A 11º Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente já está em fase de operacionalização no território nacional. Desde a publicação da Resolução nº. 202/2017, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) regulamentou os procedimentos e prazos necessários para que a sociedade, os municípios, os estados, o Distrito Federal e o governo federal possam assegurar condições efetivas para a realização deste espaço que representa o ápice da democracia participativa no controle social sobre os direitos das crianças e dos adolescentes.
Cada novo ciclo de Conferência Nacional sobre a temática dos direitos de crianças e adolescentes representa uma oportunidade de mobilização da sociedade, das organizações sociais, das famílias, dos agentes estatais, dos meios de comunicação, empresas e, sobretudo, de crianças e adolescentes, para discutir, avaliar e planejar as políticas e os serviços direcionados a este público. Este horizonte participativo é materializado nas conferências por meio do engajamento dos participantes no trabalho de elaboração e disputa por proposições que depois se materializarão em orientações inseridas em resoluções e em moções aprovadas em cada evento. Ambas com peso de exigência política de cumprimento pelos agentes responsáveis pela garantia da proteção integral de crianças e adolescentes, mas que devem ter a incidência e o monitoramento do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescentes (CDCA), para efetivo sucesso.
Neste ciclo em andamento da 11º Conferência Nacional, o lema proposto pelo CONANDA reúne três questões centrais para o olhar prioritário aos participantes das conferências nas diferentes instancias organizativas propostas: proteção integral, diversidade e enfrentamento às violências. É sobre estas três temáticas que gostaria de elaborar reflexões e proposições para servirem de subsídio às discussões da rede de proteção nas conferências e para além delas, pensando tais questões como conteúdos estruturais para o avanço do cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Proteção integral: memória, estratégias e prioridade absoluta
Em 2018, a Doutrina da Proteção Integral completou 30 anos de existência no Brasil. Inaugurada pelo artigo 227[2] da Constituição Federal de 1988, sua conquista decorreu de muita mobilização social, e isto não pode ser esquecido. O texto do artigo 227 foi proposto por iniciativa popular da campanha “Criança: Prioridade Nacional”, que conseguiu o apoio de mais de 2 milhões de pessoas, entregando a proposta textual aos congressistas que conduziam a Assembleia Constituinte. Portanto, este direito é fruto da participação social e da articulação entre diferentes segmentos da sociedade em prol da mudança de paradigma jurídico de tratamento de crianças e adolescentes.
Mas só resgatar o passado não é suficiente. Devemos pensar também em como a proteção integral está se materializando na atualidade? Para isso, consideremos o fato de que a Doutrina da Proteção Integral se originou para superar a perspectiva predominante, anteriormente, da Doutrina da Situação Irregular, vigente a partir do Código de Menores de 1979, mas cuja ideologia fundante da menoridade perpassa todo o período histórico do século XX, no Brasil e no mundo. A menoridade foi, e ainda é, um construto social de representação dos sujeitos em situação de abandono e marginalidade, relacionado ao recorte socioeconômico, os quais desenvolveriam uma condição de risco social que ameaçaria a toda a população e justificaria ações repressivas e assistencialistas do Estado para correção à alegada desproteção material e moral. Em resumo, a menoridade materializa, em termos simbólicos e práticos, a naturalização do tratamento desigual e discriminatório às crianças e aos adolescentes, muitas vezes sob a base jurídica da “proteção” de direitos.
O que surgiu em 1988, com o artigo 227 da Constituição Federal, foi o intento de confrontação formal deste paradigma, calcado na ideia de reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento, aos quais deve ser assegurado a integralidade dos direitos humanos por parte de todos os segmentos sociais e estatais, sem exceção. Mas sabemos, passados 30 anos de vigência da proteção integral, que isto ainda está longe de ser assim. E, portanto, mais do que focar a atenção sobre o discurso jurídico da proteção integral, devemos problematizar quem são os “novos” – ainda que, por vezes, já “velhos” na historicidade da condição que apresentam – menores de nossa sociedade? E quais as “novas” formas de produção e naturalização da menoridade?
