A Lei de Reforma Psiquiátrica (Parte I)

06/04/2016

Por Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Orsini Martinelli - 06/04/2016

Há 15 anos foi publicada a Lei de Reforma Psiquiátrica – Lei n. 10.216/2001, de 06 de abril – dispondo sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionando o modelo assistencial em saúde mental. Sem embargo relevante, inclusive com positivos resultados práticos já alcançados, verifica-se alguma resistência na doutrina quanto à confrontação do modelo consignado no Código Penal por meio de suas diretrizes.

A primeira parte deste ensaio, alheio às considerações médico-psiquiátricas, terá por interesse afastar o caráter periculosista-retributivista por meio de adoção da ideia de reinserção do agente em seu meio social. Pela renúncia da locução doença mental empregada tradicionalmente, fator de estigmatização, tratar-se-á o portador de transtornos mentais como um sujeito de direitos, um paciente clínico, responsável penalmente pelo fato praticado.

Para alcançar esse fim, faz-se necessária uma viragem interpretativa dos princípios e das normas atinentes aos internados, visando, sobretudo, a efetivação do discurso constitucional da redução de danos, sedimentado na dignidade da pessoa humana e no respeito ao pluralismo humano, sendo totalmente insustentável a submissão destes sujeitos a medidas que contrariem direitos fundamentais.

Nesse sentido, qualquer pessoa que recorde que o valor do ser humano e de ser humano é primordial e é o que deve ser sempre exaltado, tem a obrigação de reivindicar o máximo respeito aos direitos elementares dos pacientes portadores de sofrimento psíquico. Sendo árdua a luta pela abolição da instituição manicomial, ainda camuflada em vários centros[1], algumas mudanças visando assegurar ao internado todos os direitos não atingidos pela sentença são necessárias, mormente os previstos no parágrafo único do art. 2° da Lei n. 10.216/2001[2].

A referida lei reorientou o modelo de justiça criminal atinente aos portadores de transtornos mentais e, em perspectiva humanista, visa, sobretudo, garantir-lhes tratamento respeitoso. Sob os moldes preconizados pela reforma psiquiátrica, o direito à saúde ganhou destaque. Porém, esse desiderato apenas sairá do papel se o melhor cuidado à saúde individual for assegurado aos pacientes clínicos. Em termos diretos, deve-se refutar o modelo psicossocial permeado pela violência[3], isto é, não se deve aceitar um controle social marcado pela hipocrisia, dizendo-se sem discurso punitivo, embora marcadamente punitivista[4].

Nesse aspecto, inclusive, uma medida de extrema eficácia diz respeito à imperiosa mudança de linguagem pela qual o internado é traduzido no plano tradicional: louco[5]. O rótulo proposto transfere o foco do problema à doença, esquecendo-se do agente. Por conseguinte, um estigma social é produzido, pois o sujeito se apresenta com atributo depreciativo, conduzindo-o cada vez mais ao processo de exclusão ou de invisibilidade. A produção dessa identidade estigmatizada, emprestando uma expressão doutrinária[6], reforça um modelo retributivo, mormente quando a maioria dos juízes continua ignorando a Lei de Reforma Psiquiátrica.

A própria terminologia empregada para o fundamento da imposição das medidas de segurança – a periculosidade dos autores inimputáveis – está atualmente ultrapassada e carece de apoio constitucional[7], embora setor da doutrina penal[8] e da jurisprudência a conserve[9]. O termo em destaque, no entanto, sempre foi oscilante[10], a ponto de ser qualificado como escorregadio e ambíguo[11], porque não se traduz objetivamente. Veja-se, a propósito, a lição de Heleno Fragoso: “a periculosidade é, em substância, um juízo de probabilidade que se formula diante de certos indícios. Trata-se de juízo empírico formulado, e, portanto, sujeito a graves erros”[12].

