentos que ultrapassem o teto inflacionário do ano anterior, e para os próximos 20 anos. Na prática, isto gerou uma profunda limitação à capacidade do Estado de assegurar o equilíbrio entre o investimento público e as demandas das áreas sociais (saúde, educação, assistência social, etc.), com reflexos diretos nas medidas voltadas para crianças e adolescentes.  

Por isso, implementação de medidas emergenciais no âmbito econômico e social que, além de mitigar a transmissão comunitária da COVID-19, também garantam o direito à vida e à saúde da criança e do adolescente, expressos no artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio da aplicação dos recursos orçamentários necessários, torna imprescindível a suspensão ou revogação da EC 95/2016, pois isto significa assegurar investimentos que transcendam o teto inflacionário e estejam relacionados as reais necessidades e demandas dos sujeitos, levando-se em conta a repercussão financeira da prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes, conforme o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8.069/1990).

Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em alusão aos 30 anos da Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas, e de sua implantação no Brasil, aponta, com base em dados da Fundação Abrinq, que entre 2014 e 2016 houve uma redução dos repasses governamentais para o chamado Orçamento da Criança (OCA), um instrumento de monitoramento dos recursos públicos destinados às políticas de atendimento às crianças e aos adolescentes. Segundo consta no relatório, “[e]ntre 2014 e 2016, o [Orçamento Criança] ‘senso crítico’ passou de 4,1% a 2,9%, enquanto a versão ampliada [do Orçamento Criança] caiu de 15,3% para 5,7%” (2019, p. 23)[2]. E, depois de 2016, o OCA, que é gerido pelo Congresso Nacional, foi desestruturado, e não é possível mais saber qual fatia do orçamento está sendo destinado ao público infantoadolescente, ainda que a percepção é de que seja quantidade menor do que a identificação em 2016.

Parte da reversão a este cenário de redução de investimentos sociais às pautas de crianças e adolescentes está na revogação da EC 95/2016. Uma outra parte, tão importante quanto, está na rediscussão da dívida pública da União, que a cada ano consome mais da metade do orçamento público, a maior parte sendo pagamento de juros para rolagem da dívida junto à grandes bancos e investidores/investidoras internacionais. Uma auditoria da dívida pública é um clamor que em tempos pós-COVID-2019 seria imprescindível obter um amplo apoio social, até para que possamos saber exatamente o que, para quem e em que termos estão sendo pagas estas dívidas com recurso público, e qual a faxina necessária para reduzir o impacto no orçamento público e liberar investimentos para áreas prioritárias à população, em especial para crianças e adolescentes.

Além disso, é preciso, ao longo do período da pandemia da COVID-19, reforçar a importância do cumprimento da prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes, seja em termos de atendimento médico-hospitalar, seja na alocação de recursos públicos para atendimento de suas demandas emergências e permanentes. Isto envolve rediscutir a posição que crianças e adolescentes possuem nas prioridades governamentais dos diferentes entes públicos, e de que forma deve ser materializada a priorização às suas demandas e necessidades, respeitando a garantia da participação de crianças e adolescentes nos espaços de decisão e a adequação das medidas às pluralidades de concepções socioculturais e identitárias de infâncias e adolescências.  

A recomendação n. 2 do documento do CONANDA apresenta uma questão óbvia, mas, por vezes, esquecida ou negligenciada pelos gestores públicos: a de que crianças e adolescentes são partes de contextos familiares e comunitários de vida, e que a vulnerabilização social de suas famílias e comunidades implica consequências ainda mais graves de afetação ao desenvolvimento humano infantoadolescente.

Para tanto propõe, na alínea “a”, a implantação de um “plano de renda básica universal”, o que, no Brasil, já existe desde 2004! Trata-se da Lei no. 10.835/2004, de autoria do então senador Eduardo Suplicy (PT/SP), e que propõe a instituição da renda básica de cidadania que consiste, conforme o seu artigo 1º, “no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.”[3] Mas que nunca foi implantado!