Seriam as crianças e os adolescentes migrantes da Venezuela? Excluídas do acesso à educação e assistência pelo modo como sua condição de estrangeiridade produz barreiras e discursos de exclusão do acesso à direitos. Ou os adolescentes em regime de privação de liberdade? Que continuam submetidos a condições desumanas de regimes de internação, quase sempre semelhantes (ou até piores) às prisões dos adultos. E também as crianças e os adolescentes LGBTI, transgêneros, negros, indígenas, ciganos, deficientes, de religiões de matriz africana, mulheres, entre outras, cujas marcas identitárias da diversidade são inferiorizadas pela sociedade para gerar adversidades e discriminações, além de formas inadequadas de atendimento estatal.
Por outro lado, problematizar a proteção integral aos 30 anos de sua existência no Brasil, também nos leva a discutir os sujeitos responsáveis pelo seu cumprimento. E como pensar a expansão deles e a melhor vinculação com a proteção destes direitos. Sabemos, por conta do prescrito na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei n°. 8.069/1990), que a família, a comunidade, a sociedade e o Estado são os sujeitos por excelência desta proteção. Porém, quem mais precisa ser problematizado como parte desta responsabilidade compartilhada?
Indicarei dois, mas certamente a lista é muito maior. Primeiro, os meios de comunicação social, e particularmente as redes sociais digitais, cujo poder de difusão de informações e de interatividade para as crianças e os adolescentes é proporcionalmente igual ao dos riscos para com seus direitos. Por isso, as orientações metodológicas da ANDI – Comunicação e Direitos[3] para cobertura jornalística sobre os direitos das crianças e dos adolescentes, especialmente nos temas de pessoa com deficiência, violência sexual e ato infracional, e as medidas para uso seguro das redes sociais digitais difundidas pelo portal SaferNet Brasil[4], particularmente para prevenção e denúncias às modalidades virtuais de exploração sexual, são referenciais que devem ser apropriados pela rede de proteção, sobretudo às escolas, mas também são aportes que evidenciam a importância de pensar a adequação das práticas e dos usos dos meios de comunicação para prevenção de violação aos direitos de crianças e adolescentes.
Em segundo, as empresas e os bancos, agentes centrais do setor produtivo e financeiro que desenvolvem ou investem em obras e empreendimentos em todo o país, e que precisam, cada vez mais, pensar seus princípios e suas lógicas de fazer negócios tendo por horizonte ético-jurídico a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes. Ou melhor, a incorporação da proteção e do respeito a estes direitos como condicionalidade ao modo como os negócios vão se materializar. Nisso, a Resolução n°. 215[5], de 22 de novembro de 2018, do CONANDA, procura avançar na estruturação das competências que empresas e bancos precisam assumir para vincularem-se como partes da rede de proteção dos direitos de crianças e adolescentes.
Em suma, proponho que as Conferências problematizem os novos (velhos) menores da sociedade e os novos (velhos) agentes a serem responsabilizados, como parte do exercício de avançar na construção da proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes. Mas, também, tenham uma visão estratégica sobre o potencial que as Conferências possuem para gerar subsídios para outros espaços estratégicos de materialização das políticas, serviços e recursos às pautas de crianças e adolescentes.
Primeiro, de como as proposições formuladas em cada Conferência podem servir de subsídio para a elaboração e/ou monitoramento do Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes[6]? Este Plano, implantado pelo CONANDA em 2011, constitui-se no principal planejamento intersetorial dos direitos de crianças e adolescentes, para materialização ao longo de dez anos. É um plano guarda-chuva ou “plano dos planos”, pois se, por um lado, procura tornar o planejamento intersetorial do cumprimento destes direitos uma política de estado que tenha continuidade em distintas gestões governamentais, por outro também serve de eixo de referência para a produção de outros planos intersetoriais de temas específicos de crianças e adolescentes. Porém, ainda não foi adotado por muitas redes de proteção municipais e estaduais do Brasil, o que torna o momento das Conferência uma oportunidade para canalizar as proposições formuladas para serem um dos subsídios para a construção do Plano Decenal.
Outra questão é de como fazer com que as proposições elaboradas nas Conferências tenham incidência política no orçamento público, ou seja, no Plano Plurianual (PPA) e na Lei Orçamentária Anual (LOA)? Chamo atenção ao cenário dos estados, Distrito Federal e governo federal, pois no ano de 2019 abre-se nova oportunidade para elaboração do PPA destes entes estatais, que organizará as prioridades de investimento público pelos próximos quatro anos (2020-2024). Logo, é fundamental que o controle social – e a rede de proteção como um todo – desenvolva estratégias para a incidência político-orçamentária das proposições elaboradas nas Conferências, assim como nos planos intersetoriais e em outros documentos jurídicos.