Um reflexo da produção do estigma social tem previsão no § 3° do art. 97 do Código Penal, pois a desinternação (liberação), que será sempre condicional, será revogada se o agente, antes do decurso de um ano, praticar fato indicativo da persistência de sua periculosidade. O dispositivo consiste, a interpretação é nossa, em uma modalidade particular de reincidência no campo das medidas de segurança, caracterizando-se afrontoso ao dogma da ofensividade[13], pois consiste em “controle penal partidário do Direito Penal de autor, que implica o retrocesso da medida às suas origens de instrumento de defesa social preventiva, dissociada da prática de injustos penais e voltada para a contenção securitária do estado de periculosidade social”[14].

O caráter subjetivo, infelizmente, foi aplaudido pelo legislador de 1940, no contexto da Lei n. 6.416/1977 e pela Reforma Penal de 1984, no entanto, felizmente, foi extirpado com a Lei n. 10.216/2001. Atente, inclusive, que a legislação não distingue, em seu texto, entre portadores perigosos ou não perigosos de transtornos mentais, pois, se o fizesse, criaria o contrassenso de alimentar a discriminação, prática que procurou eliminar (art. 1°). A omissão justifica-se por si só e, como tal, a reforma legislativa passou a tratar os portadores de sofrimento psíquicos como sujeitos passíveis de responsabilização penal[15]. Logo, considerar a periculosidade um fundamento legal é admitir que ao inimputável se aplique a sanção por tempo indeterminado, até deixar de ser perigoso. Porém, como atribuir-lhes responsabilidade penal?

A inimputabilidade, nos termos atuais, é a ausência de responsabilidade penal do autor do injusto em razão de uma característica peculiar que o envolve. Se etária a inimputabilidade, na hipótese de adolescente em conflito com a lei, a resposta sancionatória se faz por meio das medidas socioeducativas (art. 112 da Lei n. 8.069/1990, de 13 de julho). Se psíquica, a sanção se perfaz por meio de medida de segurança. A isenção de pena, portanto, decorre da menoridade absoluta (CP, art. 27) ou de grave sofrimento psíquico (CP, art. 26, caput).

No último contexto, embora não haja processualmente uma sentença condenatória[16], impõe-se coercitivamente medida de segurança. Mas, a discussão sobre a natureza jurídica da sentença judicial perdeu sentido com a promulgação da Lei n. 10.216/2001, pois a viragem normativa processada tornou inoperante o próprio conceito de inimputabilidade estabelecido no Código Penal. Observe que o legislador não conservou nem mesmo a locução doença mental, porque a lei obsta que não seja atribuída responsabilidade ao portador de transtorno mental. Pretendeu-se deixar de tratá-lo como objeto, respeitando-o como pessoa, um efetivo sujeito de direitos e obrigações (inclusive, penais)[17]. Deste modo, perceber o portador de sofrimento psíquico como pessoa é o passo inicial para a desconstrução do atual discurso retributivista[18].

Diante desse novo contexto, parte da doutrina pretende fixar uma responsabilidade sui generis ao portador de transtorno mental. Entre as principais tendências, a mais comum requer a injunção penal como se o acusado fosse imputável, sendo que a anomalia psíquica poderia ser considerada circunstância atenuante inominada (CP, art. 66)[19] ou, ainda, causa de diminuição de pena nos termos de uma culpabilidade reduzida[20]. Ou seja, o sistema de dosagem de pena-base segue a análise das circunstâncias judiciais e, na sequência, dependendo da orientação adotada, o transtorno mental pode ser considerado atenuante ou minorante de pena.

Ignorar a reforma derivada com a edição da Lei n. 10.216/2001 acarreta uma intensificação de danos ao sujeito com transtorno mental, pois, na prática, sua responsabilidade penal é apurada de forma objetiva, ou seja, se o incidente de insanidade mental concluir por sua incapacidade, prosseguindo-se o processo, na presença de curador, a imposição da medida de segurança se dá sem qualquer análise judicial da existência de circunstância que torne atípico o fato (princípio da insignificância) ou que exclua a antijuridicidade (legítima defesa)[21] ou, ainda, que exculpe o agente[22]. A análise desconsidera, ainda, os benefícios da Lei n. 9.099/1995 que, contrariamente, são preservados aos agentes imputáveis[23], bem como a possibilidade de concessão de indulto, reconhecida a partir do Decreto n. 6.076/2008[24].

