A LICITUDE DA MANIFESTAÇÃO CRÍTICA AOS PODERES CONSTITUCIONAIS  

28/10/2021

A Lei n. 14.197, sancionada pelo Presidente da República e publicada no DOU no dia 2 de setembro de 2021, acrescentou o Título XII na Parte Especial do Código Penal, relativo aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, revogando também a Lei nº 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional), e dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais).

Nesse aspecto, foram incluídos os arts. 359-I a 359-U no Código Penal, sendo criados novos tipos penais (“novatio legis”) e abolidos outros tantos (“abolitio criminis”). Para alguns outros crimes, houve apenas mudanças na descrição típica, podendo, dependendo do caso, ser aplicado o princípio da continuidade normativo-típica.

No art. 359-T, a nova lei estabeleceu expressamente não constituir crime contra o Estado Democrático de Direito a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.

Diz o referido artigo:

“Art. 359-T. Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.”

É bem verdade que a liberdade de expressão exsurge como direito fundamental, corolário da dignidade humana, vindo expresso nos arts. 5º e 220 da Constituição Federal, vedada, inclusive, peremptoriamente, a censura prévia.

A liberdade de expressão é um dos pilares fundamentais da democracia, sendo inadmissível que um Estado Democrático de Direito abrigue instituições antidemocráticas, que não suportam conviver com a diversidade de pensamento e com a diversidade política, não aceitando críticas e se arvorando em censoras daquilo que julgam inverdades e que, no mais das vezes, constitui apenas a verdade que deve ser dita, mas que confronta e afronta seus interesses pessoais.

O artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal estabelece literalmente que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".

Nesse sentido, é oportuno citar a percuciente lição de ALEXANDRE DE MORAES (“Direito Constitucional”, 36ª ed., São Paulo: Atlas, 2020, p. 133): “A manifestação do pensamento é livre e garantida em nível constitucional, não aludindo a censura prévia em diversões e espetáculos públicos. Os abusos porventura ocorridos no exercício indevido da manifestação do pensamento são passíveis de exame e apreciação pelo Poder Judiciário com as consequentes responsabilidades civil e penal de seus autores, decorrentes inclusive de publicações injuriosas na imprensa, que deve exercer vigilância e controle da matéria que divulga.” E prossegue o ilustre constitucionalista, em outra passagem: “A liberdade de discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão que tem por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva.” (grifo nosso)

Nesse passo, andou bem a nova Lei n. 14.197/21 ao deixar claro, no art. 359-T que foi inserido no Código Penal, que a manifestação crítica aos poderes constitucionais (Judiciário, Legislativo e Executivo) não constitui crime contra o Estado Democrático de Direito, não se podendo, por conseguinte, prender, indiciar ou processar criminalmente qualquer cidadão apenas e tão somente porque perfilha uma linha política ou ideológica diversa ou porque ousa expor livremente suas ideias e crenças, concitando a população ao contato com eventuais aspectos obscuros do exercício do poder.

A crítica, embora contundente, a qualquer dos poderes constitucionais, deve ser tolerada em uma democracia, ainda mais quando se prega a necessidade de tolerância com a diversidade de ideologias políticas, de crenças e de opiniões.

A intimidação ostensiva aos que ousam pensar e se expressar de maneira diversa e o uso inescrupuloso do aparato do Estado, mediante investigações ilegais e prisões abusivas, para fazer calar as vozes divergentes, é própria das ditaduras e dos estados totalitários, em total afronta, aí sim, ao Estado Democrático de Direito.

O pluralismo de valores e de ideias, portanto, deve ser um dos principais pilares sobre os quais se assentam as bases um país democrático, devendo a sociedade brasileira zelar e vigiar ininterruptamente para que a livre manifestação do pensamento nunca lhe seja tolhida, sob qualquer pretexto, sob pena de sucumbir, aos poucos, à ganância daqueles que se arvoram detentores de todo o poder.

Vale lembrar, a propósito, o alerta que brilhantemente nos faz o filósofo ISAIAH BERLIN (“The Crooked Timber of Humanity: chapters in history of ideas”, H. Hard (org.), London, J. Murray, 1990, p. 12-13), segundo o qual “a liberdade total para os lobos significa a morte para os cordeiros” e que tanto a liberdade quanto a igualdade estão entre os principais objetivos perseguidos pelos seres humanos ao longo de muitos séculos. (grifo nosso)

Entretanto, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, prevendo a Constituição Federal, no art. 5º, V, estar “assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.”

Além disso, a liberdade de expressão não pode constituir passaporte para a ilicitude, para a prática de crimes, devendo ser responsabilizado, nos termos da lei, aquele que fizer mal uso desse direito, violando a paz pública ou o direito à honra dos demais integrantes da sociedade, seja uma pessoa comum, uma autoridade pública ou uma instituição.

Por fim, cumpre ressaltar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em mais de um precedente, a par de rechaçar a censura prévia a qualquer exercício do direito à liberdade de pensamento e de expressão, admitiu haver restrições a esse direito, conforme estabelecido no art. 13, parágrafos 4º e 5º, da Convenção Americana, e no art. 13.2, a fim de “assegurar o respeito aos direitos e à reputação das demais pessoas”.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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