Isto, relembro, não é nada mais do que dar materialidade à concepção de proteção integral com prioridade absoluta de cumprimento destes direitos, normativamente disposto no artigo 4°, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente, com os seguintes textos: “[a] garantia de prioridade compreende: [...] c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.”[7] Portanto, o que se espera é que a mobilização e as proposições das Conferências reoxigenem a tarefa (árdua, mas necessária) de priorização de crianças e adolescentes nas políticas públicas e no orçamento público.
Diversidade: reconhecimento, atendimento e agenda
Costumo dizer, quando trabalho o tema da pluralidade cultural do ser criança e adolescente, que a diversidade é mais ampla do que nossa ideia de diversidade. Para isso, trato logo de apresentar as 28 categorias étnicas que são oficialmente reconhecidas pelo Estado brasileiro e possuem vaga garantida no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, tal como dispõe o artigo 4°, Decreto 8750/2016: “[p]ovos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades de terreiro/povos e comunidades de matriz africana, povos ciganos, pescadores artesanais, extrativistas, extrativistas costeiros e marinhos, caiçaras, faxinalenses, benzedeiros, ilhéus, raizeiros, geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, veredeiros, apanhadores de flores sempre vivas, pantaneiros, morroquianos, povo pomerano, catadores de mangaba, quebradeiras de coco babaçu, retireiros do Araguaia, comunidades de fundos e fechos de pasto, ribeirinhos, cipozeiros, andirobeiros, caboclos.”[8]
Quantos destes povos e comunidades você sabia que existiam? E quantos você nem tinha ideia da existência? O espanto e a inquietação que gera a presença da diversidade serve-nos para lembrar, constantemente, que nossas concepções sobre estes sujeitos e grupos são sempre limitadas ao nosso modo cultural, histórico, científico e moral de percebe-los. Mas isto não é o bastante, pois o que historicamente aconteceu no campo dos direitos das crianças e dos adolescentes – e nos serviços que materializam esses direitos – não está desconectado do que ocorreu na sociedade como um todo, em que a presença da diversidade humana via de regra foi classificada como anormal, inferior, invisível e, portanto, menos humano do que outros sujeitos com marcadores ditos ideais, por isso mesmo, assumidos como universais ou modelos de referência.
Portanto, a diversidade historicamente foi tratada como uma condição de desigualdade, pois a regra na sociedade e no Estado foi o estabelecimento de padrões normativos, morais e culturais do que seria o ideal de humanidade – e, nesta de infância e adolescência – associada a modos discriminatórios de interpretar os sujeitos da diversidade. Porém, não é culpa de os sujeitos serem quem são, mas da sociedade que não sabe respeitá-los em suas condições humanas plurais. Ou como aborda o artigo 1°, inciso II, da Resolução Conjunta n°. 01/2018 do CONANDA e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE): “[r]econhecer que as barreiras para o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente com deficiência não estão no indivíduo e sim na sociedade, na interação com o meio, visto que são as barreiras que impedem o pleno e efetivo exercício dos seus direitos.”[9]
As barreiras socialmente estabelecidas para impedir os sujeitos de gozar seus direitos foram naturalizadas, é dizer, tornadas de senso comum, e até pouco tempo atrás não podiam ser questionadas, inclusive judicialmente. Estas barreiras têm nomes hoje bem conhecidos: racismo, patriarcalismo, LGBTfobia, adultocentrismo, xenofobia, preconceito linguístico, discriminação à pessoa com deficiência, intolerância religiosa, entre outros, tualmente reunidos na ideia de crimes de ódio, pois cometidos devido o pertencimento identitário da vítima a determinado grupo social. Todos eles atuam, associados ou não, no campo dos direitos das crianças e dos adolescentes para fazer valer os modelos ideais de infância e adolescência, e a maior suscetibilidade à determinados tipos de violências.