Pode-se sustentar, inclusive, que ao paciente clínico seja ofertado o mesmo tratamento que é conferido ao dependente químico. Veja-se a incidência do princípio da igualdade a partir do crime de homicídio. Em um primeiro contexto, o autor da infração é um dependente químico. Em outro, o agente é portador de melancolia grave. Ambos poderão restar isentos de punição, pois, ao tempo da ação, eram inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarem-se de acordo com esse entendimento. No entanto, a isonomia no trato judicial não vai além, pois enquanto o primeiro é encaminhado à tratamento médico adequado (art. 45, parágrafo único da Lei n. 11.343/2606), o último será conduzido para inadequado tratamento em hospital de custódia, quando ignorada a Lei n. 10.216/2001. Por evidente não se exige que aquele mereça o tratamento ofertado a este, mas que ambos sejam avaliados pacientes clínicos, pois causa-nos espécie que não se observe que o transtorno mental está totalmente dissociado da vontade do réu (ao contrário da dependência química), isto é, não se perceba que o agente tem sua capacidade de determinação inibida por forças internas.

Mas, enquanto esse nível de consagração da isonomia não é alcançado, mais além da incidência das causas que afastem o injusto culpável e da possível aplicação dos benefícios da Lei dos Juizados Especiais, para as correntes apresentadas, o tempo máximo da internação psiquiátrica deverá corresponder ao quantum de pena fixado e, constatando-se que o agente está em condições de conviver socialmente, a medida deverá ser extinta automaticamente[25].


Na próxima semana continuaremos com o mesmo tema, trabalhando uma releitura do tempo máximo de cumprimento da internação com base nas diretrizes da Lei de Reforma Psiquiátrica, bem como demonstraremos a preponderância dessa legislação em um paralelo com as normas constantes no Código Penal e na Lei de Execução Penal.


Notas e Referências:

[1] Barros, Carmen Lúcia de Moraes. “Aplicação da Política de Saúde Mental instituída pela Lei 10.216/2001”, in Revista de Criminologia e Ciências Penitenciárias, Ano 01, n. 01, agosto, 2011, destaca que as pessoas portadoras de transtorno mental, em geral, “estão jogadas nos manicômios judiciários, que embora sejam chamados na lei de hospitais de custódia e tratamento, são verdadeiras prisões”.

[2] Roig, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal, 2014, p. 453, resume que “tais normas (refere-se o autor aos direitos do art. 2◦) demonstram que o tratamento ao indivíduo submetido à medida de segurança deve ser realizado em ambiente sem feições prisionais e com a menor invasividade possível à pessoa”.

[3] Comprova-se a afirmação do império de maus-tratos pela primeira condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direito Humanos, pois relacionada com a morte de internado em instituição psiquiátrica cearense (caso Damião Ximenes que, ressalte-se, não se tratava de um sentenciado judicial).

[4] Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, 2013, p. 69.

[5] Kraepelin, Emil. A Loucura Maníaco-Depressiva, 2012, p. 3 e ss.

[6] Nunes, Mônica; Torrenté, Maurice. “Estigma e violência no trato com a loucura”, in Revista Saúde Pública, vol. 43, supl. 1, agosto, 2009, pp. 102-108.

[7] Jacobina, Paulo Vasconcelos. Direito Penal da Loucura, 2008, p. 99.

[8] Capez, Fernando. Curso de Direito penal, v.1, 2014, p. 468.

[9] Gomes Júnior, João Florêncio de Salles. “A abolição do duplo-binário e a indevida persistência de uma (sub) cultura da periculosidade no sistema penal brasileiro”, in Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 22, n. 256, mar. 2014, p. 5-7.