Porém, e se tivesse sido implantado? A pesquisa de Rozane Bezerra de Siqueira e José Ricardo Bezerra Nogueira projetou justamente isso, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua de 2017, e com a definição da renda básica fixa (paga a cada indivíduo) no valor de R$ 406,00 por mês, o que correspondia, em 2017, ao “equivalente à linha da pobreza proposta pelo Banco Mundial para países de renda média alta (US$ 5,50 por dia).”[4] Nesta projeção, o custo líquido da renda básica seria estimado em 11,5% do Produto Interno Bruto (PIB) – uma proporção que provavelmente a auditoria da dívida pública da União viria a liberar para este e outros custeios – ou 758 bilhões de reais. Em todo caso, o aspecto mais substancial é que “[a] proposta simulada também provocaria uma redução substancial na desigualdade de renda. Medida pelo coeficiente de Gini (que varia entre 0 e 1), a redução seria de mais de um quarto, com o Gini indo de 0,51 para 0,38. Quase todos os indivíduos entre os 50% mais pobres da população teria, a renda familiar aumentada, sendo que os ganhos mais significativos se concentrariam na base da distribuição de renda.”

Ou seja, com a renda básica universal teríamos uma diminuição da desigualdade social e da concentração da renda existente ainda hoje no Brasil, o que certamente teria um peso positivo no enfrentamento à disseminação da COVID-19, sobretudo para servir como um subsídio financeiro de suporte às famílias no período de isolamento social. É bom não confundir a renda básica cidadã/universal com o Bolsa Família ou com a medida emergencial do governo federal de distribuir 600 reais para os trabalhadores e as trabalhadoras informais, em três parcelas, nos meses de abril e maio. A renda básica cidadã/universal significa o repasse de recursos públicos para cada cidadão e cidadã deste país, como uma medida de recurso mínimo de apoio estatal, ao contrário das outras duas medidas referidas anteriormente que são repasses públicos para determinada parcela da população, com base em critérios de vulnerabilidade social e tipo de trabalho.

As outras três medidas contidas nas alíneas “b”, “c” e “d” da recomendação n. 2 são, sem dúvida, de substancial importância para o período excepcional que vivemos com a pandemia da COVID-19, e que reforça a importância de compreender as crianças e os adolescentes como sujeitos imersos em contextos sociais e familiares que condicionam a capacidade de garantia de seus direitos e qualidade de vida. Mas a implantação da renda básica universal é a resposta mínima que o governo federal poderia assegurar à população, e que traria contribuições positivas para as crianças e os adolescentes, hoje e no futuro.

 

Enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes em tempos de isolamento social e precarização das condições de vida

A medida adotada no Brasil e no mundo para frear a velocidade de disseminação da COVID-19, isto é, o isolamento social, possui dois efeitos nefastos para crianças e adolescentes. Por certo, estes efeitos não diminuem a importância da medida em si, mas colocam algumas questões que precisam ser sopesadas pela rede de proteção.

A primeira delas é que o isolamento social leva a ampliação do tempo de convívio com a família e permanência na unidade doméstica. Isto não seria, em si, um problema, se não fosse a constatação que é justamente no âmbito da família que ocorrem a maior parte das violências contra crianças e adolescentes, especialmente no recorte de gênero. No último balanço semestral do Disque 100, relativo ao primeiro semestre de 2019, no universo de 42.585 denúncias recebidas de violações dos direitos de crianças e adolescentes, “grande parte das violações contra crianças e adolescentes são cometidos dentro de casa, pelo padrasto ou madrasta (39,46%), pelo pai (18,45%) ou pela avó da vítima (3,43%).”[5] Indiquei em outro artigo, com base nos dados do Disque 100 de 2018, que “[o]s principais tipos de violências denunciadas são negligencia, violência psicológica, violência física e violência sexual, com um perfil de vítimas predominantemente do gênero feminino (48%), na faixa etária de 4 a 11 anos (41%) e da cor parda (34%), sendo que neste último quesito o relatório indica que ‘meninas negras (pretas e pardas) com idades entre 4 e 17 anos são as vítimas mais frequentes, havendo, ainda, uma parcela considerável de vítimas com idades entre 0 e 3 anos’.”[6]