Além disso, Clarice Cohn (2013)[10] indica que os serviços de atendimento às crianças e aos adolescentes trabalham sempre com concepções de infância que embasam o modo como se estrutura a atuação sobre as crianças, tendo por fim dar validade e constituição a determinada infância, esta que pressupõe a atuação e deve ser reiterada, ao final. O bom e o mau aluno, a criança normal e anormal para o campo da saúde, a pessoa vulnerável para assistência social e o adolescente infrator, para a Justiça, são categorias técnico-jurídicas que escondem propostas específicas de conceber a infância e a adolescência, as quais as crianças e os adolescentes reagem de alguma forma, seja incorporando-as, expandindo-as ou negando-as[11].
Mas a diversidade do ser criança e adolescente resiste e reexiste apesar das condições adversas em que estão inseridas. Reconhecer esta pluralidade significa, num primeiro momento, compreender que existem múltiplas formas identitárias e subjetivas de conceber e vivenciar a infância e a adolescência, por isso mesmo dito no plural de infâncias e adolescências. Esta diversidade está ligada aos marcadores de gênero, orientação sexual, raça, etnicidade, pessoa com deficiência, religião, opção política, classe social, nacionalidade, entre outros elementos. E mais, muitas vezes estes marcadores estão interseccionados, ou seja, interligados dentro de uma mesma pessoa ou grupo, como os adolescentes homens negros de classes populares, as crianças indígenas da Venezuela e as adolescentes transgêneros e bissexuais. Enfim, a interseccionalidade nos lembra, sempre, que os sujeitos são complexos em suas constituições identitárias e subjetivas, e que as diversidades atuam de maneira associada para nos representar as realidades sociais das crianças e dos adolescentes.
Mas só reconhecer as identidades sociais diversidades não é o bastante. Isto porque as crianças e os adolescentes inseridos nestas diversidades também são sujeitos do direito à diferença, que se materializa normativamente por meio de variados documentos jurídicos de âmbito nacional e internacional, mas que têm por finalidade obrigar a adequação dos serviços e do tratamento da sociedade. Esta adequação possui muitos nomes: interculturalidade; atendimento humanizado; igualdade de gênero; práticas inclusivas; relações antirracistas; entre outros. O preceito comum que perpassa todas estas nomenclaturas da adequação do atendimento/tratamento é o de fazer com que a sociedade, o Estado e as pessoas revejam suas posturas e concepções discriminatórias, inclusive aquelas normativamente estabelecidas, por meio do respeito ao direito à diferença assegurado aos diferentes grupos sociais da diversidade.
Além disso, é importante não produzir discursos que tratem tais crianças e adolescentes apenas como vítimas das violências, discriminações e desigualdades construídas em decorrência de seus marcadores sociais, mas sim como sujeitos de direitos com protagonismo individual e coletivo para atuar na resistência e na reexistência, inclusive em relação aos direitos de crianças e adolescentes.
Tampouco se pode encapsular a diversidade num padrão de inclusão social que homogeneíza ou estanca as identidades. Não existe uma única infância para os povos indígenas e povos ciganos, simplesmente porque eles são extremamente diversos internamente. Tampouco existe um único modo de ser jovem negro, LGBTI, mulher, entre outros marcadores. A autonomia e a dinamicidade da constituição identitária são a regra, e isto implica em controlar o modo como concebemos a diversidade, pois, reitero, ela insistentemente nos indica ser mais diversa do que nossa concepção sobre ela.
Para tanto, proponho uma agenda de trabalho pró-diversidade, que pode servir de subsídio para debate nas Conferências, e que consistiria em cinco elementos que me parecem centrais para pensar a adequação dos serviços para melhor atendimento à diversidade das concepções e vivências das infâncias e das adolescências: (1) estabelecer capacitação continuada aos agentes da rede de proteção; (2) inclusão de temas da diversidade no currículo universitário das carreiras profissionais; (3) melhoria das formas de cadastro e diagnóstico dos sujeitos atendidos para evitar a omissão ou negligência com o reconhecimento de suas identidades; (4) conceber fluxos de atendimento que incorporem o direito à diferença na moldagem do atendimento; (5) participação dos sujeitos e grupos da diversidade nos conselhos setoriais, em especial nos conselhos de direitos da criança e do adolescente, tendo por referência as recomendações contidas na Resolução n°. 214/2018 do CONANDA, formulada para melhorar a participação de crianças, adolescentes e demais representações de povos e comunidades tradicionais no controle social dos direitos de crianças e adolescentes[12].