[10] Bruno, Aníbal. “Teoria da perigosidade criminal”, in Revista dos Tribunais, v. 89, n. 779, 2000, p. 45.

[11] Alvim, Rui Carlos Machado. Uma Pequena História das Medidas de Segurança, 1997, p. 20.

[12] Fragoso, Heleno Claudio. Lições de Direito penal, v. 1, 2003, p. 499.

[13] Não apenas ao postulado da ofensividade ou alteridade, senão igualmente ao princípio da legalidade, pois o legislador não apontou se o fato praticado deve ou não configurar relevante penal (será possível o restabelecimento da medida em casos de crime impossível?), ao princípio da proporcionalidade, de sorte que o simples não recolhimento em hora fixada (LEP, art. 178 c/c art. 132, § 2°) restabelecerá a medida; e, ao princípio do devido processo legal, pois não se realiza uma audiência admonitória.

[14] Roig, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal, 2014, p. 449.

[15] Carvalho, Salo de. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro, 2013, p. 526.

[16] Se ausente elemento do conceito de crime, no caso, a culpabilidade em razão da inimputabilidade, cumpre ao juiz, de acordo com o Código de Processo Penal, absolver o acusado, aduzindo a circunstância que o isenta de pena (art. 386, VI). Tratando-se de réu inimputável, aplicará uma medida de segurança (art. 386, parágrafo único, III). Pela linguagem processual penal, com efeito, uma sentença absolutória imprópria é prolatada (Pacelli, Eugenio. Curso de Processo Penal, 2015, p. 644). Outra corrente, embora minoritária, defende que o juiz prolata um decreto condenatório, pois a medida de segurança, quanto a sua execução, constitui consequência por mais lesiva à liberdade de quem a sofre do que a própria pena (Ferrari, Eduardo Reale. Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado de Direito Democrático, 2001, p. 210). Há, ainda, que defenda uma natureza mista da sentença, porque revela que o decreto é a um só tempo condenatório e absolutório (Queiroz, Paulo. Direito Penal, 2008, p. 400).

[17] Carvalho, Salo de. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro, 2013, p. 525-526.

[18] Para uma análise da incoerência entre decisões dos Tribunais superiores quanto à finalidade da medida de segurança, como instrumento de segregação preventiva ou tratamento de saúde, conferir: Roesler, Cláudia Rosane; Lage, Leonardo Almeida. “A argumentação do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes inimputáveis e semi-imputáveis”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 21, n. 105, nov-dez, 2013, p.13-56.

[19] Mattos, Virgílio. Crime e Psiquiatria, 2006, p. 168.

[20] Carvalho, Salo de. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro, 2013, p. 529.

[21] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, vol. 1, 2014, p. 860.

[22] Queiroz, Paulo. Direito penal, 2008, p. 398.

[23] Marchewka, Tânia Maria Nava. “As contradições das medidas de segurança no contexto do direito penal e da reforma psiquiátrica no Brasil”, in Revista de Direito Sanitário, vol. 2, n. 3, 2001, p. 103, nesse mesmo sentido, entende paradoxal “que o imputável que cometer um desses crimes (furto simples ou receptação culposa), desde que primário, possa permanecer livre, beneficiando-se do sursis ou até da substituição da pena de reclusão por uma restritiva de direitos, por multa ou até mesmo com a suspensão do processo e o doente mental não se beneficie de nenhuma alternativas destas”.

[24] Cardoso, Tiago. “A concessão de indulto e as medidas de segurança”, in Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, v. 1, n. 22, 2009/2010, p. 169.

[25] Carvalho, Salo de. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro, 2013, p. 527-528.


. Leonardo Schmitt de Bem é Professor Adjunto de Direito Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano, Itália. Doutor em Direitos e Liberdades Fundamentais pela Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha. Mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra, Portugal. Autor do livro (entre outros): Direito Penal de Trânsito. 3ª ed. Saraiva, 2015, 541p.


João Paulo Orsini Martinelli. João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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