Portanto, a questão colocada é de como evitar ou minimizar a vulnerabilização que determinadas crianças e adolescentes estão suscetíveis de sofrer com o aumento do tempo de permanência em casa e no convívio familiar devido o isolamento social, em especial as meninas e mulheres? Para responder esta questão o CONANDA propõe, na recomendação n. 8, as seguintes medidas:

Considerando que crianças, adolescentes e adultos estão fora de suas atividades habituais [escola/trabalho], com convivência contínua em uma situação de crise, incertezas e estresse em função do isolamento social e das restrições materiais e que este cenário pode ampliar a vulnerabilidade de crianças e adolescentes a situações de violência no ambiente doméstico/familiar, Conselhos Tutelares e Serviços de Saúde e demais serviços da rede de proteção devem implementar ações para enfrentar o aumento dos casos de violência contra crianças e adolescentes e para isso é necessário:

  1. Promover a divulgação dos canais de denúncia nos meios de comunicação, uma vez que vários pontos da rede de proteção não estarão com contato permanente com as crianças/adolescentes;
  2. Dar atenção especial às famílias com histórico de violência contra crianças, crianças em situação de rua, e crianças em casas com cuidadores/familiares usuários de álcool e outras drogas, monitorando as situações já conhecidas e compartilhando informações sobre os casos para garantir o acompanhamento de forma mais efetiva;
  3. Implementar estratégias para minimizar o surgimento de novas situações no contexto de crise/estresse e conflitos que surgirão em decorrência do isolamento domiciliar;
  4. Facilitar o contato das crianças com a rede de proteção para pedido de ajuda e, no caso dos Profissionais da Estratégia de Saúde da Família (ESF) que se mantiverem em atividade de visitação domiciliar e que cuidem de famílias com crianças, estes devem estar atentos a essa questão e sempre tentar manter contato direto com a criança em busca de sinais indicativos de situações de violência, os quais devem ser informados à gerência da unidade para devidas providências;
  5. Incluir entre as ações das equipes da ESF atividades e informações sobre estratégias e práticas parentais positivas, com vistas a diminuir eventuais fontes de conflito que possam gerar situações de violência contra crianças e adolescentes no ambiente doméstico (CONANDA, 2020, p. 1-2).

Dentre as recomendações definidas, destaco a que procura reforçar a importância dos profissionais de saúde, em especial os que transitam pelos lares e comunidades, isto é, os profissionais da ESF, sobretudo os Agentes Comunitários de Saúde, e que tem uma posição estratégica fundamental para a identificação de casos de violência, assim como de prestação de informações sobre práticas parentais positivas para qualificar os/as indivíduos na responsabilidade do cuidado e da afetividade em tempos de pandemia, incluindo conteúdos que abordem relações de gênero e diversidade sexual.

Mas se crianças e adolescentes têm maior propensão, em geral, de sofrer violações dos seus direitos quando na estadia em âmbito doméstico-familiar, o mesmo não ocorre com os grupos internos que possuem recorte de raça, isto é, os adolescentes e jovens negros. O homicídio, ou melhor, o genocídio de jovens negros por ações policiais e em decorrência da periculosidade social existente em seus bairros de moradia, é o aspecto mais gritante de um cenário de guerra social impulsionado pela adoção da política de guerra as drogas pelos governos federais de Lula e Dilma, e depois mantidas por Temer e até mesmo reforçadas no governo Bolsonaro, com apoio da banca da bala no Congresso.

No entanto, este é um aspecto que não possui recomendações específicas do CONANDA para o período de pandemia da COVID-19. No documento, constam apenas recomendações para o sistema socioeducativo (recomendação n. 13), mas nenhuma diretriz para o enfrentamento da mortalidade de adolescentes e jovens negros em tempos de coronavírus e, por certo, para depois dele. Tampouco há definições de investimento para programas relacionados ao atendimento às vítimas ou testemunhas de violência, como o Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçados de Morte (PPCAM), ou uma possível articulação com as medidas contidas no Plano Juventude Viva, ligado à Secretaria Nacional de Juventude.