Enfrentamento às violências: fatores, índices sociais e proteção integral
As violências não existem e tampouco podem ser explicadas por si só, elas se estruturam a partir de fatores econômicos (desigualdades, exploração capitalista, pobreza, desemprego), sociais (discriminações, novas tecnologias, fronteiras sociais e nacionais), institucionais (apego ao punitivismo penal, impunidade, seletividade da criminalização), subjetivos (ódio, rancor, desprezo, etc.), entre outros fatores, que geram as condições para produção das violências em determinado lugar e período.
Entre estes aspectos, destaco, de início, a desigualdade social. Isto porque, segundo Oxfam Brasil (2018), a desigualdade socioeconômica tem aumentado nos últimos anos no Brasil, com um aumento, nos últimos quatro anos, da desigualdade na renda habitual do trabalho e com uma proporção de pobres nos mesmos níveis de 2012. E agrega o relatório da organização: “A população negra no Brasil tem sua proporção de renda em relação à população branca praticamente estagnada desde 2011, e a equiparação salarial entre mulheres e homens recuou entre 2016 e 2017 (Oxfam Brasil, 2018, p. 16)[13]. Além disso, a Oxfam Brasil (2018) sublinha que em 2016, “pela primeira vez desde 1990, o Brasil registrou alta na mortalidade infantil, que subiu de 13,3, em 2015, para 14 mortes por mil habitantes (4,9% a mais que o ano anterior)” (Idem). Este último dado, da mortalidade infantil, revela a estreita relação que a desigualdade socioeconômica possui com as violações aos direitos de crianças e adolescentes, cuja tendência atual, infelizmente, é de aprofundamento.
Por certo, as crianças e os adolescentes estão inseridas no grupo de pessoas mais suscetíveis a sofrer algum tipo de violência social, assim como mulheres, grupos LGBTI, negros, povos e comunidades tradicionais. Isto porque suas condições peculiares de desenvolvimento, aliado a uma sociedade que ainda os tratam como propriedades particulares ou sujeitos descartáveis, geram elementos propícios à ocorrência de violações de direitos com recorte preferencialmente geracional, em articulação ou não com outros marcadores sociais.
Dados do Disque Direitos Humanos (MDH, 2018)[14], relativo às denúncias de violações de direitos humanos de crianças e adolescentes registradas nos últimos sete anos (2011-2017), aponta uma tendência de queda continuada de denúncias a partir de 2012 até 2016. O pico máximo foi o ano de 2012, com 130.033 denúncias, decaindo, em 2016, a 76.171 casos denunciados. Porém, a tendência de 2017 foi de aumento do número de casos, para 84.049, e isto pode ter alguma relação com o aumento da desigualdade socioeconômica na sociedade brasileira.
Os principais tipos de violências denunciadas são negligencia, violência psicológica, violência física e violência sexual, com um perfil de vítimas predominantemente do gênero feminino (48%), na faixa etária de 4 a 11 anos (41%) e da cor parda (34%), sendo que neste último quesito o relatório indica que “meninas negras (pretas e pardas) com idades entre 4 e 17 anos são as vítimas mais frequentes, havendo, ainda, uma parcela considerável de vítimas com idades entre 0 e 3 anos” (MDH, 2018, p. 18). Além disso, os dados do Disque Direitos Humanos apontam que 57% dos casos denunciados tiveram a casa da própria vítima como local da violação, isto porque os principais agentes violadores são familiares de primeiro grau.
Reencontramos nestes dados a associação historicamente construída entre diversidade e adversidades, em que a compreensão sobre a violência contra as meninas não pode ser compreendida sem uma necessária articulação entre os marcadores de geração, gênero e raça. Isto, para pensar esta violência doméstica e familiar que se constitui como a predominante ou com maior quantitativo de denuncias, pois ela envolve uma objetificação de corpos e sujeitos que está relacionada aos valores patriarcais, adultocêntricos e racistas reproduzidos no âmbito da família e da sociedade.
