Recentemente sancionada pelo Presidente da República, a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que “aperfeiçoa a legislação penal e processual penal”, é oriunda do Projeto de Lei nº 6.341/19, conhecido como Projeto de Lei Anticrime, promovendo mudanças no Código Penal, alterando inúmeros dispositivos do Código de Processo Penal e trazendo consideráveis inovações na Legislação Penal Especial.
No âmbito processual penal, a nova lei criou o juiz das garantias, a cadeia de custódia de vestígios coletados em locais ou em vítimas de crimes, modificando, ainda, sensivelmente a disciplina das prisões cautelares e das medidas alternativa à prisão, assuntos que serão tratados em artigos posteriores.
No presente artigo, abordaremos a mudança da espécie de ação penal no crime de estelionato, que passa a ser, por força da nova lei, pública condicionada a representação do ofendido.
Ação penal, segundo a lição do saudoso José Frederico Marques (“Tratado de direito penal”, São Paulo: Saraiva, 1966, p. 324), é o direito de invocar-se o Poder Judiciário, no sentido de aplicar o Direito Penal objetivo.
O direito de punir do Estado, denominado “jus puniendi”, somente pode ser realizado por meio do direito de ação, que é, nesse caso, o “jus persequendi”. O exercício do direito de ação (“jus accusationis”), entretanto, é que será deferido por lei ao Ministério Público, nas ações penais públicas, ou ao ofendido, nas ações penais privadas.
A ação penal tem como critério de classificação, basicamente, o objeto jurídico do delito e o interesse da vítima na persecução criminal. Assim, determinadas objetividades jurídicas de delitos fazem com que o Estado reserve para si a iniciativa da ação penal, tal a importância que apresentam. Nesse caso, estamos diante da ação penal pública. Em outros casos, o Estado reserva ao ofendido a iniciativa do procedimento policial e da ação penal. Nesse caso, estamos diante da ação penal privada.
Na ação penal pública, a conduta do sujeito lesa um interesse jurídico de acentuada importância, fazendo com que caiba ao Estado a titularidade da ação. Assim, ocorrido o delito, deve a autoridade policial, em regra, proceder de ofício, tomando as medidas cabíveis. Em juízo, a ação penal pública deve ser exercida privativamente pelo Ministério Público (art. 129, I, da CF).
A ação penal pública, como é sabido, apresenta duas espécies: a) ação penal pública incondicionada, quando o seu exercício não se subordina a qualquer requisito, podendo ser iniciada sem manifestação de vontade de qualquer pessoa; e b) ação penal pública condicionada, quando o seu exercício depende do preenchimento de condições, que podem ser a representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça. Assim, temos a ação penal pública condicionada a representação do ofendido e a ação penal pública condicionada a requisição do Ministro da Justiça.
O crime de estelionato, desde a vigência da parte especial do Código Penal de 1940, sempre foi um crime de ação penal pública incondicionada, não obstante as tentativas, já ocorrentes em projetos de lei anteriores, de tornar a ação penal condicionada a representação do ofendido, invocando-se a natureza patrimonial do delito e a disponibilidade do bem jurídico violado.
Na ação penal pública condicionada a representação, de outro giro, o interesse do ofendido se sobrepõe ao interesse público na repressão do crime. Geralmente, nesses casos, o processo pode acarretar maiores danos ao ofendido do que aqueles resultantes do crime. Confere o Estado, assim, à vítima do crime, ou a seu representante legal, a faculdade de expressar seu desejo, ou não, de ver iniciada a ação penal contra o criminoso. Esse desejo da vítima é manifestado por meio da representação, autorizando o Ministério Público a iniciar a persecução penal.
Representação, portanto, é o ato pelo qual o ofendido ou seu representante legal expressam a vontade de que a ação penal seja instaurada. O direito de representação pode ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público ou à autoridade policial (art. 39 do CPP), dentro do prazo de 6 meses, contado da data em que vier a saber quem é o autor do crime, sob pena de decadência (art. 38 do CPP).
Pois bem. Estelionato é a obtenção, para si ou para outrem, de vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. É crime previsto no art. 171 do Código Penal, cuja objetividade jurídica é a proteção ao direito de propriedade.
O objeto material do crime de estelionato é a vantagem ilícita, que deve ser obtida em prejuízo alheio, atingindo o patrimônio da vítima.
Nesse aspecto, a nova Lei nº 13.964/19 acrescentou o §5º ao art. 171 do Código Penal, estabelecendo como regra a ação penal pública condicionada a representação do ofendido.
O citado parágrafo, entretanto, trouxe exceções, nos casos em que a vítima é a Administração Pública, direta ou indireta, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
Em todos esses casos excepcionais, o interesse público continua prevalecendo sobre o interesse particular do ofendido, fazendo com que a ação penal continue sendo pública incondicionada.
Nos demais casos de estelionato, a regra passa a ser a ação penal pública condicionada a representação, tendo a vítima ou seu representante legal o prazo de 6 meses, contado da data em que vier a saber quem é o autor do crime, para ofertar a representação, sob pena de decadência.
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