 

Crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais

A adoção de medidas específicas para proteção de crianças e adolescentes oriundos de povos e comunidades tradicionais recebe atenção no documento do CONANDA. Dois elementos atuam de maneira mais drástica neste ponto para potencializar a disseminação da COVID-19: o primeiro, da insegurança territorial com a invasão de agentes estranhos aos povos e comunidades tradicionais para a exploração ilegal dos recursos naturais de seus territórios, tal como ocorre com povos indígenas, comunidades quilombolas, entre outros grupos étnicos, tornando-se um celeiro para a proliferação da pandemia, pois tais agentes são potenciais portadores e disseminadores do coronavírus; o segundo, dos modos de vida tradicionais de muitos destes grupos organizados em famílias extensas e comunidades de intensa vida coletiva, o que acaba sendo um elemento social catalizador da disseminação da doença, além da baixa imunidade à determinados tipos de doenças em muitos destes grupos, com destaque para suas crianças e adolescentes.

Por isso, o que as recomendações do CONANDA destacam é a necessidade de levar a sério a Resolução n. 181/2016 do próprio órgão de controle social, voltada à (re)definição do atendimento com bases interculturais para melhor tratamento de crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais. Mas isto, somente, não daria conta do desafio colocado no presente momento de pandemia. Assim, há a necessidade de construção de ferramentas de planejamento – ou seja, de planos – que definam: (1) o modo como será feita a comunicação das informações pertinentes a respeito da situação vivenciada, em linguagens culturalmente acessíveis, inclusive para as crianças e adolescentes; (2) estratégias de intervenção com foco no atendimento intercultural e que sejam estruturadas assegurando a participação de representantes de povos e comunidades tradicionais nos diferentes níveis de gestão pública (municipal, estadual e federal), o que deveria abarcar também o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19[7], criado em nível federal, além de outros existentes no Brasil.    

No dia 13 de abril de 2020, o governo federal, por intermédio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, informou das medidas contidas no Plano de Contingência para Pessoas Vulneráveis, e que abarcariam investimentos da ordem de 4,7 bilhões de reais para a proteção e cuidado de pessoas oriundas de povos e comunidades tradicionais. A ministra Damares Alves fez questão de frisar em sua fala que:

“No Brasil temos mais de 20 grupos classificados como povos tradicionais. O desafio no trabalho de prevenção e conscientização é de respeitar os costumes e especificidades dos povos. Ontem estive em Roraima para conversar com agentes da Funai e da Sesai e estudar todas as situações que envolvem os povos tradicionais. Estamos trabalhando com toda a delicadeza que requer o segmento (...)”[8]  

Nisso, há dois problemas identificados na fala da ministra sobre a forma como o governo federal busca implementar as medidas e os investimentos definidos. A primeira, é supor que existam 20 povos e comunidades tradicionais, quando se sabe da existência de, pelo menos, 28 categorias étnicas, as quais possuem assentos nominais no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, regulamentado pelo Decreto n. 8.750, de 9 de maio de 2016[9], além de outras categorias étnicas que ainda lutam pelo reconhecimento do Estado e da sociedade brasileira.

Por isso, um dos desafios para a implementação das medidas definidas nas recomendações do CONANDA, e naquilo que o governo se propõe a fazer no Plano de Contingência, é conseguir abarcar a diversidade étnico-cultural existente no Brasil segundo a autoidentificação dos próprios povos e comunidades tradicionais, e respeitando seus direitos coletivos presentes em documentos como a Convenção no. 169 da Organização Internacional do Trabalho e o Decreto no. 6040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. 

Um outro aspecto problemático na fala da ministra é que ela realizou conversas com órgão indigenistas quando da visita à Roraima, mas esqueceu (ou não quis) dialogar diretamente com a organização representativa dos povos indígenas no referido estado, que é o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Isto demonstra que se está a estruturar medidas dentro do governo federal que, novamente, desconsideram a consulta prévia e a participação continuidade de povos e comunidades tradicionais para a definição de formas de intervenção estatal em assuntos que lhes interessam. E mais, com esta lógica de estruturação das medidas, é bem provável que algumas delas venham a trazer mais prejuízos aos membros dos grupos étnicos, em especial às suas crianças e adolescentes.