Aos meninos, é na violência extrafamiliar, na rua, por assim dizer, onde se coloca o principal foco de afetação à violência. Segundo o Mapa da Violência 2015 – Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil (Waiselfisz, 2015)[15], o homicídio constitui-se na principal causa externa de mortalidade de 0 a 19 anos de ida, correspondendo a 13,9% dos casos identificados no ano de 2013, último de coleta de dados da pesquisa. Foram 10.520 crianças e adolescentes assassinadas, quase 29 por dia. Na faixa etária de 16 anos, 43,1% do total de mortes, e na faixa etária de 17 anos, 48,2%, portanto, praticamente a metade de todas as mortes em 2013, foram por homicídio. Um genocídio social que tem cor, gênero, local e classe social. Isto porque, como aponta Waiselfisz (2015), 93% dos mortos com 16 e 17 anos, em 2013, são do gênero masculino. A taxa de homicídio foi de 24,2 por 100 mil habitantes para adolescentes brancos, e de 66,3 por 100 mil habitantes para adolescentes negros, quase três vezes maior!
O Atlas da Violência de 2018 (IPEA e FBSP, 2018)[16] também aponta dados semelhantes, mostrando que a separação histórica dos estudos não gerou mudanças sociais consistentes no perfil da violência letal às crianças e aos adolescentes, agregando aqui, também, os jovens. Segundo IPEA e FBSP (2018), 33.590 jovens (faixa etária de 15 a 29 anos) foram assassinados, sendo 94,6% do gênero masculino[17], em 2016 – ano em que a coleta dos dados se baseou. Além disso, a pesquisa apontou que a taxa de homicídios de pessoas negras, no geral, “foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%)” (IPEA e FBSP, 2018, p. 40), reforçando a constatação da desigualdade racial em termos de violência letal no Brasil.
E as nefastas associações entre diversidade e violências não param por aí. O Brasil é o país que mais mata pessoas travestis e transexuais no mundo, segundo dados da ONG Transgender Europe[18]. Foram 868 mortos entre 2008 e 2016, e entre 2017 e 2018, 167 pessoas[19], com dados certamente subnotificados devido a dificuldade de identificação – sem uma correlação direta com esta pesquisa, que não possui recorte geracional, aponto que os dados do SIPIA Conselho Tutelar[20], para o período de 2009 até 2018, apontam a violação de direitos de 251 crianças e adolescentes trans masculino, e 250 trans feminino, num total de 501 pessoas, com a principal violação sendo no âmbito da “convivência familiar e comunitária”, como classificado pela base de dados.
Por outro lado, em relação às taxas de suicídio de jovens, se bem tem o Brasil uma das menores taxas, de 6,7 para cada 100 mil jovens, na América Latina, como aponta Rodríguez (2015)[21], já Verdum (2011)[22] nos lembra que para determinados jovens indígenas esta taxa é bem superior, principalmente daqueles membros de povos indígenas localizados no hoje estado do Mato Grosso do Sul, cuja taxa de suicídio, em 2011, chegou a 166 suicídios por grupo de 100 mil indígenas, mais de 34 vezes a média nacional à época. Por certo, as causas estruturais estão ligadas à inseguridade territorial e ao déficit de desenvolvimento étnico, o que tem gerado muito prejuízo à saúde mental dos jovens e dos povos indígenas como um todo.
Por tudo isso, torna-se obrigatória à compreensão de que as múltiplas formas de violência que afetam as crianças e aos adolescentes, além dos jovens, tem perfis hegemônicos de sujeitos afetados que estão inevitavelmente ligados à determinados grupos da diversidade do ser criança e adolescentes. Isto quer dizer, também, que é preciso fazer a leitura das violências que afetam crianças e adolescentes em associação com a destes grupos da diversidade, pois são violências que afetam determinadas coletividades, nas quais as crianças e os adolescentes estão inseridas. E devem ser combatidas tendo em vista o atendimento as demandas destas coletividades, dentro das quais é possível haver necessidades específicas com recorte geracional.
Mas é preciso fazer uma leitura destas violências com base nas realidades sociais de cada localidade, em termos de municípios, estado, Distrito Federal e país. Por isso, a busca de diagnósticos e de outros dados da rede de proteção são cruciais para compreender as dinâmicas de produção destas violências. Em especial, chamo a atenção para os dados sistematizados dos atendimentos do Conselho Tutelar, pois carregam o potencial de garantir uma ampla visualização das demandas e das violações que afetam as crianças e os adolescentes no território municipal.