 

Considerações finais

Lendo o documento com as recomendações do CONANDA, é fácil se chegar à conclusão de que todos os direitos de crianças e adolescentes estão sendo impactados com a emergência da pandemia do COVID-19 no Brasil, e no mundo. Mas nos resta aproveitar este momento excepcional para refletir sobre quais medidas devem ser adotadas para evitar o contágio por crianças e adolescentes, assim como ir projetando os caminhos que queremos seguir num futuro próximo, em que as ideias de igualdade, diferença e democracia sejam os horizontes de construção de dias melhores.

 

Notas e Referências

[1] Cf. CONANDA. Recomendações do CONANDA para a proteção integral a crianças e adolescentes durante a COVID-19. Brasília: CONANDA, 2020. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/recomendacoes_conanda_covid19_25032020.pdf

[2] Cf. UNICEF. 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: avanços e desafios para meninas e meninos no Brasil. São Paulo: UNICEF, 2019. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/unicef-lanca-relatorio-sobre-os-30-anos-da-convencao-sobre-os-direitos-da-crianca

[3] Cf. BRASIL. Lei no. 10.835, de 8 de janeiro de 2004. Brasília: Casa Civil, 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.835.htm

[4] Cf. SIQUEIRA, Rozane Bezerra de; NOGUEIRA, José Ricardo Bezerra. Porta está aberta para a Renda Básica Universal. Em: Valor Econômico, 09 abr. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/04/09/artigo-rozane-bezerra-de-siqueira-e-jose-ricardo-bezerra-nogueira-porta-esta-aberta-para-a-renda-basica-universal.ghtml

[5] Cf. MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. Disque 100 registra aumento de 19,12% no número de denuncias. Brasília: MMFDH, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/todas-as-noticias/2019/novembro/disque-100-registra-aumento-de-19-12-no-numero-de-denuncias

[6] Cf. OLIVEIRA, Assis da Costa. Por proteção integral, diversidade e enfrentamento às viol6encias: rumo à 11º Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Em: Empório do Direito, 03 jan. 2019. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/por-protecao-integral-diversidade-e-enfrentamento-as-violencias-rumo-a-11-conferencia-nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-1

[7] Sobre isto, é pertinente a crítica de Dinamam Tuxá, liderança indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em que aponta a dificuldade atual do “movimento indígena em participar dos debates sobre a pandemia da covid-19 no gabinete de crise do governo federal e a apontou a indiferença dos governos estaduais às medidas solicitadas e protocoladas pela APIB. Apenas dois governos responderam confirmando o recebimento aos ofícios enviados pela Apib – de São Paulo e do Rio Grande do Norte -, mas sem nenhuma sinalização efetiva se vão atender as recomendações.” Cf. FARIAS, Elaíze; HAMDAN, Ana Amélia. “Se coronavírus entrar nas aldeias indígenas ocorrerá genocídio em massa”, diz líder indígena Dinamam Tuxá. Em: Amazônia Real, 14 abr. 2020. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/se-coronavirus-entrar-nas-aldeias-indigenas-ocorrera-genocidio-em-massa-diz-lider-indigena-dinamam-tuxa/

[8] Cf. MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. Governo Federal destina R$ 4,7 bilhões para proteção de povos e comunidades tradicionais durante pandemia. Brasília: MMFDH, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/abril/governo-federal-destina-r-4-7-bilhoes-para-protecao-de-povos-e-comunidades-tradicionais-durante-pandemia

[9] Sobre isso, conferir, em especial, o artigo 4º, parágrafo 2º, do referido Decreto, que contém a listagem das 28 categorias étnicas com participação garantida no Conselho. Cf. BRASIL. Decreto no. 8.750, de 9 de maio de 2016. Brasília: Casa Civil, 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8750.htm

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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