No debate voltado às Conferências, parece-me central abordar as linhas de enfrentamento às violências que, em primeiro lugar, retomem e avancem com o planejamento intersetorial realizado para dar conta do trabalho complexo de prevenir, atender e reprimir as violências. Destaco, neste ponto, os seguintes planos nacionais, com recorte específico ou transversal de crianças e adolescentes: (1) Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, cuja segunda versão é de 2013; (2) III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, aprovado em 2018; (3) Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente, de 2004; (4) Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), de 2006; (5) Plano Nacional Juventude Viva, lançado em 2018, para enfrentamento da violência à juventude negra; (6) Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica Contra a Mulher, lançado em 2018; (7) Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT, implantado em 2008; (8) Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, de 2010. Agrego, também, a Resolução n°. 213, de 20 de novembro de 2018, do CONANDA, que apresenta estratégias importantes para o enfrentamento da violência letal contra crianças e adolescentes, a qual dispõe, no seu artigo 3°, que as ações e medidas previstas “serão direcionadas em especial aos adolescentes do sexo masculino, negros, em sua maioria com baixa escolaridade, que vivem nas periferias dos centros urbanos e estão em situação de maior vulnerabilidade.”[23]
Como a rede de proteção, em seus múltiplos níveis de atuação, está se apropriando destes documentos? De que modo estão internalizando e formulando suas estratégias de atuação para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes? E, com que base de monitoramento do controle social, também? Estas são perguntas que precisam permear o debate das Conferências, para daí retirar indicativos de proposições que sejam efetivamente voltadas para aplicabilidade no contexto local – compreendendo o local em termos simbólicos, sendo desde o município até o nacional – mas que, de alguma forma, também se nutra do que já foi produzido por estes planos.
Por certo, o desafio do enfrentamento à violência contra as crianças e os adolescentes só está completo se pensamos ele dentro do escopo maior da proteção integral dos seus direitos, com prioridade absoluta. É no marco deste paradigma jurídico, que em 2018 completa 30 anos de vigência no Brasil, que colocamos o desafio de pensar o enfrentamento das violências, tendo por horizonte propositivo: (1) a capacidade de gerar medidas preventivas que intervenham nas causas das violências e no fortalecimento dos vínculos familiares, comunitários e sociais de crianças e adolescentes, além de ampliar a educação em direitos humanos para o debate destas violências e de seus direitos, sobretudo no espaço escolar, meios de comunicação e comunitário; (2) a melhoria do atendimento às vítimas e às testemunhas de violência, pautado nos novos referenciais técnico-metodológicos e normativos advindos com a implantação da Lei n°. 13.431, de 4 de abril de 2017, e do Decreto n°. 9.603, de 10 de dezembro de 2018, este último buscando regulamentar as medidas previstas na Lei, mas também, por outro lado, pensando no atendimento humanizado ao agente violador, e como, cada vez mais, é preciso pensa-lo como um agente que dever ter uma forma de atendimento adequado para sua futura ressocialização, mais além do simples encarceramento; (3) problematização sobre a responsabilização e repressão jurídico-policial das múltiplas formas de violência, o que exige discutir o fortalecimento da inteligência policial, a celeridade dos procedimentos judiciais e condições dignas de cumprimento das medidas punitivas, sobretudo nas prisões e centros de internação; (4) por fim, mas de maneira transversal em tudo, a formulação de medidas que fortaleça o protagonismo de crianças e adolescentes, para que sejam parte ativa do processo de construção destas políticas e do processo de monitoramento do cumprimento delas.
Notas e Referências
[1] Texto elaborado com base na conferência de abertura ministrada na IX Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, ocorrida no dia 28 de novembro de 2018.
[2] Com o seguinte texto normativo: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Cf. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Casa Civil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicaocompilado.htm
[3] O site da ANDI pode ser acessado pelo link: http://www.andi.org.br/dicas-para-cobertura
[4] Destaco a qualidade dos vídeos que podem ser usados com crianças e adolescentes. O acesso do portal do SaferNet Brasil pode ser feito pelo link: https://new.safernet.org.br/
[5] A Resolução pode ser obtida pelo link: http://www.direitosdacrianca.gov.br/conanda/resolucoes/ resolucao-no-215-de-22-de-novembro-de-2018/view
[6] O Plano Decenal, na sua versão nacional, pode ser acessado pelo link: http://www.crianca.mppr. mp.br/arquivos/File/download/plano_decenal_conanda.pdf
[7] Texto completo do ECA disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm
[8] O Decreto pode ser acessado pelo link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8750.htm
[9] Documento acessível pelo link: http://www.direitosdacrianca.gov.br/resolucoes/resolucoes-conjuntas-do-conanda-2/resolucao-conjunta-conanda-conade-no-01-de-24-de-outubro-de-2018/view
[10] Cf. COHN, Clarice. Concepções de infância e infâncias: um estado da arte da antropologia da criança no Brasil. In: Civitas, v. 13, n. 2, p. 221-244, maio-ago. 2013. Disponível em: http://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/15478/10826
[11] E complementa Clarice Cohn: “devemos sempre levar em conta que, de um lado, a concepção de infância informa (sempre) as ações voltadas às crianças – e, de outro, que as crianças atuam desde este lugar seja para ocupa-lo, seja para expandi-lo, ou negá-lo... É a partir dele que agem ou é contra ele que agem. Por isso, a concepção de infância deve ser sempre considerada nas duas pontas das pesquisas em antropologia que fala de e com crianças – aquela que avalia o lugar da criança e trata de seus direitos, das políticas públicas a elas voltadas, de ações educacionais etc. e aquela que atenta para o ponto de vista das crianças. Se nem todos podemos ver ambos os lados ao mesmo tempo, ou todos os lados destas realidades multifacetadas, ao menos devemos ter isso em mente: que as ações voltadas às crianças e o lugar que lhes é destinado são definidos por concepções de infância na mesma medida em que o modo como as crianças atuam e o que eles pensam do mundo acontece a partir (mesmo que contra) desta posição que lhes é oferecida e que elas conhecem e reconhecem” (2013, p. 241).
[12] Resolução que pode ser acessada pelo link: http://www.direitosdacrianca.gov.br/conanda/ resolucoes/resolucao-no-214-de-22-de-novembro-de-2018/view
[13] Cf. OXFAM BRASIL. País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras. 2018. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/relatorio_desigualdade_2018_pais_estagnado_ digital.pdf
[14] Cf. MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS (MDH). Disque Direitos Humanos – Relatório 2017. Brasília: MDH, 2018. Disponível em: http://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/ dados-disque-100/relatorio-balanco-digital.pdf
[15] Cf. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015 – Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil. Rio de Janeiro: FLACSO, 2015. Disponível em: https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/ mapaViolencia2015_adolescentes.pdf
[16] Cf. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA); FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Atlas da Violência 2018. Rio de Janeiro: IPEA; FBSP, 2018. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_ da_violencia_2018.pdf
[17] Conforme aponta o IPEA: “Houve aumento na quantidade de jovens assassinados, em 2016, em vinte UFs, com destaque para Acre (+84,8%) e Amapá (+41,2%), seguidos pelos grupos do Rio de Janeiro, Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte e Roraima, que apresentaram crescimento em torno de 20%, e de Pernambuco, Pará, Tocantins e Rio Grande do Sul, com crescimento entre 15% e 17%. Em apenas sete UFs verificou-se redução, com destaque para Paraíba, Espírito Santo, Ceará e São Paulo, onde houve diminuição entre 13,5% e 15,6%” (2018, p. 32).
[18] ONG Transgender Europe. TMM Annual Report 2016. v. 14, out. 2016. Disponível em: https://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/11/TvT-PS-Vol14-2016.pdf. Também é possível obter outras informações em matéria jornalística: https://blogdacidadania.com.br/2018/11/brasil-segue-como-pais-que-mais-mata-transexuais-no-mundo/
[19] Conforme matéria jornalística acessível pelo link: http://especiais.correiobraziliense.com.br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-assassinatos-de-transexuais
[20] Os dados estão disponíveis no seguinte link: https://www.sipia.gov.br/CT/?x=GqrBLNODdW3uBs-FFkcibQ
[21] Cf. Rodríguez, Ernesto. Bases para la construcción de un índice de desarrollo de políticas sectoriales de juventud para América Latina. Montevideo: CELAJU, 2015.
[22] Cf. Verdum, Ricardo. Juventude indígena em situação de risco. Brasília: INESC, 2011. Disponível em: http://www.inesc.org.br/projeto-onda/biblioteca/textos/juventude-indigena-no-brasil-em-situacao-de-risco/
[23] Acessada pelo link: http://www.direitosdacrianca.gov.br/conanda/resolucoes/resolucao-no-213-de-20-de-novembro-de-2018/view
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